Assim que vi a Matilde, irritou-me. É como sou, debaixo do calor estalo e quando vejo miúdas assim tenho vontade de rosnar. Lá estava ela na praia, com o sol a cair-lhe em cima, protector solar na pele. Ia à água e ria, fugia quando a espuma de uma onda mais brava lhe chegava aos pés. Estávamos na Trafaria, víamos Lisboa de fininho atrás, o MAAT, todo moderno, dava ar de século XXI, mas tínhamos chegado a que passado?

A culpa nem era dela, coitada. Devia ter uns quatro anos, tinha de certeza o peito liso, mas alguém se enganou e meteu-lhe a parte de cima do biquíni. Ela lá corria com um top posto em cima de osso, espartilhada no desconforto inútil.

O soutien, que serve para dar apoio, estava ali como o William de Carvalho no Euro’2021: sem ter o que agarrar, sem servir para nada. Existia sem propósito, e quem raio se terá lembrado de fazer peças tamanho 0 ou -1?

O irmão, claro, tinha direito ao tórax de criança. Já tinha uns seis anos e ninguém se lembrara de lhe amarrar um trapo inútil. Destes pais que cobrem mamilos de crianças fêmeas, pode concluir-se apenas que têm falta de neurónios, e os dois desneuroniozados andavam devagar sem vergonha de terem obrigado a filha ao pudor que se exige a uma mulher. Tinha eu usado o sábado a ver se relaxava e ainda me irritava mais do que em frente ao computador com trabalho para fazer.

Admito que cada vez me custa mais ir à praia. A ideia de um sol a bater em cheio num corpo desprotegido nunca me encheu as medidas, pese embora o protector 50+ para crianças que lá me vai safando do cancro a cada Agosto, mesmo que em Agosto eu fuja de areia perto de água.

Mais há mais do que isto. Alguém se lembrou, nos arredores de Lisboa, de importar o pior do Brasil, e eis-nos com a fantasia de ouvir ondas a bater enquanto a caixa de som de um bar nos viola os ouvidos.

Tenho sempre vontade de reclamar, só não sei a quem, assim como tenho vontade de partir a esplanada em 43 pedaços por ficar irritada quando tento relaxar. Pelo caminho, o que me entra pelos ouvidos é o que me causa alergia aos tímpanos: kizomba, reggaeton e pop. Alguém me cala esta gente?

Mas há mais, que a vida nunca facilita. O gajo das bolas-de-Berlim aparece de dez em dez minutos, e isto num lugar onde toda a gente se vê meio-despida e pensa sete vezes por dia que a partir de amanhã é sagrado, vai reforçar os abdominais oblíquos no ginásio.

Outros levam os cães a passear por ali, por isso quando um incauto leva com um quilo de areia no nariz nem tem como meter na cara o sorriso amarelo que metia antigamente, dizendo ao dono “Não se preocupe, são crianças, é mesmo assim”, porque desta vez o dono não é dono de um filho e devia ter deixado aquela delícia de cãozinho a curtir a maresia do quintal.

Mas há mais? Sim, há mais. Quem vive no alcatrão de Lisboa tem sempre vontade daquele ar puro que compõe pulmões, por isso incomoda que os bares que nos violam os ouvidos resolvam continuar pelas narinas, fritando batatas em óleo usado desde o almoço até à hora de o areal fechar. E no meio disto tudo havia a família da Matilde.

A sério, parecia a gozar. A mãe comia batatas fritas, o pai uma bola-de-Berlim. Ao lado da toalha, tinham uma coluna onde meteram um mix de merengue. O pastor-alemão andava por lá refastelado. O filho parecia o mais normal de todos, a chorar quando não o deixavam comer areia, apesar de já ter idade de entrar para a escola e saber distinguir partículas de rochas degradadas de um pão com Tulicreme.

A filha, enfim, não tinha culpa nenhuma de lhe terem feito aquela pouca-vergonha. Mas alguém esterilizava aqueles pais? Ainda se metiam a comentar o traje das filhas de gente cerebrada, “Já viste, Manel? É uma menina e nem lhe cobrem aquilo. Anda ali de tronco nu como se fosse um rapaz.”

O meu problema é ser avessa a conflitos. Não tenho muita paciência para argumentar com quem julgo idiota, sigo o mantra inventado pela minha amiga Teresa, pacifista até ao fim: “Queres ser burro, sê burro.”

Por um lado, lá lhes queria dizer que, no que toca a biquínis, a criancinha para quem apontavam era mesmo como um rapaz. No tórax, a anos-luz da adolescência, nada os distinguia. Mas valeria a pena explicar que um top numa criança-fêmea é tão necessário como espuma de barbear numa criança-macho?

Não lembra a ninguém, é verdade, mas pelos vistos lembra a muita gente, especialmente – exclusivamente – àquela que, sem achar que faz por isso e no mesmo movimento, sexualiza uma criança e faz de qualquer mulher em potência uma coisinha bela, recatada e do lar.

Verão em Portugal, que me safassem pelo menos os chocos com batatas fritas que iam marchar naquele dia, que começam com esperança e acabam com enjoo. Consegui não ir lá armar barulho: querem ser burros, sejam burros, e a criança, criada por gente assim, talvez não tenha salvação.

Ao sair da praia, a água já estava quente, tinha perdido uma palmilha da alpercata, as unhas que roía sabiam-me a sal, o cabelo saído do mar parecia o meio de transporte do Tarzan, os meus pés de princesa estavam secos e tinha, só Deus sabe como, meio quilo de areia em cada bolso.

Mas o pior desta experiência horrível de ir à praia foi mesmo ter ficado a observar, tal qual ornitóloga com binóculos, aqueles homo que não eram muito sapiens e muito menos sapiens sapiens.

Só para não encontrar mais gente desta, mudei de vida. Que se lixe o mar da Trafaria, que se lixe ver Belém de frente, que se lixe o belo céu de um Verão em Lisboa. A partir daqui, aos sábados, só vou relaxar para a Biblioteca Nacional. Não me chateio com ninguém e pelo menos há ar condicionado.

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Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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1 Comentário

  1. Péssima crónica, um chilriar de preconceitos e pseudo certezas. Se não sabe onde reclamar do barulho, procure saber e faça algo em vez de só se queixar. Claro que está no seu direito de se esconder numa biblioteca, já agora podia evitar este texto ressabiado sem objectivo.

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