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Olga Bandeira, 61 anos, não presta atenção à confusão à sua volta na (re)inauguração da Joalharia do Carmo. Os copos brindam, as vozes celebram e até o flash das câmaras dispara para captar as melhores imagens das peças de filigrana. Mas Olga não quer saber. Com as mãos marcadas pelo labor, continua a praticar o seu ofício, preparando as peças de filigrana para depois as encher com um finíssimo fio.
Olga é uma “enchedeira” de Gondomar e está demasiado concentrada para reparar no lugar que hoje a acolhe: a Joalharia do Carmo, em plena baixa de Lisboa, uma Loja com História das mais emblemáticas do Chiado.
Uma das primeiras casas neste lado da muralha do Carmo, cuja fachada Arte Nova foi desenhada em 1925 por Norte Júnior – também autor da Brasileira -, e que permanece inalterada. Agora, a joalharia foi recuperada para receber belíssimas peças de filigrana.

Apenas peças de filigrana – como se uma jóia da arquitetura recebesse as maiores jóias da joalharia portuguesa.
No meio do rebuliço, Inês Barbosa é uma dessas artesãs que tem uma vitrina dedicada a peças dela. É natural da Póvoa do Lanhoso e trabalha no ramo da filigrana há 44 anos. E é no ambiente de festa que se celebra o trabalho dela, e de Olga, num dia em que a história desta joalharia está prestes a mudar.




Tudo graças a um protocolo entre o Grupo Valor do Tempo (fundador da Mensagem de Lisboa), os municípios da Póvoa de Lanhoso e de Gondomar e o organismo de certificação de filigrana, a A. Certifica, que estabelece que nesta joalharia se passará a vender apenas filigrana certificada.
Mas o que é isto da filigrana certificada?

Teresa Costa, da A. Certifica, explica por outras palavras: “Certificar qualquer produto tradicional artesanal implica que haja um caderno de especificações que explique a história do produto, as características do produto, a matéria-prima do produto e a forma como é feito”. Uma quase “Bíblia” da filigrana certificada.
E Olga Bandeira, com as mãos bem treinadas, é uma das artesãs (neste caso, enchedeira) cujos produtos são isso mesmo: filigrana certificada.
“Eu gosto disto”, diz ela, sempre à volta dos fios delicados. Aprendeu com a mãe, na sua terra, Jovim, Gondomar. “O meu pai era daqueles senhores que achava que a mulher era para ficar em casa, e por isso a minha mãe ficava a encher as peças”. Todas as irmãs aprenderam, mas Olga foi a única a abraçar a profissão.

Esta é uma paixão que é partilhada por Inês Barbosa, que aprendeu com o pai: “Continua a ser muito gratificante chegar ao final do dia e ver as peças prontas”, diz.
E ver a sua obra homenageada nesta joalharia é motivo de orgulho: “A Joalharia do Carmo tem agora o princípio de vender filigrana certificada e isso vem dignificar o trabalho do artesão”. No meio do Chiado.
A filigrana, protagonista da Joalharia do Carmo
A palavra “filigrana” deriva do latim “filum” (fio) e “granum” (grão). Ou seja, significa “fio granulado” e consiste numa técnica em que se recorre a finíssimos fios de ouro ou prata para que, achatados, encham o “esqueleto” que o artesão criou.
São as enchedeiras, como Olga Bandeira, quem faz esse difícil e minucioso trabalho de encher o esqueleto. Uma profissão que muitos dizem estar em vias de extinção.

É uma arte antiga, que remonta aos tempos antes de Cristo, a territórios como a Mesopotâmia, a Capadócia e a Anatólia, viajando até às civilizações greco-romanas. Na Península Ibérica terá também surgido na Antiguidade, mas só bem mais tarde, por volta do século XIV, é que se começaram a instalar as primeiras oficinas de ourives.
O coração de Viana, talvez o exemplo mais conhecido de filigrana, é do século XVIII e foi criado mediante ordens de D. Maria I quando nasceu o seu filho varão: era para ele aquele coração em ouro, em homenagem ao Sagrado Coração de Jesus.
Um século mais tarde, a filigrana tornava-se definitivamente símbolo da ourivesaria portuguesa, com os principais centros de produção no Porto, Gondomar e Póvoa de Lanhoso.
Uma tradição que se tornou imagem de marca da Joalharia do Carmo, aberta em 1926 depois de comprada pelo ourives portuense Alfredo Pinto da Cunha (dantes pertencia a Raul Pereira, que aí teria uma ourivesaria com o seu nome).

A joalharia abriu com a fachada estilo Art Noveau desenhada por Norte Júnior, o arquiteto que mais prémios Valmor ganhou até hoje, e permaneceu na família até 2020 – quando passou para o Grupo Valor do Tempo.
E voltou a ter a filigrana como protagonista. “Agora, queremos dar palco aos 22 artesãos aqui representados”, diz Bárbara Sousa, responsável pela joalharia do Carmo.
Uma arte que se está a perder?
Muitos acreditam que a filigrana é uma arte esquecida, que se está lentamente a perder. Isto porque é um trabalho transmitido de pais para filhos, ao qual as novas gerações não parecem aderir com tanto entusiasmo.
É verdade: Olga e Inês aprenderam com as suas famílias, sim. Mas a arte não fica por aqui. As filhas de Inês seguiram os caminhos da mãe: são já a 6ª geração de ourives na família.

Porém, o caso que talvez mais surpreenda é o de Arlindo Moura, o mais jovem artesão na Joalharia do Carmo, com as suas peças também aqui expostas. Arlindo, um gondomarense convicto, tem apenas 35 anos e já é formador na principal escola de ourivesaria de Portugal, o CINDOR.
Como já seria de prever, aprendeu o ofício com a família: é também a 6ª geração de ourives. “Costumo dizer que não nasci num berço de ouro, mas aprendi a andar dentro da oficina”, conta ele com grande orgulho. Reconhece que há menos artesãos do que antigamente, mas ainda há quem tenha uma grande paixão pela joalharia, como ele.

Uma paixão que, nas novas gerações, pode até ganhar novas “gramáticas”. “Nós associamos a filigrana ao emblemático coração de Viana”, diz Bárbara Sousa. “Mas hoje em dia, os artesãos já trabalham a técnica de uma forma mais modernizada, adaptando as peças ao estilo de vida contemporâneo”.
E há quem veja na filigrana uma possibilidade para uma arte mais conceptual. É assim mesmo que Eugénia Seixas, a única artesã de Ovar, vê as suas peças.
Ao contrário da maioria, ninguém da família fabricava filigrana, mas quando começou a trabalhar na área do design, o interesse cresceu e acabou por se formar neste técnica, criando joalharia contemporânea e até mesmo sustentável.
São novas formas de olhar para a tradição que, embora causem controvérsia entre os públicos mais conservadores, são bem-vindas para Olga Bandeira, uma das mais antigas enchedeiras. “Acho bem que se faça a filigrana de novas formas”, diz ela, ainda em volta das suas peças, sem nunca deixar o barulho da celebração interromper-lhe o trabalho.
São as mãos dela que resistem, sem nunca deixar a tradição morrer. Agora homenageada na rua do Carmo, em Lisboa.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt