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O ruído aeroportuário noturno afeta grande parte da população de Lisboa. Foto: unsplash

Uma moção apresentada pelos membros da CDU de Alvalade foi aprovada na Assembleia de Freguesia – com votos favoráveis de todos os partidos – propondo o fim dos voos noturnos no vizinho aeroporto de Lisboa, e sobretudo contra a notícia de que a NAV (Navegação Aérea) propunha voos noturnos sem restrições durante o período entre os dias 18 de outubro e 29 de novembro.

Uma decisão “profundamente lesiva da saúde, da tranquilidade e da segurança” da população”, diz-se na moção. São “40 noites” em que o bairro, “dos mais afetados pelo aeroporto”, não iria conhecer descanso – além do que já se sente. O projeto já tinha feito parte da campanha da CDU em Alvalade, mas desta vez recolheu apoio unânime.

Também a recomendação do Livre contra os voos noturnos e a moção do PCP foram aprovadas em reunião de Câmara.

Aquilo que está em cima da mesa é a abolição, temporária, das restrições de voos durante a noite, para que se instale e teste um novo sistema de gestão de tráfego – o TopSky. Para tal, “nem todos os movimentos aéreos” poderão ser realizados “nas faixas horárias previamente atribuídas”, conforme explica o Ministério das Infraestruturas.

O projeto esteve em consulta pública até ao passado dia 4 de outubro. Mas Alvalade quer que a proposta seja retirada, mesmo assim.

O avião no meio dos prédios de Avalade. Foto: Jornal da Praceta

Por lei, entre a meia-noite e as seis da manhã o regime de exceção para voos noturnos permite um máximo de 91 movimentos por semana e 26 por dia (com algumas exceções para aeronaves de Estado, emergências médicas, motivos de força maior, etc.). Mesmo neste regime há falhas, com várias noites em que se registam muito mais voos – como na semana de 11 de julho em que se realizaram 140 voos.

A ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável foi das associações que mais se manifestou em relação aos voos sem restrições naquele período experimental. Por um lado, a informação disponibilizada numa primeira fase começou por ser parca, por outro, gerou-se o medo de que a implementação deste sistema levasse a um aumento dos voos quer noturnos, quer diários.

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A NAV propôs voos noturnos sem restrições durante um mês no aeroporto da Portela. Foto: unsplash

Afinal, o motivo pelo qual o aeroporto de Lisboa vai aderir a esta nova tecnologia deve-se ao “volume considerável de faixas horárias (“slots”) atribuídas para o ano de 2022, que praticamente esgota o nível de capacidade disponível”.

Para a ZERO, isto é, claro, um problema: “Esta adaptação do software permitirá aumentar a fluidez de tráfego e, leia-se, o número de movimentos possíveis”, diz Acácio Pires, da ZERO.

O Ministério das Infraestruturas apressou-se a garantir de que “não se trata de aumentar o número de movimentos aéreos diários já planeados, nem de acabar com as limitações”, mas sim de uma medida de caráter excecional e temporário, que prevê medidas de mitigação como aterragens e descolagens em pistas mais seguras, recurso a técnicas para a minimização do ruído e a aeronaves com motores menos ruidosos.

Noites em claro

Para muitos, Alvalade é o “bairro perfeito”. A moradora Helena Costa diz ter tudo à distância de 15 minutos: transportes, comércio, espaços verdes. Mas há mais uma proximidade, e essa não é positiva: o aeroporto Humberto Delgado. É a poluição, o cheiro a jet fuel e o ruído, que nem à noite dá descanso. “Tive de comprar tampões para adormecer”, conta.

Helena Costa não está sozinha. Joana Domingues, também moradora em Alvalade, diz mesmo: “Desde que fui mãe piorou porque a minha filha acorda… ”. E Samuel Freire desabafa: “É um inferno. Começa antes das 6 da manhã e termina bem depois da meia-noite. Por vezes as janelas tremem”.

Serão cerca de 57 mil as pessoas afetadas pelo ruído aeroportuário, uma realidade que afeta sobretudo Alvalade, Campo de Ourique e Loures, mas que também se faz ouvir em Campolide, Avenidas Novas, São Domingos de Benfica.

No ano passado, a ANA Aeroportos comprometeu-se a insonorizar uma lista de 23 “edifícios sensíveis” e de 46 edifícios com 531 habitações afetadas pelo ruído, mas ainda nada aconteceu.

É que o problema não é só o ruído dos aviões, que, de noite, chega a atingir os 65 dB em algumas áreas, quando o limite legal são 55 dB no geral e 45dB junto a edifícios sensíveis (durante o dia, os limites legais são de 65 dB e 55dB). O problema é também que o limite de voos noturnos não é cumprido.

Mapa de exposição ao ruído aeroportuário. Fonte: Mapa do Ruído do Aeroporto Humberto Delgado – Resumo Não Técnico (Março de 2017)

Em 2019, durante dez dias, a ZERO cruzou o número de movimentos no Aeroporto de Lisboa registados no site da ANA – Aeroportos de Portugal S. A. (partidas e chegadas) com o site Flightradar24.com. Resultado: em sete dos dez dias, os voos noturnos ultrapassaram a legislação diária. Numa semana, realizaram-se 184 voos noturnos (mais do dobro do permitido).

Expansão ilegal do Aeroporto da Portela?

Francisco Costa, assessor do gabinete de vereação do Livre na Câmara Municipal de Lisboa e que participou no processo de consulta pública enquanto freguês de Alvalade, diz conseguir perceber do seu apartamento se o vento é favorável aos voos, pois os seus filhos acordam quando assim acontece, pedindo para dormir na cama dos pais.

“Os aviões estão a levantar para este lado”, diz-se no bairro.

Francisco Costa também questiona o que se entende por “aumento da eficiência” do aeroporto com a implementação deste novo sistema.

“Apesar de não ser explícito, ‘aumento da eficiência’ pressupõe um aumento significativo da capacidade do aeroporto, de slots e dos voos, quer diurnos quer nocturnos e com ele um forte aumento tanto da poluição sonora e atmosférica, tanto como da pressão turística que já é incomportável em muitas zonas da cidade”.

Francisco Costa, no documento que submeteu à consulta pública da portaria

A ZERO crê aliás estar perante mais um passo em direção à “expansão ilegal do Aeroporto da Portela”. Em 2006, quando a expansão do aeroporto foi sujeita a uma Avaliação de Impacto Ambiental, previu-se o seu encerramento em 2015 – o que, claro, não aconteceu. Nessa altura, o problema do ruído estava já bem presente e, no entanto, o aeroporto continuou a crescer, como aponta a associação:

  • O espaço aéreo foi reorganizado;  
  • Encerrou-se a pista cruzada 17/35, que mantinha níveis de segurança mais elevados em condições de vento adversas;
  • Construíram-se duas saídas rápidas na actual única pista do aeroporto;
  • Atualizou-se o sistema de controlo de tráfego aéreo para o adequar à nova capacidade aeroportuária (agora em causa);

O aeroporto cresceu e registou subidas de voos. Dados da EUROCONTROL mostram que:

  • em 2017 se registaram 203 427 operações de voo;
  • em 2018 subiram para 217 696;
  • em 2019 para um total de 221 165;

Aquilo que a ZERO acredita que está a acontecer é o que se chama um “salami slice”. Isto é, está a dividir-se o projeto em pequenas fatias para se evitar fazer um Estudo de Impacto Ambiental, uma prática que já foi condenada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Por tudo isto, a ZERO continua a defender que, no âmbito da Avaliação Ambiental Estratégica, finalmente aprovada em setembro deste ano, se quantifiquem os custos para a saúde pública da manutenção do aeroporto.

Mas, afinal, porque é que se voa à noite?

Em 2005, um relatório da Comissão Europeia em relação aos voos noturnos revelava que mais de 3,6 milhões de pessoas eram afetadas pelo ruído noturno. E não há como fugir à questão: os voos noturnos têm impactos na saúde da população.

Um estudo da Imperial College London publicado em 2008 explica como os voos noturnos aumentam a pressão arterial, até mesmo naqueles que não acordam com o barulho.

Já o Greiser-Study estabelece a relação entre problemas cardiovasculares, ataques cardíacos, cancro e o ruído aeroportuário noturno.

Desde então que alguns aeroportos tomaram medidas, restringindo os seus voos no período noturno. No panorama europeu, há um aeroporto que se distingue: o de Zurique, que proibiu os seus voos no período entre as 23h30 e as 6h da manhã. Mas na maioria dos aeroportos este tema continua ser alvo de discussão.

Então, afinal, por que é que se viaja à noite? Sobretudo para se transportar material de carga e para que as companhias aéreas recuperem atrasos.

As razões são também económicas: os voos noturnos permitem o uso das aeronaves na sua totalidade, mantendo os custos mais baixos. Para além disso, se não pudessem operar à noite, as companhias seriam forçadas a oferecer menos voos ou a comprar mais aviões.

Mesmo assim, um estudo em relação ao aeroporto de Heathrow, em Londres, concluiu que os benefícios económicos em proibir os voos noturnos seriam na verdade positivos. Isto porque os custos seriam compensados pelo que se pouparia em despesas de saúde.

No Reino Unido, a proibição dos voos noturnos permitiria poupar 860 milhões de libras por ano face a uma perda de 35 milhões. Só ocorreria uma perda significativa se os passageiros que viajassem de Heathrow parassem de o fazer com esta proibição.

No aeroporto de Heathrow, proibir-se os voos noturnos permitiria poupar 860 milhões de libras. Foto: unsplash

Em Lisboa, os especialistas acreditam que os benefícios também compensariam esta escolha: “O aeroporto de Lisboa, de acordo com as estimativas, deverá afetar 10% de toda a população nacional a nível de ruído”, denuncia Acácio Pires. “O custo da saúde pública poderá situar-se nos 4 mil milhões de euros durante os próximos 40 anos”.

Se o ruído já é um problema noutras cidades europeias, em Lisboa pesa o facto de o aeroporto estar tão próximo da cidade. Segundo a ZERO, Lisboa é a segunda pior capital europeia no que diz respeito à exposição ao ruído do tráfego aéreo.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

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