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Eu gostava mais de Lisboa quando o Nonô vivia aqui. Cruzámo-nos pela primeira vez numa noite fria de Inverno em Guimarães. Já se sabe que isto é redundante, que o Inverno na linha do Minho sempre soube entrar nos ossos.
Dissemos isto e aquilo, mencionámos aquilo e isto, e também discutimos etc. Duas horas depois, estava o pacto selado, tínhamos de ser amiguinhos um do outro. E eu nem sei que vos diga. Nem dá para descrever o gajo. Fala 114 línguas, entende outras tantas, lê todos os livros que existem, mesmo que ainda não tenham sido escritos ou o tenham sido em sânscrito, não está quieto um minuto, a cabeça mexe sempre, os olhos também, nunca fica doente e sempre teve uma barba sabedora, de um grande leitor, de um metaleiro, de um artista.
Um dia, lá veio o Nonô morar para cá. Os meteorologistas ainda celebram a data como aquela em que as estrelas se multiplicaram no céu. Foi um pé de vento de astros de plasma ali a nascer à descarada. E ele, que não achava grande piada à cidade, sempre ia achando piada a qualquer coisa.
Anos antes, cometera o erro de estudar Engenharia Informática. Foi útil para ele e para mim, que tantas vezes lhe dizia: “Olha, tu sabes computadores, onde é que eu clico no Word para fazer uma cena?” Ele ria-se sempre e, a seguir, dizia-me para clicar no sítio tal.
Depois foi mais um erro, a inscrição num doutoramento de tal forma macabro que até a mim deixava doida. De poesia visual a gente a ler Camões enquanto sacava umas batatas fritas de presunto, tudo ali serviu para desconstruir a literatura até não haver mais literatura, o que era chato para quem queria literatura. Depois disto, e pior não podia ser, foi fazer as malas para Lisboa para ser assistente editorial.

Bem me lembro dos primeiros meses: “Isto é que é, isto é que é vida, tenho o melhor emprego do mundo, isto é lindo, fantástico, um amor, o Vizela a ganhar a Champions, a vida inteira condensada.” Era uma alegria de criança, ou seja, de alguém que ainda não viu o lado b do mundo. “Isto é melhor do que pudim!” Poucas vezes terei visto alguém tão feliz com a ideia de acordar de manhã, quanto mais de acordar para trabalhar, mas lá ia ele feliz da vida. Primeiro via o céu que só Lisboa tem, depois metia a cabeça num ecrã.
Aos poucos, lá se foi habituando a Lisboa, a gostar do Monumental (que já fechou) e do Mob (também defunto). Depois habituou-se de outra forma, o que significa que parte da magia se foi – e que, para ele, verdade seja dita, já não era muita.
Quem não está habituado a trânsito, a contar os milímetros à casa, a deixar um ordenado mínimo no café, pode sentir o embate com mais força, sentir a qualidade de vida esborrachada. E ele, bem o vi, queixou-se disso o tempo todo. Se era bem verdade que no início achava graça ao Tejo, também é verdade que até o lindo Tejo virou água. Começou a referir-se sempre a Lisboa como horrorosamente cara. E, pelo meio, começou a ficar maluco com o trabalho: muita exigência, sofisticação intelectual, demasiadas horas – e poucos euros.
Trabalhar muito e ganhar pouco é má receita para a vida, mas era o que Lisboa lhe dava. No primeiro ano, tudo era descoberta e tudo era fascínio. Pouco depois, já trabalhava em casa e no escritório. À noite, já não lia, que já lia o dia inteiro. Queria vencer a vida para poder ser escritor, mas até o amor pelos livros estava corroído. Sempre que abria o Word para editar Zbigniew Herbert, Virginia Woolf ou Yukio Mishima, sentia que aquilo era pior do que ir à missa.
Durante este tempo, mudou-se três vezes, e era sempre demasiado homem para tão pouco espaço, e cada um dos apartamentos tinha problemas mais lixados que o anterior. Queria uma casa maior, mas depressa entendeu que quem vive em Lisboa quer muita coisa e pode pouca. Pensou em tirar uns trocos à parte, mas quando, como, quem? A renda era de 550 euros, o salário de mil, e a EDP, a EPAL e a NOS gostavam de ir lá comer o que sobrava.
O trajecto para o trabalho, tão útil para audiolivros, já só lhe servia para ouvir aquelas tretas do metal de que ele gostava, e mesmo assim era para ter lixívia a entrar por uma orelha, saindo pela outra e limpando o que encontrasse.
Ao chegar ao escritório, o editor refilava, o revisor não via, ele tinha de ver tudo, e é bem verdade que deixou escapar uma gralha em Bruneleschi. Mesmo agora, nesta crónica, quantos leitores terão notado que devia ter sido Brunelleschi? Aposto que até a revisora da Mensagem teve de voltar atrás. Com isto, o que mais irritava o Nonô era a expectativa de quem queria um clássico literário pago a thriller para encher chouriços. Dali não havia perspectiva para um dia subir dos mil limpinhos.
O gajo estava um caco. Para o futebol aos sábados, não tinha motivação; para o kung fu depois do trabalho, não havia dinheiro. O amor aos livros, ao sucumbir, levara-lhe a fúria de viver, e a ideia de escrever era uma miragem. Escrever o quê, para quê, para quem, com que cabeça? Que havia para dizer por parte de quem só via trabalho – papel enfileirado e em cima de papel – à frente?
Já nas últimas, meteu três semanas de férias, e que se lixasse a vida. Durante aquele tempo, nem o computador abriu, passou uns dias em Guimarães, outros em Barcelos. Punha-se a passear pelo campo durante horas, e que maravilha era respirar de vez em quando. Longe de escritório, e longe de Lisboa, resolveu que isto não dava.
Meteu-se no intercidades sem vontade de voltar. E com ainda menos vontade foi no dia seguinte ao escritório, já com os pais a ver se lhe pescavam um emprego em Guimarães. Mas a desmotivação era gritante, os chefes chamaram-no ao gabinete dois ou três dias depois.
Começaram as acusações e ele, encolhido, até as entendia: que tinha deixado a equipa na mão com as férias, que aquilo não funcionava, que era preciso arranjarem uma saída, que havia ali qualquer coisa que já não encaixava e que ele até tinha sido promovido ao ir do comercial para o literário (muita mais exigência, o mesmo preço, mais estilo). Aquilo era um ultimato: iam começam a tratar dos planos editoriais do ano seguinte e era preciso arrumar a casa. Sem lhes poder mentir, o Nonô lá lhes disse que dali a poucos meses já contava estar a milhas.
Fizeram um acordo e o Nonô fez a mala. Lisboa é bonita, mas não se paga ao senhorio com amor à literatura, e qualquer um precisa de espaço para esticar as pernas. Na vida que tinha, os mil euros eram a realidade estática e o mercado imobiliário só sabia subir.
Hoje, só tem horror a esta cidade horrorosamente cara, e eu nem lhe digo que isto entretanto ficou muito pior. De vez em quando, vou à casa dele, entre Braga e Guimarães, e até dou por mim a perguntar-me para que raio serve tanto espaço. Eu, com uma sala daquelas, teria um jacuzzi, duas piscinas, três ginásios, vinte metros quadrados de tatami para artes marciais e talvez uma bateria, uma gaiola com um coala e um campo de futebol de relvado sintético.
Ele, mesmo sem isso, está feliz, com Billys cheias dos livros que voltou a amar até à dor. Tem tempo e, coisa tão valiosa quanto o tempo, dinheiro para o kung fu às terças. Ganha mais, trabalha menos. Faz feliz quem lhe dá dinheiro justo, tem a cabeça limpa, voltou a ter fúria de viver, e fará também felizes outras conterrâneas, rivais minhas, umas quaisquer que não eu e que me sacaram o lugar. Lisboa venceu o Nonô – e por isso perdeu-o. E eu, que nunca fiz mal a ninguém, lá o perdi também.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
O emprego foi pescado, mas não foi necessário…
Parabéns. A análise mais correta e atenta que já li