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Ainda sabe a verão, mas os ares de outono já nos invadem as ruas. As plantas sabem-no. Em breve será tempo de se tingirem em tons de castanho, vermelho e amarelo, um espetáculo imposto pelo arrefecer dos dias, menos luz e a supressão de clorofila – o pigmento que confere os tons verdes. De seguida, ritmadas pelo vento, folhagens misturar-se-ão no chão. Mas engane-se quem reduz as operações vegetais a preparativos para o repouso invernal. Assim acontece com a paineira.
A Ceiba speciosa floresce quando tudo parece querer adormecer. Mal se finda o verão, desta árvore oriunda da região que corresponde agora ao Brasil e Argentina, brotam flores em forma de sino, de um cor de rosa intenso.
Ao deixarem-se cair, com a graciosidade de uma dança silenciosa, cada flor de cinco pétalas formará fartos tapetes florais. Este fenómeno acontecer em outubro é outra evidência do trato feito pelas árvores da cidade para que as suas florações não compitam pela atenção dos nossos olhos.


Em Portugal, diz-se que a Paineira é a árvore da memória, pois a flor surge durante a primavera brasileira. Em bom rigor, a sua boa memória não reside aí. Pode não saber do seu próprio paradeiro, mas certamente sabe as estações e donde veio, florindo cá no outono, tal como aconteceria no Brasil, existindo apenas um diferimento nos meses – lá seria entre março e junho.
Quem fez a paineira chegar à Europa?
A primavera e o outono são estações que têm muito em comum. Se parece estranha a afirmação, importa notar que o outono, no seu âmago, é uma segunda primavera, que os jardineiros aprenderam a aceitar.
Na peça do escritor e filósofo Albert Camus, Le Malentendu, ainda ecoa “o outono é uma segunda primavera, quando cada folha é uma flor”. É algo teatral e poético, que se reveste de verdade, não fossem ambas estações intermédias, pautadas por estímulos visuais de transição, carregadas de cor, cheiros e temperaturas algo amenas.
Ah, e ambas propícias a novas e fecundas plantações.
À Europa, a paineira parece ter chegado por semente brasileira e mão francesa, na primeira metade do século XIX. Tanto quanto a memória escrita nos permite recuar, pensa-se que foi introduzida primeiramente na costa mediterrânica de França, na cidade de Nice.
Seria de esperar que tivesse sido nalgum jardim português, dada a origem, mas disso não existem registos fidedignos. Não o devemos estranhar muito, afinal foi “descoberta” e descrita em primeira mão pelo botânico francês Auguste François de Saint-Hilarie, nos anos 20 do século XIX. De seguida, em 1824, publica Plantes usuelles des Brasiliens: ouvrage dédié a S. M. l’Empereur du Bresil, o primeiro documento que a refere, denominada então de Chorisia speciosa.
A restante viagem da árvore reconstitui-se apoiada em escassos documentos e deduções lógicas, que ligam as pontes existentes. No entanto, como é costume com árvores provenientes de antigas colónias, o papel dos portugueses assume-se central na difusão da tropicalidade do novo mundo.
Em 1877, a título de exemplo, sabe-se que Paris recebia sementes desta espécie provenientes de uma árvore do Jardim Botânico de Coimbra, um costume anual entre Jardins, que assegura a diversidade e conservação das espécies.
No nosso velho continente, a paineira só começou a florir no fim do século XIX. É certo que não devemos fomentar intrigas botânicas entre países, mas fomos os primeiros a descrever a floração da árvore na Europa, mais concretamente no Jardim Botânico de Lisboa, tendo isso ficado documentado num texto que data de 1888.
Os relatos de floração sucedem-se, cronologicamente, em Espanha (1893), Itália (1894) e, por fim e com ironia, em França (1913), o primeiro país a acolhê-la. Se aqui floriu mesmo pela primeira vez, é algo que se deve a uma terra e clima afamados por agarrar as árvores exóticas com o mesmo entusiasmo com que as trouxemos.

A árvore dos beija flor
Na América Latina, há quem a trate a paineira por árvore dos pássaros, sendo os beija flor um dos seus polinizadores. A bem dizer, também é das borboletas, outras visitantes assíduas que não dispensam as suas flores.
Nas primeiras décadas de vida, apesar da beleza que atrai, só os que voam podem usufruir dela e tocar-lhe, o que se deve aos espinhos que vestem o frágil tronco de uma força cortante, contra as agressões do meio natural, nomeadamente os primatas.
Nos frutos que asseguram a descendência das plantas, esses animais conhecem as sementes por iguaria.
Dentro do fruto, está também a paina – de onde vem o nome da paineira – as fibras brancas que associamos ao algodão e lhe dão o nome. A leveza do material impulsiona uma curta e amortecida dispersão das sementes.
Para muitas comunidades brasileiras, ainda hoje, utiliza-se a paina para enchimento de almofadas, colchões, sofás e até de roupas. Se as deixam no chão, o manto de flores dá lugar a um nevar vegetal, dada a densidade de paineiras e respetiva paina.

É neste lenho dilacerante que o passar dos anos fica marcado por voluptuosas transformações.
Duas décadas depois, começa, aos poucos, a despojar-se dos espinhos, da base até aos ramos que suportam a copa. Quiçá um sinal de segurança, dado pela idade, de que o seu corpo e linhagem perdurarão.
O tronco verde tende, com o passar do tempo, a assumir uma tonalidade cada vez mais cinzenta, deixando em evidência um robusto tronco, onde há quem veja uma barriga. É isso que lhe vale a alcunha de “palo borracho” na Argentina, que é como quem diz vara bêbada.
Curiosamente, o tronco da paineira, mesmo com boa idade, tem uns filamentos verdes que também fotossintetizam. Por esse motivo, mesmo durante o inverno, continua a abastecer-se da energia do sol sem precisar de folhas, ao contrário de muitas outras árvores caducas que não têm remédio senão remeterem-se à poupança de energia.
Encontra-se difundida por Lisboa, porém permanece uma espécie de jóia rara nos jardins da cidade, com apenas 93 exemplares, em 21 jardins, um número consideravelmente inferior a outras exóticas.
No livro-roteiro das Árvores na Cidade, da autoria de Graça Saraiva e Ana Ferreira de Almeida, podemos encontrar esta espécie destacada em dois percursos: “com vista para o Tejo”, junto do Mosteiro dos Jerónimos; nas “colinas de Lisboa romântica”, no jardim do Príncipe Real e na Praça da Alegria.

Sem classificação, mas não de menor importância, encontram-se ainda no jardim da Igreja dos Anjos, Parque Eduardo VII, Jardim Botânico da Ajuda, Jardim do Palácio de São Bento, Largo das Necessidades, entre outros.
Depois da floração e do nevar que a sucede, voltará a fazer coro com as outras plantas, enchendo-se de folhas. Muitas estações volvidas, sempre sem nunca conseguir ocultar uma barriga cada vez mais embriagada.

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Leonardo Rodrigues
Nascido na Madeira, o seu coração ficou por Lisboa. Estudou comunicação na FCSH – UNL e fotografia no Cenjor. Depois de muitos ofícios, é a contar histórias que se sente bem. Acha que não existem histórias pequenas, anseiam é por ser bem contadas. Quando não está a escrever, é aprendiz de jardineiro. @leonismos no Twitter.
Gostei muito do comentário explicativo sobre a cidade de Lisboa. Adoro a nossa Lisboa colorida.