Café Joyeux
O Café Joyeux, em São Bento, dá emprego a 14 jovens com autismo e trissomia 21. Em Portugal, estima-se que existam mais de 63 mil pessoas com perturbações do espetro do autismo e mais de 8 mil com trissomia 21. Fotos: Rita Ansone

“Bom dia, bem-vindos ao Café Joyeux”. É a frase que mais se ouve durante a manhã no número 26 da Calçada da Estrela. Quem a diz é David, de 26 anos. Antes, passou por um curso de hotelaria e vários estágios, que nunca resultaram num contrato. Hoje, sente-se útil no espaço que trouxe para Portugal a solução francesa criada por Yann Bucaille em 2017. O objetivo é dar oportunidades de emprego a jovens com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento e, com isso, aproximá-los do dia a dia de todos.

O som do elétrico invade a rua. Dele saem algumas pessoas que caminham pela calçada portuguesa e não ficam indiferentes ao espaço pintado a preto e amarelo. Param e espreitam pelas grandes e largas janelas do café. Nem todos entram, mas os que o fazem são recebidos pelo sorriso e pelos olhos azuis de David, herdados da sua ascendência holandesa, da parte do pai.

“English!?”, pergunta a dois turistas. No Café Joyeux, a maior parte da equipa é composta por jovens com perturbações do espetro do autismo ou portadores de trissomia 21, que aqui encontram o primeiro emprego, como é o caso de David, Lurdes e José.

Num período de dois anos, são desafiados a passar seis meses em cada uma de quatro diferentes áreas: a caixa, o serviço de mesa, o bar e a cozinha. Lado a lado, estão acompanhadas pelas supervisoras Fernanda na cozinha e Nadma na sala. São trabalhadoras com experiência na restauração que tudo organizam e orientam. No final, os jovens recebem um diploma que os acredita como trabalhadores polivalentes na área da restauração.

Filipa Pinto Coelho, presidente da Associação VilacomVida, explica o processo: “eles são formados on the job. É uma escola com trabalho e salário. Isto dá-lhes confiança: não estão num projeto em que ao fim de dois meses vão para casa, como acontece nos estágios que lhes oferecem”. Tudo funciona com base num contrato sem termo, o que significa que ao fim de dois anos, se assim entenderem, podem ficar a trabalhar.

A história de David mostra isso. “Já tive duas experiências de trabalho em estágios não remunerados. Aqui, finalmente estamos a ganhar dinheiro.” Junto à sala, em cada degrau da escada que dá acesso à cozinha, desenha-se uma lição: a minha diferença é a minha força. Por cima, na parede, emolduram-se os rostos de quem ali trabalha.

Lurdes e José são dois deles. Perto da hora do almoço, já se encontram na cozinha, auxiliados por Fernanda, a preparar os menus, desde a “reputada” lasanha de salmão e espinafres às quiches, prato favorito de Lurdes, de 21 anos. Vive em Oeiras e o facto de ter de se levantar cedo para apanhar o comboio não é desmotivador. “Gosto de tudo aqui. Pela experiência, aprender a lidar com pessoas e perceber que sou capaz de fazer muitas coisas”, diz.

O Café Joyeux mudou-lhes a sua vida. José faz contas: lembra-se bem do primeiro dia, 23 de novembro de 2021, se bem que a inauguração foi a 20, acrescenta. “Gosto de trabalhar aqui, de preparar os pedidos, as receitas e tratar da loiça. Ainda vou experimentar a sala e estou com curiosidade para falar português e inglês”, explica José, 23 anos.

Ana Castro Santos é psicóloga e técnica da equipa de impacto. Acompanha os jovens, as famílias e os supervisores. Foto: Rita Ansone

Ana Castro Santos é psicóloga e técnica da equipa de impacto. Acompanha os jovens, as famílias e os supervisores. Para si, o grande impacto dá-se nos jovens: “a maior transformação é eles próprios perceberem que são capazes. A primeira coisa que perguntamos quando conhecemos alguém é como te chamas e o que fazes. Eles agora já são capazes de dizer onde trabalham, que são precisos aqui e nesta função.”

David brinca ao dizer que ajuda os colegas em tudo o que “for preciso”. “Puxo por eles para trabalharem. Praticamente comando as tropas.” Acima de tudo, sente-se valorizado e integrado: “Fui uns dias para o Algarve com a minha mãe e eles ficaram logo com pena que fosse. Não posso estar muito tempo fora, faço aqui falta. É bom sinal”, diz.

“A solução é francesa, mas nasce porque há uma história portuguesa”

A história é a de Filipa e de Manuel. Há seis anos, à frente de uma consultora, Filipa descobriu que o terceiro filho ia nascer com um cromossoma a mais. “A sensação que tive foi de total estranheza. Muita angústia e medo, mas decidimos dizer «sim» a esta realidade e, hoje, ao nosso Manel”, recorda.

A desbravar o desconhecido, Filipa e alguns pais fundaram a VilacomVida, em dezembro de 2016. “Não queríamos criar uma associação que fizesse o mesmo que outras, porque a grande lacuna é que estas pessoas extraordinárias estão longe do nosso dia-a-dia.” A impossibilidade física de nos cruzarmos diariamente com elas gera exclusão. Para a combater, Filipa propôs, em outubro de 2017, a criação de um conjunto de cafés para as formar e empregar. 

A ideia do Café Joyeux nasceu em França, da cabeça de Yann Bucaille, em 2017. Em 2021, por intermédio da associação VilaComVida, chegou a Portugal, o primeiro país a abrir um Café Joyeux fora de França. Foto: Rita Ansone

Ao mesmo tempo, em França, nascia a cadeia de Cafés Joyeux, num país onde existem 700 mil diagnósticos de autismo e 65 mil de trissomia 21. Os diagnosticados são duas a três vezes mais afetados pelo desemprego que o resto da população e somente 0,5% trabalha num ambiente comum, segundo dados cedidos no site do projeto.

Já em Portugal estima-se que existam mais de 63 mil pessoas com perturbações do espetro do autismo e mais de 8 mil com trissomia 21, segundo cálculos da AIA – Associação de Apoio e Inclusão ao Autista e da APPT21 – Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. A sua integração no mercado de trabalho é rara. “A sociedade está formatada para esconder, pôr longe. Isso acabou”, diz Filipa.

A solução é trazer a diferença para o coração das cidades. Com isso em mente, uma amiga de Filipa cedeu-lhe o contacto de Aleksander Debinsky, designer do Café Joyeux a viver em Lisboa com a família. Curiosamente, o primeiro encontro deu-se em 2018 no número 26 da Calçada da Estrela, à época a Pastelaria Vermelhosa. Filipa, católica, não esconde a emoção: “Deus tem um papel importante na minha vida. A partir do momento em que saímos de nós para ajudar os outros, tudo cresce e multiplica-se”.

Filipa Pinto Coelho, presidente da Associação VilacomVida, que fundou em 2016, foi uma das responsáveis por trazer para Lisboa o franchising e a missão do Café Joyeux – dar oportunidades de trabalho a jovens com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento. Foto: Rita Ansone

O contrato de franchising demorou a assinar e a Associação avançou em nome próprio com o CafécomVida, em maio de 2018, no Museu das Comunicações. Finalmente, a internacionalização deu-se em abril de 2021 e Lisboa tornou-se a primeira cidade fora de França a receber a marca.

Faltava um espaço para a acolher. O Museu das Comunicações não aceitou o projeto, depois de meses a ser a casa do CafécomVida. “Fiquei revoltada. Olhei para o chão e não via nada”, recorda Filipa. Na caixa de e-mail escondia-se a solução. “A proprietária da Vermelhosa queria trespassar-nos o espaço. É incrível, porque tudo começou ali.”

Atualmente, há projetos para a criação do café em Nova Iorque, Londres e já abriu um espaço em Bruxelas, diz Filipa. Em Portugal, o Joyeux dá emprego a 14 jovens com autismo e trissomia 21, nove no espaço da Calçada da Estrela e, mais recentemente, cinco no edifício da AGEAS Seguros. Cascais prepara-se para acolher o próximo, que vai dar emprego a cerca de 10 a 12 trabalhadores. A maioria está na casa dos 18 aos 28 anos, embora existam alguns com idades superiores a 30.

Contagiar pela felicidade

David mora em Benfica. Diz que vir de transportes para São Bento é um “pouco complicado”, mas a paixão pela proximidade que constrói com os clientes motiva-o. Dá sempre o seu melhor, “mesmo que os clientes estejam num dia não”, diz em tom de brincadeira. “O que mais gosto é que os clientes entrem aqui, sintam-se bem e felizes para depois voltarem. Servimos com o coração.”

Jovens como David chegam aqui de diversas formas: por iniciativa própria, por intermédio da família ou através de associações. Muitas vezes, com um percurso difícil. “Alguns, não passam do nono ano e são direcionadas para instituições suportadas pelo Estado para fazer um caminho paralelo. Aqueles que têm capacidade para serem capacitados não podem ser ostracizados”, defende a presidente da VilacomVida.

Assim que chegam, passam por uma entrevista de seleção. “Quem trabalha connosco tem de ter potencial de autonomia. Nós assumimos que a pessoa não tem maturidade para assinar um contrato, mas assinamos à mesma porque acreditamos nesse potencial.”

A transformação nos jovens, e nas próprias famílias, é imensa. Andarem de transportes públicos sozinhos, trabalharem, contactarem com os outros, fá-los ganhar asas. Filipa pensa no futuro do seu filho: “O Manel tem seis irmãos, somos uma família numerosa, mas jamais quero que o meu filho seja educado para depender deles. Quero que seja autónomo”.

Ana Castro Santos, psicóloga, admite que este processo implica que “a família se disponibilize a ter aquele friozinho na barriga porque a filha vai para o trabalho sozinha”. Mas no final há sempre um balanço positivo: “As famílias dizem que eles saem de casa felizes porque, pela primeira vez, percebem que fazem falta e que está alguma coisa à sua espera. Têm o seu trabalho, a sua tarefa e função”.

Aqui, David sente-se valorizado e integrado: “Não posso estar muito tempo fora, faço aqui falta. É bom sinal”, diz. Foto: Rita Ansone

A presença de uma psicóloga como Ana é importante nesta solução, por garantir articulação entre os jovens, as famílias e as supervisoras, no sentido de lhes dar ferramentas. “Temos esta visão de os tratar de forma igual. Existe aqui uma cultura de exigência. Só assim é que a pessoa aprende e cresce.”

Em cada mesa, a frase “servimos com o coração” ganha forma em panfletos. A mesma frase surge no primeiro degrau da escada que dá acesso ao piso de baixo. É o primeiro degrau, porque este é um ensinamento-base. Afinal, esta é uma solução que, pela felicidade, promove uma mudança em dois sentidos. Com este projeto, cria-se aquilo a que Filipa chama de “efeito-dominó”.

“Não é só o papel que a sociedade pode ter em abrir portas a estas pessoas, é aquilo que a sociedade vai ganhar ao conhecê-las, porque vai deixar-se tocar por elas”, diz. Por isso querem incentivar outras empresas a fazer o mesmo caminho e contratar pessoas com dificuldades intelectuais ou do desenvolvimento. 

Filipa admite que o financiamento é a principal limitação do projeto, cujos lucros são totalmente direcionados para a abertura de novos espaços. “Não podemos dizer a uma pessoa: tens dois anos para mostrar aquilo que vales e depois vais embora. Isto obriga-nos à expansão, que vai sendo adiada pela falta de financiamento.”

Para isso, a Associação VilacomVida faz um trabalho de angariação de fundos junto da sociedade e das empresas. Há um programa da Liga das empresas Joyeux que se compromete a doar cinco mil euros por ano até que os lucros dos cafés sustentem todas as despesas. Além de que todos podem ajudar através de donativos pela plataforma MBWAY ou transferência bancária e ainda consignar 0,5% do seu IRS. David deixa o mote: “Já pensou que o seu IRS pode dar-nos a alegria de termos um emprego?”

David, Lurdes e José vestem-se com as cores da marca francesa, preto e amarelo, da cabeça aos pés. As sapatilhas, camisolas e outros acessórios estão à venda no canto da sala e todas as receitas são direcionadas para a abertura de mais estabelecimentos.

Quando alguém deixa uma gorjeta no porquinho dourado, toca uma sineta e batem-se palmas. No Café Joyeux, a alegria é a palavra de ordem.
Foto: Rita Ansone

Dali a pouco, durante a manhã, toca a sineta vermelha e todos os clientes batem palmas. É o que acontece quando alguém deixa uma gorjeta no porquinho dourado que existe perto da caixa. A felicidade é a palavra de ordem e é aquilo que torna “cada cliente um embaixador desta missão”, diz Filipa.


* João Damião é aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias. Está a estagiar na Mensagem de Lisboa.

*Joana Mendes é estudante da Universidade Nova de Lisboa/FCSH. Ribatejana, veio para Lisboa para estudar e matar algumas curiosidades sobe o mundo: era a menina dos porquês. E continua curiosa, para descobrir realidades, conhecer e contar histórias.

Este artigo foi editado por Catarina Pires.

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