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A processar…
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“Há dias em que vou na rua, vejo alguém a olhar para mim, reconheço a cara e pergunto: ‘Gabriela?'”. Gabriela é o amor da vida da personagem a quem Ivo Canelas dá corpo em Todas as Coisas Maravilhosas, em cena desde o dia 3 de janeiro e até ao dia 29, no Estúdio Time Out. Desde que o espetáculo começou, há quatro temporadas, Gabriela ganhou muitas caras: em cada sessão, esta mulher tem as feições de alguém da plateia.

É apresentado como um monólogo, mas Ivo não está sozinho: no estúdio, o próprio público fará de Gabriela, de pai, de veterinário, de professora e de psicóloga. Personagens da vida de um menino (que vemos tornar-se homem) que decide fazer uma lista de todas as coisas que mais adora no mundo, para ajudar a mãe a combater a depressão.

Chega a um milhão de coisas. Lembrarmo-nos do que de mais simples e bom há na vida salva-nos?

O espetáculo está em cena no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira. Foto: Inês Leote

Um espetáculo sem definição certa sobre o que é, um texto original de Duncan MacMillan sobre saúde mental, adaptado em todo o mundo e que, pela quarta temporada seguida, volta a esgotar salas em Lisboa.

Mas se é difícil explicar o que isto é, poderá tentar-se uma analogia com o cenário que acontece ao nosso lado, no dia em que conhecemos Ivo Canelas, sentados na esplanada de um quiosque junto ao Mercado da Ribeira. Ali, mesmo ao lado da sala onde faz acontecer este espetáculo. “Esta é uma experiência muito mais perto do grande plano do que do plano geral. O que se passa ali? Estão dois senhores na mesa e eu não sei o que o olhar daquele senhor que está de costas para nós contém. Se eu não estiver sentado com eles, não sei o que se está a passar naquela mesa. O espetáculo deve ser visto assim, em conjunto, na mesma mesa.”

Por isso é que, diz ele, “não conseguiria fazer este espetáculo para 200 pessoas”, porque se perderia esta sensação de estarmos todos sentados no sofá a conversar, como acontece. “E por isso é que, às vezes, levo com olhares tão violentos que quase me projetam dali para fora.”

O desafio chegou de Hugo Nóbrega, da produtora H2N, que viu este texto projetado na sua versão original, no Festival de Cinema Francês. Every Brilliant thing tem a voz do irlandês Jonny Donahoe e pode ser visto na HBO.

E Hugo viu em Jonny qualquer coisa de Ivo.

Ivo dá corpo a um menino que gostava de salvar a mãe ao fazê-la ver felicidade nas coisas mais simples da vida. Foto: Facebook Time Out Market

“Achei para lá de interessante, profundamente tocante e desafiante, porque nunca tinha lido nada sobre depressão, suicídio e doença mental desta forma”, diz o ator, sobre como reagiu à proposta. “Como é que consegues fazer um espetáculo sobre coisas tão negras e complicadas, sem ser tão negro e complicado, mas também sem ser tudo flores e passarinhos? É aquilo que o material propõe e é o que o torna fascinante. Duncan consegue carregar o rir e o chorar em simultâneo, põe lá o lado catártico da arte, o lado brutal da música, mas também o lado ‘ouçam: não venham cá para encontrar a solução, que não é o lugar para isso; mas também é’.”

Por feitio de formação, até de cultura, diz, “esta edição portuguesa não é tão cerebral como a britânica”. Quando entramos na sala, como espectadores, Ivo esforça-se para seguir a filosofia do cantor Nick Cave: o chamado “psicodrama para as primeiras duas filas”, esta ideia de estar mesmo perto de quem o vê e escuta.

O cartaz atual do espetáculo. Foto: Inês Leote

E quem o vê e escuta são, várias vezes, caras repetidas. É que este é um espetáculo com grande dose de improviso, diferente de sessão para sessão, porque o público que o faz assim o dita.

“Nunca fiz stand-up e gostava, mas este espetáculo vai lá perto. É um caos com o qual me dou bem. A história muda completamente através do input das pessoas que participam: há ‘pais’ que são incrivelmente faladores, embora a personagem seja um homem de poucas palavras, mas o momento em que falam mais é um momento muito particular da história em que até faz sentido que assim seja. E o que acontece nunca está errado, menos ou mais cómico. Nunca houve dia nenhum em que eu dissesse que não estava a funcionar. A única coisa que não pode acontecer é eu querer qualquer coisa, forçá-la – e aqui é onde entra bem o meu caos”, conta.

Um espetáculo tão imersivo que chega a ser difícil não cair “na maravilhosa confusão entre o que é realidade e ficção, aquilo que é o ator e a personagem que o ator diz ser”. Por isso há tão poucos nomes nesta trama. Por isso é que raramente sabemos que nome é o da personagem a quem Ivo dá voz.

Um dia, a pergunta surgiu: “Eu disse que era Ivo, eu sou o Ivo. E a partir daqui descobri ouro: aquilo somos todos nós. Começamos por pensar que isto sou eu, é a minha história; depois que isto é a história dele; para percebermos que é a história de todos nós – todos nós que perdemos um cão, que sofremos assim por amor ou que lidamos com a depressão assim também.”

E qual seria a lista de Lisboa?

Na lista que aquele menino um dia escreveu para a mãe doente, estavam coisas que Ivo Canelas também escreveria como as preferidas. Muitas delas vividas em Lisboa, a cidade onde nasceu e cresceu.

As raízes estão realmente cá: há 49 anos, nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, aquela que se diz ser, em gíria comum, a maternidade de todos os lisboetas. O pai é da Rua das Pretas, a mãe de Marvila. Embora tenha trocado a residência para a outra margem, desde que a pandemia tornou o apartamento dele mais pequeno.

Ivo Canelas diz que irão abrir novas sessões em março. Foto: Inês Leote

Está habituado à mudança porque é um cidadão do mundo – não mais que o irmão, confessa. Teve outras moradas, como Nova Iorque, onde viveu durante anos, o que o fez gostar ainda mais de Lisboa. É que a Lua não é a mesma – mas já lá vamos.

Ao longo da conversa, Ivo faz falar os seus autores de romances e músicas favoritas também. Cita Leonard Cohen, que disse: “agora doí-nos nos sítios onde nos costumávamos divertir”. Lisboa é assim? “De todo. Sou pouco nostálgico e não acho nada que antes era melhor do que é agora. Tem sempre a ver com a frescura dos olhos de quem aí vem.”

Veja-se o que aconteceu com Nova Iorque, onde “fecharam imensos bares icónicos nos últimos anos, substituídos por Starbucks”. “Se me perguntares se adoro Starbucks: não. Mas a relação de afetividade que as gerações mais novas agora têm com o Starbucks é a mesma que eu tinha com aqueles bares antigos. Isto é sempre à escala da geração. E infelizmente só vivemos 80 ou 100 anos e, enquanto não dobrarmos isto (com qualidade no meio), a nossa perspetiva é sempre muito pequenina, é sempre um período muito pequeno na História.”

De facto, não se entrega à nostalgia, mas abre uma exceção: “aqui tenho pena: termos perdido o cine-teatro Império”, entretanto comprado pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Mas faz como aquele menino que tem levado a cena e prefere listar o que ainda é realmente bom em Lisboa. Esta seria a lista de Ivo Canelas, uma oportunidade para lembrar como a cidade molda as nossas melhores memórias. Começou-a com o sol lá em cima e já este se punha quando terminou, sabendo que a lista poderia ser muito maior:

1. As árvores da cidade e como algumas podem ter vindo das ex-colónias.
“Sou fanático de jardinagem – não percebo nada, mas gosto imenso, vem do meu avô. Ensinou-me sobre paciência. E gosto como trouxemos tantas coisas de fora: Jacarandás, a Yucca, as oliveiras – tudo coisas que eu via também em Los Angeles, quando morava nos EUA.”

2. E por falar nestas árvores: como os Jacarandás deixam o chão coberto de roxo.
“E irrita-me imenso como as pessoas se chateiam porque aquilo suja os carros. Mas é muito sintomático de como temos as prioridades trocadas.”

3. Os turistas.
“Não gosto da ‘disneyficação’ de Lisboa e de isto se tornar um ‘playground’ (recreio) para turistas, mas gosto de turistas, sempre gostei de andar por Lisboa e ouvir estas línguas todas que eu não compreendo. Era miúdo, apanhava o autocarro e sentava-me sempre junto deles.”

4. As flores à venda no mercado da Ribeira às cinco da manhã.
“Lembro-me de ser miúdo e ver as floristas todas às cinco da manhã, desta loucura de belo e de cheiros.”

5. O Tejo.
“Este nosso rio é especial. É grande, é enorme. Vais a Amsterdão, vês aqueles rios todos e percebes isso, a dimensão. E gosto de ver como estamos cada vez mais próximos do rio. Eu morei na Portela com a minha mãe e quando ia para o Conservatório, no Bairro Alto, ia por um caminho de pedra romana, mais desconfortável, antes de a Expo ser construída. Isto foi transformado e agora adoro correr por ali fora.”

6. A lua de Lisboa, “que é diferente da Lua de Nova Iorque”.
“Lá, descobres que é Lua Cheia se a vires refletida nos arranha-céus. Lembro-me de passar meses à procura da lua. ‘Onde é que ela está, caraças?'”

7. A relação da cidade com os animais, “mais permissiva a recebê-los.”

8. Os nossos pastéis de nata

9. As salas cada vez mais cheias nos teatros.
“Os meus pais nunca tiveram relação com o teatro, sou o primeiro da família. O primeiro espetáculo a que me levaram foi de ópera e não soube apreciar. E a relação com o teatro é posterior à relação com o cinema – o primeiro filme que vi foi da Disney, O Gato que Veio do Espaço. O teatro só veio com a entrada no Conservatório. E cheguei a fazer peças para 12 pessoas, que só fazíamos porque havia mais pessoas que atores. Hoje não é assim, as salas estão cheias – é a democracia, quanto mais nos afastamos da ditadura, mais as salas enchem, porque há pessoas cada vez mais livres, com pensamentos cada vez mais soltos. O que tem as suas fragilidades, mas que é belo.”

10. O antigo teatro Cornucópia, um teatro independente extinto em 2016, “nesta cidade de teatro lindos”.

11. A escala de Lisboa.
“Lisboa consegue ser um grande bairro onde todos nos encontramos numa questão de minutos. É a escala que torna Lisboa tão bonita e que existe também na forma como nos relacionamos, mas por oposto: as pessoas são muito mais comunicativas, à superfície, na América, do que somos aqui, o que tem a ver com o treino para falar em público; veem-se no elevador e parece que se conhecem há 20 anos, mas também não passa disso; cá, demoramos a dar esse primeiro passo, mas depois…”

12. Tirar fotografias neste pôr do sol, com sombras de dez metros. “E como já ninguém acredita que não estamos a tirar fotografias a nós próprios, mas aos outros, deixam-se fotografar. Estamos num período ótimo para fotografar os outros.”

13. Os barcos da Trafaria.
“Quando era miúdo, apanhava grandes bebedeiras, não tinha autocarro até às tantas (horas), então apanhava o barco às cinco e meia e ficava lá a dormir para trás e para a frente até às oito da manhã, até apanhar o autocarro, o 83, que ia para a Portela”

14. A minha avó.
Ela que cresceu cá. Aos 101, ainda era um exemplo incrível de vitalidade. Era uma mulher ligada a tudo. Com o passar da vida, vamos virando para dentro, estamos mais fechados, mas a minha avó não. Se estava uma mancha no chão, ela fazia isto: dobrava e ficava a limpar. Aos 101 anos, com uma prótese de titânio na perna.”

15. A proximidade do mar

16. As nossas pontes.
“E gostava que tivéssemos mais. Deveríamos poder atravessar as nossas pontes a pé.”

17. A nossa antiga Feira Popular.
“Trabalhei lá, na passagem do terror, que era uma casa assombrada, uma experiência imersiva muito avançada para a época, com os monstros todos dos filmes. Trabalhei lá dois anos, dois verões. E aquilo era um microcosmos de uma cidade, são pessoas, feirantes, que vivem naquela realidade muito fechada. Gostava de a ver a abrir em Almada, onde estou a morar agora. Era bom para Almada e acho que nos faria ir mais lá.”

18. O aeroporto estar perto, “até ao dia em nos caia um avião em cima…”

19. Fazer as corridas da cidade

20. O Bairro Alto, “onde me estraguei todo.”

21. Os Olivais.
“O sítio oposto da cidade, o bairro da minha avó, onde passei muito tempo.”

22. Os nossos becos.
“Becozinhos, escadas e escadinhas, esta coisa árabe que nós temos muito. É muito bonito este caos das nossas ruas, todas amontoadas e tortas.”

23. Correr os miradouros todos de scooter com os meus amigos estrangeiros

24. Os nossos plátanos.
“Porque podes cortar pelo tronco e eles rebentam de novo, não tens de plantar outros.”

25. Subir ao Castelo de São Jorge e não perceber o que está escrito nas placas, “e não sinto que faça da cidade menos minha.”

26. Da altura em que fazíamos fila junto às cabines telefónicas públicas.

27. O antigo café Estádio.
“O sítio onde a malta do Conservatório ia beber copos, no Bairro Alto, e o único bar que era fresco no verão.

28. O quadro do café Estádio. “Não gosto nada de futebol, não tenho paciência, mas havia lá um quadro tridimensional que eu amava, que era um estádio. Mas era muito mal feito. Mesmo sóbrios, não conseguíamos perceber bem aquele quadro.”

29. O cedro do Príncipe Real.
A velha árvore “que tem imensos ferros a segurá-la“. “Faz-me lembrar um livro e um escritor árabe que uma vez li, sobre a árvore dos assobios, uma árvore que agarrava os assobios e os lançava para onde queria”.

30. O aqueduto das Águas Livres.
“Para mim, quando era miúdo, aquilo marcava o início de Lisboa.”

31. A arte dos carteiristas do elétrico 28.
“Os turistas não estarão de acordo, claro.”

32. Os indianos e paquistaneses a jogarem críquete ao domingo, no Martim Moniz

33. Descer a Almirante Reis de patins em linha

O ator Ivo Canelas avança que irão abrir novas sessões em março para Todas as Coisas Maravilhosas


Catarina Reis

Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. Agora, está a fazer um estágio de fotografia na Mensagem de Lisboa.

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