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“O que queres ser quando fores grande?” Uma pergunta comum que os mais velhos fazem aos mais pequenos e que nunca fizeram a Rogério Rosa quando ele era criança. Não lhe foi permitido sonhar por causa de uma doença. Teve sarampo na infância e uma das sequelas foi a perda quase total da visão. Rogério é amblíope – tem 24% de capacidade visual – e por esta razão os adultos com quem se cruzou não o deixaram sonhar. Mas Rogério contrariou-os. Conta a sua história com mágoa, mas vê-se que sonha. Sonha alto e quer ser um exemplo para os deficientes visuais.
Apesar de todas as circunstâncias do seu percurso pressuporem uma vida à margem, a vontade de provar que a deficiência não o define fez que o seu currículo esteja cheio de formações e experiências profissionais diversas, numa vida que se mistura com as ruas de Lisboa.
Passou por vários lugares, ruas e instituições sem pertencer verdadeiramente a nenhum. Nasceu em Alcântara “numa família desestruturada” e quando teve sarampo a mãe e a família materna abandonaram-no. Viveu na Santa Casa da Misericórdia até que os avós paternos o adotaram. “Os meus avós eram muito pobres, mas o que me deram superou toda a miséria: deram-me amor e carinho. A minha avó era vendedora na Praça da Ribeira e o meu avô era engraxador no Largo de Alcântara. Apesar de serem pessoas humildes, trataram muito bem de mim, mesmo com a vizinhança a achar que eles não me deviam ter”, recorda Rogério.

Acabou por ir para um colégio interno em Campo de Ourique, o Colégio António Feliciano Castilho, onde apesar de sentir os limites impostos pela sociedade em virtude da deficiência – “nós fomos formatados para não ter sonhos. Um cego e um amblíope, que é o meu caso, não podia ter sonhos porque não podia fazer nada da vida. Ou era pedinte ou ficava em casa” – reconhece que a formação académica e o ambiente eram agradáveis. Aliás, a instituição foi a “tábua de salvação de muitos miúdos”, que acabaram por ir para a universidade ou ter outro tipo de formação profissional.
O colégio ficava em frente a um quartel de bombeiros e havia, assim, muito convivência entre bombeiros e alunos. Muitos sonhavam vestir fardas quando fossem adultos. “Estávamos com bombeiros e comentávamos que gostávamos de seguir esse caminho, mas diziam-nos que éramos malucos”, lamenta.
Mas foi quando saiu do colégio que teve realmente consciência da sua condição. “Antes, vivia naquele mundo protegido, tinha aquela família de substituição. Depois, veio a vergonha, porque os miúdos eram diferentes de mim.” Lembra que um dos episódios que mais o embaraçava era ter de ler, porque para conseguir fazê-lo, os seus livros eram muito maiores do que os do resto da turma.
A mudança de escola coincidiu com a altura em que foi viver com o pai. A dinâmica entre os dois não funcionou, uma vez que não havia “afeto entre pai e filho”. Apesar de o pai de Rogério lhe ter arranjado um emprego na Carris, o jovem, com 16 anos na altura, não se adaptou. Acabou por fugir de casa e fazer do Jardim do Torel o seu “porto seguro”.
Sem dinheiro e família que o ajudasse, só pensava: “como é que posso sair desta situação?”. Passou pela Sopa dos Pobres e por uma pensão até que chegou à “antiga Associação de Cegos Louis Braille, hoje ACAPO”. Conseguiu sair da rua e tornou-se autónomo para “procurar outras coisas”.

Voltou à escola para terminar o 9º ano e anos mais tarde, o teatro entrou na vida dele. No 1º ciclo já tinha entrado numa peça de teatro, mas não foi uma experiência positiva porque magoou-o não ver ninguém da família na plateia.
Agora era diferente. Corria o ano de 1984, já com 20 anos, quando surgiu a hipótese de participar num festival de teatro. Uma condição apenas: tinha de escrever a sua própria peça. Em menos de 24 horas, Rogério escreveu um monólogo sobre o tempo em que esteve na situação de sem abrigo. Ganhou o segundo lugar e começou a sonhar com uma vida de ator. Mas, como “não conhecia ninguém no teatro”, teve “de procurar outras coisas”.
Passou pelos bombeiros, foi telefonista, porteiro, trabalhou num refeitório, participou na Marcha de São Vicente de Fora, mesmo só vendo um metro à frente dele. Nas várias reviravoltas com que a vida o tem surpreendido, o pensamento é sempre o mesmo. “Se não tentarmos, nunca ninguém nos vai dar valor porque só olham para nós como pedintes e coitadinhos. Temos de ter força de vontade e mostrar que uma pessoa com deficiência, apesar da limitação e da diferença, pode conseguir fazer muita coisa. Foi o que fiz e fui sendo chamado”.
A par das diversas experiências profissionais, foi fazendo trabalhos de representação. Entre novelas, filmes, séries e peças de teatro já fez mais de 40 participações, mas lamenta não ter conseguido até agora papéis mais relevantes e que o entretenimento português não dê oportunidades às pessoas com deficiência. “Mesmo quando há personagens cegas, não chamam cegos. Dão formação aos atores, não faz sentido”, diz.
Ainda assim, Rogério não desiste e aposta na formação. Já fez formações em jornalismo, guionismo, produção e serviço social. Agora, foi aceite na licenciatura de Psicologia porque quer “compreender a vida”. Está também a tirar um curso de técnico auxiliar de farmácia. “Desde 2011, a minha vida tem sido formações profissionais.”
O teatro continua a ser, no entanto, o sonho maior. “A representação é do que mais gosto, faz-me viver vidas que não posso viver. Absorvemos o que não conseguimos ser.” E, por isso, acredita num futuro risonho. “Ainda vou conseguir um papel numa novela do início ao fim e não apenas figurações especiais. É este o meu sonho agora”.

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* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Pires.