Lisboa tem um bairro histórico muito antigo e que teve já muitas peles. Oficializado 2º bairro da cidade em alvará régio no ano 1593, foi o Lugar do Mocambo, morada de ricos oficiais das carreiras de África e Índia que coabitavam paredes meias com a mão-de-obra escrava africana.

Veio a ganhar o actual nome por acaso de corruptela fonética: Ali estava o convento da Bernardas que dera nome à rua das Madres, esta vizinha da rua de Goa. Os locais só tiveram que fazer ali um copy-paste, uma colagem que até hoje não descolou.

Já Madragoa, no início do século passado, alguém a descreveu como “a Mesquita”, estereótipo inventado por excesso de exotismo no Orientalismo, à moda na época. A julgar pela intenção, teria mais lógica chamar-lhe “A Almedina” ou “O Souk”.

E porquê? Pelo colorido dos trajes dos residentes? Ou seria pelo constante musical destes pregões?

-“Há lulas p’rá tejelada!”
-“Ólhá sardinha viva e grande da costa!”
-“Ólha os belos camarões!”
-“Ólha a posta da corvina”
-“Quem quer tainha gorda!”

Ou seria pelos olhos negros, tez bronzeada pelo sol, cabelos encaracolados de sal e porte altivo dos ovarinos que contrastava com a brancura dos urbanos alfacinhas?

Os ovarinos e muitos pescadores da região da Ria de Aveiro, não apenas de Ovar como de Ílhavo ou da Murtosa, vinham desde o início do século XIX para a capital de comboio vender legumes frescos e peixe.

Por questões práticas acabaram por se fixar com as suas mulheres no bairro mais próximo dos locais de venda do pescado que se fixaram na hoje desaparecida praia de S.Paulo – o Mercado da Ribeira Nova, local do atual Mercado da Ribeira.

Esse bairro era a Madragoa, as suas mulheres as famosas Varinas que de tão belas deixaram perder a letra “Ó” para a oferecer a quem por elas passava.

– “Eu ontem fui passear/nas ruas da madragoa/Vi uma certa varina/logo fiquei com a cabeça à toa” (António Mourão, fado “Varina da Madragoa”)

De pés descalços, perna nua e desenhada, saia subida, mão na cintura adelgaçada pela faixa apertada, vestida com cores garridas e bem combinadas, quase sempre de colar e brincos de ouro, lenço bonito a emoldurar o rosto e chapelinho de feltro preto para sustentar o peso da canastra, a varina deslizava a partir da lota por toda a cidade, fizesse sol ou chuva.

O fado correu atrás da beleza das varinas e o Estado-Novo fotografou-as em pose de propaganda. Mas são os relatos da época que nos atestam a veracidade das suas faculdades.

O escritor brasileiro Gilberto Freyre disse serem “como baianas de tabuleiro enfeitado e xaile vistoso, acrobatas maravilhosas das ladeiras”.

O jornalista Luiz Teixeira viu-as como o “mais belo friso decorativo no recorte pitoresco das sete colinas”.

Fernanda de Castro, que também escreveu fados e marchas, abraçou-as com ternura, eram “a imagem de um mar pequenino feito à medida dum coração”.

O olisipógrafo Gustavo de Matos Sequeira exagerou, descobrindo-lhes “herança fenícia refundida em moldes gregos, com atributos que atestam tal herança: tez morena, feição carregada, olhos escuros, tronco curto e direito e porte altivo.”

É outro Grande Alfacinha, Oliveira Martins, que ganha a taça: “São mulheres anfíbias”.

Maria dos Anjos, a menina varina, não chegou lá, a isto de se ser um fenício friso baiano e anfíbio. Foi sim, e pela mais triste razão, a varina mais conhecida e falada do seu tempo.

Com os seus pais e irmãos, vindos da Murtosa, partilhava um pequeno piso térreo da rua do Cura, Madragoa, e todas as manhãs descia à lota para depois furar a cidade até aos seus arrabaldes. Com apenas 13 anos, já tinha físico para fazer quilómetros, tal como os seus irmãos ardinas que corriam do Bairro Alto à Baixa.

No dia 31 de julho de 1908, Maria dos Anjos repetia um trajecto habituado, mão na cintura, apregoando “peixe fresco e da costa” ao longo da Azinhaga de Santa Luzia, mais ou menos onde hoje fica a escola Secundária Padre António Vieira.

Seria uma adolescente bonita, uma réplica em miniatura da sua mãe, na gestualidade, na modulação da voz – ao observarmos as cruas fotos publicadas nas 7 páginas da revista semanal “Ilustração Portuguesa” (17.08.1908), seria mesmo o tal “mar pequenino feito à medida dum coração”.

“Sob a violenta excitação dos desacostumados calores estivais, que Lisboa tem suportado este ano e que em alguns dias chegaram a corresponder a verdadeiras temperaturas tropicais, tem-se produzido uma série de crimes e uma série de suicídios que despertam uma natural impressão”, começava por justificar o artigo desta revista. “Na enfiada destes crimes, o que mais alarme provocou, pelos pormenores odiosos que o revestiram, foi o assassínio de uma pobre rapariga de treze anos, varina (…)”.

Entre peixes e canas partidas, Maria da Luz foi encontrada sem vida, asfixiada com o seu lenço apertado no pescoço. Apesar de muito se ter escrito e investigado, apesar da revolta da opinião pública lisboeta e da persistência da comunidade ovarense, nunca se descobriu o ou os autores do crime. Segundo a autópsia, do estupor gesto não houve estupro, não lhe subiram a saia ou abriram o vestido de cores garridas.

Apenas levaram o colar e os brincos de ouro. E a linda Varina da rua do Cura, Madragoa.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:


nuno-saraiva

Nuno Saraiva

Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *