Para oitenta alunos brasileiros, as relações entre Brasil e Portugal vão além dos livros de história. Um passado revisitado pelo programa Era uma vez Brasil, que convidou estudantes de escolas públicas dos estados de São Paulo, Bahia e Pernambuco a refletirem sobre as pessoas ainda hoje “apagadas” pelo processo colonial.
Uma aula realizada não no interior de uma sala de aula brasileira, mas pelas ruas de Lisboa, onde parte dessa história ocorreu e de alguma forma ainda é possível ser percebida. Uma viagem guiada por lisboetas descendentes de outras antigas colónias portuguesas, também “apagados” pelas heranças da colonização.
Sob a chuva fina do outono lisboeta, os estudantes reuniram-se no logradouro por entre os prédios de um bairro social na Quinta do Lavrado. A “aula” esteve a cargo de Carla Cardoso, diretora do Festival Iminente, parceiro da Associação Geração com Futuro, que desenvolve ações com crianças e jovens do “Lavrado”.

Lá, os brasileiros ouviram Carla Cardoso e outras gestoras ligadas à associação contarem num português com sotaque diferente os relatos que conhecem tão bem, de jovens assim como eles que lutam para serem vistos na cidade onde vivem como os adolescentes de outros bairros, na constante resistência para não serem “apagados”.
Ouviram Carla falar de uma Lisboa ainda em formação, de imigrantes de antigas colónias instalando-se nos antigos limites dessa cidade, em busca de uma vida nova, de renascerem como cidadãos, de nascerem como lisboetas ironicamente ao pé de um cemitério, numa Lisboa desde sempre de costas para esses novos moradores.
A mesma história ouvida naquele português de dicção estranha também na Associação Passa Sabi, no Bairro do Rego, e nas associações de Moradores do PER 11 e do Bairro da Quinta Grande, ambas na Alta de Lisboa, naquele dia dedicado às visitas aos bairros sociais lisboetas abrangidos pela parceria com o Festival Iminente.
Histórias com personagens e cenários diferentes, mas com o mesmo guião.
Provocar o pensamento crítico nos jovens
Marici Vila é a gestora do projeto Era uma vez Brasil, a responsável por guiar os oitenta alunos das escolas públicas brasileiras nesta viagem de reconhecimento. Um tour que começou em janeiro em dezenas de escolas brasileiras e percorreu algumas etapas de avaliação, treino e socialização até chegar à fase final, em novembro, em Lisboa.

“O propósito do projeto é fazer esses jovens, muitos deles estudantes de escolas públicas em áreas vizinhas a agrupamentos indígenas, perceberem quem são as pessoas apagadas da história pelo processo de colonização”, explica Marici, enquanto observa os estudantes a brincarem num parque em frente aos prédios do “Lavrado”.
A seleção dos finalistas envolveu a produção de uma banda desenhada pelos alunos, todos entre 13 e 14 anos, sobre o tema. Os autores das melhores BDs participaram em seguida num acampamento nas férias de junho, com atividades audiovisuais, até serem escolhidos os oitenta finalistas que viajariam para Portugal.

Em Lisboa, a programação ocorreu de 14 a 24 de novembro e, para além da visita aos bairros sociais, os alunos trocaram experiências com estudantes portugueses de escolas da rede pública lisboeta, de Sintra e Amadora. Também tiveram aulas de história nas ruas de Lisboa, guiados por historiadores portugueses.
Marici garante que a provocação a que se propõe o projeto deu resultados. “Foi curioso ver como os alunos perceberam in loco como esse processo de apagamento ocorre, de como os guias aqui omitiam factos que eles haviam aprendido nas aulas, como por exemplo, o roubo do ouro e de outras riquezas do Brasil”, conta.
Por outro lado, chamou a atenção dos jovens brasileiros, muitos habitantes de áreas sensíveis do Brasil, como os bairros sociais lisboetas, apesar das dificuldades estruturais e sociais, mas organizados em apartamentos construídos com betão, não se parecem em nada com os seus correspondentes brasileiros, as favelas.
“O pensamento crítico funciona para os dois lados”, resume Marici.
A música como ritmo para a consciencialização
Estimular o pensamento crítico nesse lado do Atlântico é também uma das missões do Festival Iminente, que em parceria com associações em bairros sociais de Lisboa tem usado a música e o audiovisual como principais ferramentas para trabalhar a autoestima e consciencialização de crianças e adolescentes dessas localidades.

Assistente curatorial do Iminente, Margarida Mata conta que os trabalhos com as associações começaram em 2020 e chegam à terceira edição este ano. As oficinas e workshops tiveram início com o calendário escolar e desenrolam-se até ao verão, quando os resultados dos mesmos são exibidos no festival, em Marvila.
“As propostas artísticas são enviadas pelas associações. Devem obrigatoriamente contar com atividades nas áreas de música e artes visuais, mas as demais são livres e obedecem às características e vocações dos participantes dos bairros”, explica Margarida.
Na Quinta do Lavrado, as crianças da comunidade plantaram uma horta urbana entre os prédios, na Praceta dos Pequeninos, a poucos metros onde os estudantes brasileiros estavam reunidos. Em outras associações, os participantes são estimulados a participarem em workshops de arquitetura, design e artes performativas.
A música, porém, é o carro-chefe da parceria entre o Iminente e as associações dos bairros sociais, muitas vezes realizadas com o apoio do casting do festival, os músicos que se apresentam nos palcos em Marvila. “Quando as comunidades sugerem uma atividade, provocamos os artistas para aderirem à causa”, conta Margarida.



A música também pontuou a conversa entre os estudantes brasileiros e os anfitriões lisboetas, quando no fim da palestra foram evocadas as Marchas de Lisboa. Quase nenhum dos jovens presentes havia ouvido falar na principal manifestação cultural lisboeta, até que a diretora do Iminente tirou da cartola uma equivalência perfeita:
“É muito parecido com o carnaval brasileiro”, disse Carla Cardoso, a informação recebida com o balançar de cabeça dos jovens e a expressão de “ah, sim!”. As marchas e as folias carnavalescas talvez os únicos eventos onde os portugueses e brasileiros “apagados” pela história tenham direito a momentos de alegria e visibilidade.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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