Já em 2009, o Hot Clube de Portugal, fundado em 1948, viu arder o número 39 da Praça da Alegria, casa e escola de jazz desde os anos 1950. Refez-se das cinzas e reabriu sem lugares marcados de terça a sábado, a partir das 22 horas, no número 48 da mesma praça, sempre com música ao vivo.
São essas instalações que, no ano em que comemora 75 anos, o Hot Clube de Portugal vê agora encerradas pela Câmara Municipal de Lisboa, devido a problemas estruturais do edifício – causadas pelas chuvas recentes.
Um encerramento inesperado.
“Foram dois ou três anos sem Hot Clube [depois do incêndio], um clube com esta tradição, que faz este ano 75 anos, e agora acontece isto”, diz Bernardo Moreira, contrabaixista. “É uma notícia que nos apanhou a todos de surpresa. Aparentemente o edifício está com um problema na estrutura, de maneira que a direção do Hot recebeu ordem de encerramento. O que eu espero é que a autarquia se mostre disponível para ajudar a resolver este drama porque nos 75 anos do Hot Clube teríamos um ano maravilhoso de comemorações e isto deixa-nos a todos devastados; é devastador para a comunidade do jazz e o que eu espero é que se encontrem soluções rapidamente.”
O Hot Clube é o mais antigo clube de jazz europeu em atividade. Foi fundado a 19 de março de 1948 por Luiz Villas-Boas .
E marcou a vida de Bernardo Moreira, que desde os 16 anos outra coisa não faz do que entregar-se aos sons das cidades. Recorda-se dos seus inícios na casa: “A escola era aqui, no Hot Clube antigo. Ou seja, os alunos tinham que ter aulas quase à vez porque havia a cave que era clube à noite e durante o dia escola. Era uma escola mínima, tinha o Zé Eduardo como grande mentor que depois foi para Espanha e fundou outra escola de jazz famosíssima em Barcelona [Taller de Músics de Barcelona]. O Mário Laginha foi aluno da escola do Hot nessa altura, antes de nós começarmos a tocar, de maneira que a escola veio a ter um papel importantíssimo.”
E continua as recordações: “Nessa altura, nos anos 1990, a noite de Lisboa eram dois sítios. Havia o Plateau, havia talvez uma outra discoteca, mas eram coisas muito pontuais. Não havia esta proliferação gigantesca de sítios. Portanto, o Hot era um bocadinho o sítio onde as pessoas iam desaguar. Hoje, é [era, até ao dia em que esta entrevista foi realizada] sobretudo uma sala de concertos. É o sinal dos tempos. Hoje, lá fora, qualquer clube de jazz é uma sala de concertos.”
Uma vida dedicada à música
O músico iniciou os estudos de música na Academia de Amadores de Música de Lisboa e, como o pai, também ele Bernardo Moreira, o Binau, reconhecido engenheiro civil que deixou Coimbra para teimar no jazz, acabou por fazer do contrabaixo o parceiro de uma vida.
O lisboeta Bernardo Moreira fechava-se com os irmãos Miguel (n. 1966), Pedro (n. 1969) e João (n. 1970) e o primo que também era Bernardo, o Sassetti (1970 – 2012). Nessa altura, lembra com um sorriso, foi o início.
“Eu queria lá saber a que é que Lisboa me soava, o que eu queria era saber a que é que soava Nova Iorque. Éramos uma série de jovens que tinham o sonho de conquistar um universo do jazz que nos apaixonava 24 horas por dia e, portanto, queríamos trazer o som de Nova Iorque para Lisboa. Para nós o que nos interessava era importar esse som e trazê-lo para aqui, desenvolvê-lo aqui.”
Mas no início dos anos 90 do século passado, Bernardo Moreira reajustava a bússola e juntava-se a Mário Laginha num quarteto que percorreu Portugal de norte a sul. Foi na cidade do Porto que, com o quarteto, se cruzou pela primeira vez com Carlos Paredes numa primeira parte que se alongaria até ao fecho da segunda, com “o mestre”, num concerto que foi uma experiência que o “marcou profundamente.”
Daquele dia fica-lhe “exatamente essa mistura entre um quarteto de jazz que vai ao encontro de uma sonoridade tão característica como é a de Carlos Paredes com uma guitarra nas mãos”.
“Nós estávamos à procura de um som, ainda não havia um som. Era uma coisa confusa, nós éramos todos muito novos e a nossa vontade foi a de ir atrás dele e não a de deixar que ele viesse atrás de nós. Éramos nós a irmos ao encontro dele e isso era um desafio gigantesco.”




Como em Jangada de Pedra, composto para ser interpretado a três mãos numa peça com 17 minutos que coloca ao piano Mário Laginha, na percussão Alexandre Frazão e no contrabaixo Bernardo Moreira, ele próprio sentiu na música portuguesa a oportunidade de, em colectivo, sermos espectadores de nós próprios.
“Esse som, nessa altura, desencadeou qualquer coisa que me levou a pesquisar muito a obra dele e a criar estes diálogos que eu tenho com ele e que mantive ao longo dos anos com a música do Carlos Paredes. Eu, no fundo, sinto que estou a dialogar com ele. Ele foi o fio condutor para depois descobrir outras coisas que me interessaram muito na música portuguesa.”
Que som tem Lisboa?
Já o avô, Carlos Moreira, tocara com Artur Paredes, pai de Carlos, quando ainda se dividia entre a profissão de docente de Direito em Coimbra e a música. Contou-lhe Binau, o pai.
Bernardo voltou a Coimbra para gravar um disco de Vitorino quando foi desafiado a ouvir Em memória de uma camponesa assassinada. Lembrou-se imediatamente daqueles concertos com Paredes.
Se Coimbra tem um som – como outrora disse Bernardo – que som tem Lisboa?
“Ah! Isso é uma pergunta difícil. Eu acho que Lisboa tem muitos sons. Eu, o som de Coimbra associo ao Fado de Coimbra. O meu pai, curiosamente, não gostava muito do Fado de Coimbra, mas eu hei-de ter guardado algum gene.
O meu avô, pai do meu pai, tocou-o muito e nesse sentido todo aquele legado não só de fado, mas da canção de Coimbra e de pessoas como o Zeca Afonso ajudaram a construir uma identidade que é muito forte e muito característica, foi nesse sentido que eu disse que Coimbra tem um som.
Eu acho que Lisboa também terá os seus, basta pensar no Fado de Lisboa que toda a gente associa à cidade. Lisboa é uma mistura de uma série de coisas, sobretudo nos últimos tempos. É uma cidade que cresceu muito do ponto de vista artístico, na área musical há muita coisa a acontecer, de maneira que eu diria que Lisboa tem vários sons. Se estivéssemos a falar de há 50 ou 60 anos estaria no mesmo pé de igualdade com a cidade de Coimbra, hoje temos de falar em variadíssimas sonoridades que depois, todas elas misturadas, dão este caldeamento de tanta cultura que torna mais difícil definir um som característico.”

“Há coisas que oiço na Amália ou no Carlos Paredes que consigo ouvi-las na Cesária Évora”
E Bernardo recorda uma história, do concerto que o marcou profundamente, em 1998. “Foi com o Fausto e foi um acaso. Eu conhecia-o mal porque, na altura, vivia obcecado a ouvir jazz. O André Sousa Machado, que tocava com o Fausto, liga-me dois dias antes de um concerto no Terreiro do Paço e diz-me – ‘Olha, estamos aqui com um problema, o baixista partiu um pé e não vai poder fazer o concerto’.”
Chamado em SOS, perante um alinhamento que tinha cerca de 40 temas, foi logo avisado que não teria tempo nem para ensaios. “‘Vens passar uma tarde a casa do Fausto, ele toca os temas à viola e tu sacas de ouvido ou escreves as tuas notas e vamos para o palco.’ – E foi exatamente isso que eu fiz.”
E isso também ajudou a despertar a portugalidade?
“Embora eu tenha tido essa experiência com o Carlos Paredes, demorei 10 anos a mastigar tudo aquilo. Só em 2000, 2001, é que começo a fazer um bocadinho a agulha para este território muito mais português. Esses 10 anos foram uma espécie de ginásio e de universidade, em que nós absorvemos muito desse som que vinha de fora e que era o que nós queríamos trazer para aqui, comecei a sentir que não fazia sentido trabalhar uma música que no fundo não era nossa, era importada; é aí que eu começo a misturar e a interessar-me pelos outros universos.”
Entre o lá e o aqui, Bernardo Moreira encontra-se em diferentes semelhanças. “É preciso ir bisbilhotar para fazer ligações. Às vezes parece que podem ser coisas que estão muito afastadas, mas não estão. Há coisas que oiço na Amália ou no Carlos Paredes que consigo ouvi-las na Cesária Évora. Se espremer é a mesma coisa.”


E voltamos aos sons da cidade para perceber de que forma é que estes traçam a arquitectura sonora.
“Tem de haver visão. Tem de haver vontade, paciência para trabalhar a prazo, sem querer resultados logo no dia seguinte. A ideia que eu tenho é a de que as pessoas hoje vivem muito em função dos resultados imediatos.
Pensam – ‘eu só vou programar uma coisa que tenha a certeza que esgota o Coliseu’ – esquecendo-se de tudo o resto. Há todo um trabalho que passa muito pela educação e eu acho que ainda pecamos nisso. As pessoas não gostam se não conhecerem, se não forem alertadas para. Agora, não se faz tudo da noite para o dia, é preciso um investimento. Se a solução é ‘não garantes lotação esgotada então não quero saber’ isso é o primeiro passo para desaparecer.
Nós temos a tendência de atirar areia para os olhos, de ter o melhor centro cultural do mundo. Gasta-se milhões. É mais importante haver um bom piano numa sala de espectáculos do que ter cadeiras forradas a veludo encarnado. Eu vou organizar um festival, mas tenho o Presidente da Câmara a dizer ‘ó amigo eu quero isso cheio senão não lhe dou dinheiro para o ano’. E eu para encher a sala começo a fazer concessões.”

Bernardo Moreira é um músico de águas profundas, um fazedor experiente de sons e vai muito para além das tendências, sabe que isto da música é cerebral.
“Vivemos uma fase em que as pessoas são mais sensíveis a coisas que não as façam pensar muito. O som está ligado ao cérebro e à parte intelectual, à parte do raciocínio e hoje é impensável a maioria dos grupos tocarem temas que sejam compridos, com desenvolvimento porque as pessoas não têm capacidade de concentração. Está tudo condicionado àquele bocadinho de tempo suficiente para a pessoa não dispersar.
Isso é um sinal de que os sons da cidade estão condicionados pelo tipo de hábitos que as pessoas adquiriram. Ou seja, joga contra um tipo de música que exige outro tipo de concentração.
Os sons da cidade também são afectados por isso. Se as pessoas não exigem ou acham que exigem, mas exigem as coisas erradas – hoje é normal veres um espectáculo de um artista sozinho no palco, em que toda a parte musical já foi gravada e é programada, só tens bailarinos – onde é que fica a música? Onde é que ficam os músicos?
Isso condiciona o tecido de uma cidade porque o músico vai sofrer por não estar a trabalhar. Todas essas coisas condicionam o que a cidade depois tem para oferecer.
Os tempos não são fáceis. Eu percebo que haja uma pressão para haver determinado tipo de festivais, mas tem de haver orçamento para apoiar as coisas que precisam verdadeiramente de ser apoiadas porque depois, a prazo, tem consequências.
A educação musical média de uma plateia num desses países do Norte é muito superior porque as pessoas têm formação. Foram expostas a isso. Às vezes acho que a malta que tem o poder de decisão muitas vezes cede à pressão mediática que lhes dá a visibilidade que querem. Isto é um jogo e quando entramos nesse jogo quem não tem grande margem negocial fica para trás.”

O último disco, Sul, foi gravado em estúdio, com Bernardo Couto e Luís Figueiredo. “Eu viajo para onde a música me for levando, às vezes leva-me para sítios melancólicos, cinzentos, outras vezes leva-me para sítios azuis, completamente sol. Depende.
Este Sul é gravado com uma Guitarra Portuguesa e remete logo para o universo fadista. Está lá tudo. Mas depois eu acho que nós criamos ali umas texturas e uns ambientes e às vezes, quando estou a tocar, vêm-me à cabeça imagens que podiam ser paisagens nórdicas.”
E daqui partimos com destino a um conceito que ele próprio mistifica e desmistifica. O que é um jazz verdadeiramente português?
“Eu tive a sorte de tocar com grandes músicos, o Waine Shorter por exemplo; isso deu-me uma riqueza gigantesca. Eu percebi que eles também andavam à procura de uma coisa que era deles e isso fez-me pensar.” Sem se fechar em definições, afirma, “eu quero que as pessoas sintam que estão a ouvir uma coisa que é feita aqui, que é um jazz português.”
E a viagem pela música popular portuguesa, pela cultura portuguesa, entre vírgulas tem sempre jazz. “Eu sempre senti a necessidade de ganhar uma certa independência em relação aos outros jazzes. A música é sotaque. É como uma língua. Podes ler fluentemente inglês num livro, mas um dia chegas a Inglaterra e o pessoal diz-te ‘Tu não és inglesa.’ E, no entanto, falas inglês fluentemente. Tens um sotaque. Esse sotaque era o que eu gostava que houvesse neste jazz feito aqui.”
Falamos do pai de Bernardo, contrabaixista, de Pedro, saxofonista, de João, trompetista, e de Miguel, que outrora foi pianista, Bernardo José Costa Sousa Macedo Martins Moreira (n. 1932), um decano do jazz falecido em novembro do ano passado, seis meses depois de o panorama jazzístico português ter perdido Paulo Gil (n. 1937), outro incontornável na história do jazz nacional.
Responde assim, o primogénito da escritora Yvette Centeno. “Custou-me menos do que eu achava. A verdade é que sentimos que toda a malta que veio antes de nós e que fez a história continua aqui.

Foto: Rita Ansone.
Olha, o Paulo Gil está aqui [aponta para a placa dourada que tem gravado ‘Este lugar é de Paulo Gil’]. Isto é um caminho e os músicos sentem um bocadinho isso. Agora, do ponto de vista pessoal, é óbvio que a primeira vez que entrei aqui e olhei ali para o lugar onde o meu pai se costumava sentar… Custa um bocadinho, mas por outro lado há aquela sensação de que a missão continua e o meu pai tinha esse espírito de missão porque acreditou nisto a vida toda e a verdade é que nós também acreditamos. E, portanto, é uma espécie de passagem de testemunho; é continuar.”
Em 1994, Bernardo gravou Encontro em Lisboa e, um ano depois, Luandando. Tudo Muda chegou em 1998 e Ao Paredes Confesso, o primeiro disco o universo do jazz a ir ao encontro do universo de Carlos Paredes, em 2002.
A aproximação progressiva à música popular portuguesa ouve-se em Entre Paredes, de 2021, e em Cantigas de Maio, de 2022, “tentei que fosse precisamente o contrário, ou seja, são menos aparentes as influências do jazz e está muito mais presente as influências da música portuguesa em geral. Eu penso que quem ouvir com atenção este disco pode identificar coisas que têm a ver muito connosco, desde a música popular ao fado.”
* Ulika da Paixão Franco é mulher, negra, filha de Angola e sobrinha de Portugal. Na infância lia alto as palavras que saltavam dos manuais de português e na adolescência trocava as matinés no Crazy Nights, em Lisboa, pelo sofá a ler O Independente. A trabalhar entre a comunicação e a cultura, espera pelo dia em que o Arco-Íris marchar para contar com o título: «Homem Pisa Planeta onde as Pessoas são todas Iguais».