Umas ruas adiante, mora uma mulher acima dos 90. Bem a vejo, volta e meia, a arrastar um saco que traz do Continente, este numa mão, a bengala na outra. Segue devagar pela Estrada de Benfica e, quando precisa, empresto-lhe os meus braços.

Quando olho para a senhora Alice, sobe-me sempre uma ternura. De vez em quando, vejo-a parar na pastelaria e beber uma meia de leite em pé. Nunca lhe põe açúcar e, depois da primeira colherada, sorri. Só eu e ela tomamos aquilo como quem come sopa. Depois, enfrenta o caminho até casa como quem sobe um morro a pé.

Ilustração: Beatriz Moura

Nunca a vi com mais ninguém, fiz-lhe a história a sós. Os tempos eram outros, decerto passou a vida sem saber o que era namorar. Naqueles tempos, quem não apanhava entre os 20 já não apanhava nada. E deu-me sempre pena ver a senhora numa solidão imensa, rumo aos 100, sem ter tido uma família, um corpo a ressonar na cama à noite, um filho que se risse quando ela dissesse qualquer coisa.

Ontem, estava eu no café a vê-la a tomar a meia de leite devagar e a minha vizinha de baixo veio meter conversa:

– Olha lá, ó miúda, porque é que estás sempre a dar conversa à velha?

Fiquei sem saber responder. Qual seria o mal de, volta e meia, ajudar alguém daquela idade a carregar os legumes da sopa para o jantar?

– Não sabes quem ela é? Não sabes o que ela fez?

Não sabia. Eu julgo pelas aparências: se é muito velha, é inocente. Já a Fernanda, que nem aos 70 devia ter chegado, já me sabia a mal-dizer.

– Não sei. Não deve ter feito nada. Se fez, deve ter sido sem querer. Já não é nova…

– Não é nova, mas já foi. Aquilo não é gente que se cheire.

E, se cheirássemos, sentiríamos a mistura de betadine com velhice. A partir desse momento, não há pecado que escape.

– Isso que interessa agora? Ao tempo que terá sido. Coitada da senhora.

Coitada! Coitada! – A Fernanda, já de mão na cintura, bufava, indignada, olhando para o outro lado. A mim, indignava-me era que usasse umas calças amarelas com uma camisola azul e que viesse tentar virar-me contra uma senhora com idade para ser mãe dela. – Coitada da minha mãe, é isso? Coitadinha, realmente! Depois de tudo, a vítima ainda é ela! A vítima ainda é ela!

Ora bem. Nunca me passou pela cabeça – a quem passaria? – que fossem mãe e filha. Uma era senhora amável, demorada pelos anos, a quem era preciso dar a mão. A outra era besta que não dava a mão à mãe. E eu nisto sou obtusa: se os pais têm sacos para levar, nós que os levemos.

A Fernanda voltou a olhar para mim. Mal vestida e com o cabelo hirsuto, baixou-se para me ver melhor. Há quanto tempo não usaria amaciador? O queixo já teria alguma vez visto uma pinça? Falta de dinheiro não era, que eu bem a via passar tardes inteiras no Califa.

– Tu nem me faças falar! Tu nem queiras saber! O raio da velha!… Tu nem queiras saber!

Ora, eu não queria saber. Eu nem a tinha chamado. Ela é me que tinha vindo chatear. Eu detesto que me chateiem quando estou a tomar café. Detesto que falem comigo, que me toquem. Detesto que me venham tentar convencer de qualquer coisa. E também detesto que falem a sussurrar e a gritar ao mesmo tempo.

A mulher estava irada. Começou para lá a dizer que a velha isto, que a velha aquilo, que eu devia era estar calada, que eu não sabia nada, que eu nem sabia por onde começar, eu não sabia o que era a vida, eu era estúpida como um calhau com olhos. Mas eu estava calada. Calada e talvez de boca aberta, sem saber que raio tinha acontecido ao meu pequeno-almoço. E o atendente nunca mais me trazia a torrada para ver se me dava uma desculpa.

– E tu – tu! – tu até devias ter vergonha de andar a dar conversa à velha! Mudas-te para aqui de um dia para o outro, nem queres saber de conhecer os vizinhos, é dizer “Bom dia” e allons-y!

O mais bizarro disto tudo é que eu sou incapaz de dar conversa a alguém. Sempre que falo, digo a coisa errada. Sempre que penso, bato ao lado. Mas cansei-me. A semana estava a correr-me mal: levei porrada no jiu jitsu, cheguei encharcada à biblioteca, deixei queimar um salmão que pus no forno. Disse-lhe assim:

– Olhe, deixe-me em paz. Se tem problemas com a senhora, resolva-os. Aliás, se tem problemas com a sua mãe, trate deles. Ela, com a idade que tem, bem precisa da ajuda de uma filha. Se a senhora a ajudasse, talvez eu não precisasse de lhe dar conversa.

Indignou-se outra vez – ou ainda estava indignada, sei lá.

– Resolvo-os? Resolvo-os?! Tu é que não fazes ideia. Se soubesses o que eu sei! Se visses o que ela fez! – Mortinha estava ela por me ouvir a perguntar-lhe o quê, por lhe ouvir as confidências, por me pôr do lado dela a atacar uma velhinha. E continuou: – E nem quer saber! Nem tentou corrigir nada! Passa por mim e não diz nada!

A sério, mais do que nazis, eu odeio gente que só fala com pontos de exclamação. É isso e reticências. Acalmem-se ou animem-se, mas falem com pontos finais como qualquer pessoa ponderada.

– Seja. Resolva-se com ela. Não é uma pessoa daquela idade que tem de andar atrás de si. Os velhotes são teimosos e os filhos têm de tomar conta dos pais.

Tomar conta dos pais! Tomar conta dos pais! – Pimba, duas vezes a mesma frase, duas vezes um ponto de exclamação. Era a histeria em estado puro, e isto antes das nove da manhã. – Isso era o que ela queria! Eu, a limpar os pés à velha? Era o que mais faltava!

Aquilo, para mim, era uma má filha. Um bom filho gosta de dar mimos à mãe. E eu gosto de beber o meu cafezinho sossegada. Ia pagar 75 cêntimos por aquilo e nem podia relaxar um só segundo.

– Eu que não te veja a falar com ela! Isto que tenha acabado de uma vez! O meu irmão que soubesse… O meu irmão, se visse isto!…

Ainda havia um irmão. Aquilo era um circo. A minha torrada não chegava. Tinha começado a chover outra vez. Ninguém me salvava daquele diabo de mulher.

– Olhe, deixe-se disso. Discussões com os pais toda a gente tem de vez em quando. – Eu não, que a minha mamã é uma santa. – Resolva as coisas com a sua família. E, por amor de deus, deixe-me em paz. Eu não tenho nada com isso.

Eu queria lá saber se a senhora Alice se tinha recusado a dar-lhes um BMW, se não os tinha levado de férias à Costa da Caparica, se não tinha aceitado um namorado.

– Tu também és outra sem vergonha! Só podia, para te dares com aquela velha! O meu irmão, se te visse, nem ia ter palavras para isto.

– Deixe-me em paz, santo deus. Quero lá saber do seu irmão.

De repente, já a mulher me abanava.

– Queres lá saber do meu irmão?! Queres lá saber do meu irmão?! Retira isso! Retira!

Mas, antes de a ouvir, vieram-me os reflexos do jiu jitsu. No ginásio, levo porrada; na pastelaria, é demais. Arqueei o braço directo, fi-la fletir o cotovelo e, segundos depois, já eu estava de pé, e ela bloqueada por uma chave de braço que acho que inventei na hora.

A partir daqui, foi um pé de vento. O atendente finalmente olhou para nós, com ar de quem se tinha esquecido de mim e da torrada. A senhora Alice olhava, em pasmo: a colher de leite numa mão, a bengala na outra, o queixo quase a bater no chão. E seis ou sete pessoas apareceram, todas chocadas por eu estar a atacar uma senhora.

Fui expulsa da pastelaria. Nem tinha acabado o café – e, pelo menos, também não o paguei. Passei uma vergonha por causa da tonta da mulher. Ficou tudo contra mim porque não lembrava ao diabo que eu pudesse, do nada, pôr-me à pancada com alguém com idade para avó. Pelos vistos, ninguém a viu berrar-sussurrar comigo, ninguém a viu abanar-me sem licença, ninguém viu nada. Se os velhos merecem a minha complacência, os novos merecem a indiferença alheia. No fundo, até percebo, acho que teria feito a mesma coisa.

Irritada, pus-me ao caminho, sabendo que nunca mais voltaria a meter ali os pés. Filhos da mãe eram eles. O atendente bem devia ter visto tudo e o dono do café já me conhecia de ir ali de vez em quando, não tinha como achar que eu me ia armar em JuveLeo. Dei mais uns passos e mais irritada fiquei. As pessoas não tinham nada na cabeça. Ninguém parava para pensar, o primeiro impulso é que contava. Ninguém ouvia ninguém, mas tinham todos razão.

Ainda antes de chegar à curva, veio o estúpido do dono da pastelaria:

– Ei, pára aí! Pára aí!

Percebi que era ele e fiz de conta. Se achava que eu lhe ia pagar o café que não bebi, bem podia ir dar uma curva.

O gajo continuou a correr, entorpecido pelo peso dos 50 anos, e lá chegou a mim. Ao tocar-me no ombro, não podia fingir que estava surda.

E aí entrou a pés juntos:

– Não te chateies com a Fernanda. Coitada, de certeza que não faz por mal.

– Desculpe, mas já não quero saber. Eu mal conheço a Fernanda. Só quero que ela e o irmão me deixem em paz de uma vez.

– O irmão? Mas qual irmão? O Sérgio?

– Sei lá. Um irmão qualquer de quem falava. Eu sabia lá que a mulher tinha um irmão.

Curvado sob o peso de uma história, baixou a voz, fez um ar triste. Engraçado, mesmo sem sol, a careca luzia-lhe no cimo da cabeça.

– O Sérgio morreu há muitos anos.

A minha fúria fez-se confusão. Por momentos, fui eu a ficar atrapalhada. Nem é bem atrapalhada, é mais confusa com a história toda.

– Morreu? Ah… Não sabia.

– Atirou-se da ponte 25 de Abril ainda antes de chegar aos 20.

Nos segundos prévios, eu imaginara um atropelamento-e-fuga, um cancrozinho, um bocado de SIDA…

E o gajo arrancou-me o tapete aos pés:

– O pai abusava dele, a mãe ficava a ver. Um dia, não aguentou, foi ter com os anjos. Deixou uma carta à Fernanda, que tinha 15 anos na altura. Coitada da miúda, ficou em choque. Saiu de casa e foi viver com uma prima, que morava ali para as portas, e nunca mais falou com os pais. Nem ao funeral foi só para não os ver, mas nunca saiu do bairro. Ninguém percebe bem porquê, tem de andar a fugir da mãe, irrita-se sempre que a vê. É um pandemónio. Na altura, o pai, para não ir preso, estourou os miolos na cozinha.

– E a senhora Alice?

– Limpou o chão e negou tudo. Disse que não sabia, depois disse que nunca tinha acontecido, depois enrolou-se e disse que se calhar tinha sido uma vez, mas que não podia garantir. Disse que o filho, de vez em quando, inventava umas histórias, que andava em más companhias que lhe faziam a cabeça. Ladrões, malandros, homossexuais, comunistas, tudo…

Aos poucos, pelo que me disse, toda a família cortou com a senhora Alice, que casou com um pedófilo, que levou porrada em casa, que deixou que lhe fizessem mal ao filho. Que enterrou um filho e que, no enterro, mentiu para proteger a união firmada ante o Senhor. Não sei se foi cometer um crime, se foi ser cúmplice, se foi medo para evitar sabe deus o quê pior do que aquilo. Sei que, a partir daí, quando a vejo, tombada pelo peso de 90 e tal anos, os miolos estourados do marido, o corpo do filho arrancado ao Tejo e o silêncio da Fernanda até à morte, já não sei se a ajude, se finja que não vejo.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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