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Bairro Alto aos seus amores tão dedicado
Quis um dia dar nas vistas
E saiu com os trovadores mais o fado
P’ra fazer suas conquistas
Carlos Simões Neves / Francisco Carvalhinho
– Senhor João, gostava de escrever um artigo sobre si. Quando é que podemos conversar um bocadinho?
– Todos os dias, menos às terças, a partir das seis da tarde, n’O Trevo, na Praça Luís de Camões. Só tens de escolher o dia e avisar-me quando vens.
As palavras não terão sido exatamente estas, lá perto, mas fui numa quarta-feira. A guerra ainda não tinha começado. Cá, pelo menos. Juntei-me às conquistas artísticas e pacíficas do Bairro Alto. Na mesa mais afastada da porta de entrada, lá estava o João Carlos, Senhor João para mim, talvez para a maioria, na sua hora de jantar, sempre a mesma, sempre no mesmo lugar quando canta no Bairro. O restaurante-snack-bar-pastelaria-café O Trevo estava cheio-o-a-o, como de costume, com muito ruído, e os planos da nossa entrevista alteraram-se.
– Senhor João, não me parece que vá conseguir gravar a nossa entrevista aqui por causa do barulho.
– Pois não, ó Rita. Pensei nisso quando aqui cheguei. Vamos para a Tasca, que eu só começo a cantar às oito e meia. Temos tempo.
As palavras não terão sido exatamente estas, lá perto, mas fiz-lhe companhia durante a sopa que faltava e a imperial que ia a meio. Perguntou se eu queria alguma coisa, pediu Halls extra-forte e a conta, fez as contas de cabeça antes de a fatura chegar, conferiu-a, perguntou se o valor não era de mais, o empregado riu-se, eu admiti que a pergunta fosse habitual, pagou e fomos embora.
A esta hora, ainda não sabia que o Senhor João tinha trabalhado 45 anos em restauração e hotelaria, como também não sabia que tinha começado nessa área aos 11 anos. Nascido a 11 de novembro de 1951, abençoado pelo S. Martinho, e com a quarta classe feita, saiu do Turcifal para Lisboa, para a Rua de São Paulo, contígua ao bairro em que nos encontrávamos.
D’O Trevo à Tasca, entrando pelo Bairro Alto adentro, só faltavam a Rua do Norte, a Rua das Salgadeiras e a Rua Diário de Notícias, esta última a rua de chegada, no no 39.
Quando pensei em escrever sobre o Senhor João, não pensei em escrever sobre o fado, antes sobre um coração que mora lá dentro. Como mora o do senhor viúvo, que com letras escritas por si vai cantar para a mulher, esteja ela onde estiver; os dos estrangeiros e estrangeiras, que cantam a poesia em português que lhes vai na alma; os da juventude do fado, que anda de casa em casa a treinar o que sabe e o que lhe falta aprender; os de quem canta sem o advérbio de modo bem, e que inspiram por isso; os de quem apenas ouve, tantas vezes os mesmos fados, ora corridos, ora de fazer chorar as pedras da calçada. É a verdade que me toca, mais do que a tradição ou o património imaterial.
– Pedro Moutinho, o que dirias sobre o Senhor João?
– Se pudesse definir o fado como vadio, o João Carlos seria esse fado. Fadista emblemático das noites da Tasca do Chico.
As palavras foram exatamente estas, que resultaram do pedido que fiz a algumas pessoas para me falarem das suas experiências com o Senhor João. Vadio, livre, mais comprometido com a humildade do que com a pompa. Ainda que tenha logo erguido o sorriso por detrás do bigode branco quando eu lhe pedi que tirássemos a primeira fotografia, antes de começarmos a gravar a nossa conversa, finalmente na Tasca do Chico.
O Chico, o próprio que fundou a tasca há 26 anos, com as devidas construções e adaptações feitas pelas suas próprias mãos, estava lá e consentiu. Talvez seja necessário outro texto para falar de Francisco Gonçalves e desta obra cultural lisboeta que fundou. Acredito que o guitarrista Mário Pacheco concorde comigo, tendo em conta o que me confessou.
– Mesmo tendo iniciado a minha vida no fado e tendo tocado em quase todas as casas de fado, durante 25 anos não fui ao Bairro Alto… tinha o meu ‘Clube de Fado’ e não entendia porque, nas publicações que lia sobre as melhores casas de fado, aparecia a minha e também a Tasca do Chico. De lá, só conhecia o João [o nosso Senhor João] e o Flávio Cardoso. Até que uma noite a Mariza me convidou para um petisco na Tasca. Então percebi: ali havia Fado, amadores e profissionais que cantavam com paixão. O responsável era o Chico que, com um sorriso e sem vaidade, proporcionava um espaço para quem quisesse cantar e, verdadeiramente, fiquei a gostar do Chico. Agora é o meu amigo Chico, que me recebe de braços abertos e a quem com prazer dou um abraço!
Avante, que se faz tarde!


Alerto para a imprudência de utilizar a palavra Avante, que, apesar da sua legitimidade de existir sem duplo sentido, tem uma memória comunista. O Senhor João nunca quis saber de política, nunca teve problemas com a PIDE, nunca foi preso, nem os seus amigos (também não vou utilizar a palavra camaradas). Mas viveu o 25 de abril in loco e, das inúmeras pessoas que passaram pela tasca, adorou conhecer o António Costa, atual primeiro ministro, e o António Carmona Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Lisboa entre 2005 e 2007.
– Sabia o que estava a acontecer nesse dia 25 de abril de 74?
– Eu ainda era novo, não tinha assim grande experiência. Eu era um miúdo pacato, que queria era o meu bem-estar e dar-me bem com todas as pessoas. Nunca fui muito ligado à política.
– E hoje também não é?
– Hoje também não sou.
– Nunca foi?
– Nunca fui, não… Porque a minha vida não dava para isso. Trabalhava, como se costuma dizer, de sol a sol. Não tinha horário: entrava às nove e saía à meia-noite. Não tirei a carta de condução porque não tinha disponibilidade, não estudei mais porque não tinha disponibilidade. Aquilo que eu fazia era casa-trabalho, trabalho-casa. Eu só tinha folga normalmente pela altura da Páscoa, e nem era no domingo de Páscoa, era no domingo a seguir à Páscoa, que ia à terra, e em Setembro. De resto, trabalhava todos os dias.
No rodopio casa-trabalho-fados e fados-trabalho-casa, entrou na Marinha aos 18 anos, onde ganhou o bichinho de cantar, casou-se quatro anos depois, teve dois filhos, trabalhou em quatro restaurantes – Palhota, Internacional, Lua de Mel e Adónis, todos fora de funcionamento atualmente –, cantou em três casas de fado – Casa dos Ferreiras, Dom Quixote e Tasca do Chico –, atuou no NOS Alive, participou no filme As Vozes do Fado, do Ruben Alves e do Christophe Fonseca, gravou um disco em nome próprio (O Fado Sem Segredos, talvez de 2013, o Senhor João não se lembra ao certo e o disco não tem o ano de gravação) e um disco com mais fadistas, no âmbito da Expo 98 e das Festas da Cidade de Lisboa desse ano, com a coordenação de José Manuel Osório.
Em 2008, três anos depois de ter superado uma operação às duas pernas no mesmo dia, reformou-se da restauração e dedicou-se (a trabalhar) apenas ao fado. Já estava na Tasca do Chico, onde entrou no ano 2000, e lá está até hoje. Vai fazer 22 anos de casa no dia 30 de setembro. Disse-me que deixou de trabalhar de sol a sol para passar a trabalhar de lua a lua. Eis o Senhor João que eu conheço, o fadista de lua a lua.
Bate o fado, Trigueirinha
Dá-me agora a tua mão
Trigueirinha acerta o passo
No bater do coração
António Vilar da Costa / Jorge Fernando
– Vocês cantam sempre os mesmos fados ou vão escolhendo?
– Vamos escolhendo.
– É que, para mim, o Senhor João é o fadista da Trigueirinha.
– Sim, mas esse fado, normalmente, todos os dias tenho de o cantar porque as pessoas vêm aqui e pedem que isso aconteça.
– Eu sou uma dessas pessoas!
[Rimo-nos.]
– Tenho dias em que canto a Trigueirinha duas vezes. Canto no início e no fim da noite. Ainda na segunda-feira isso aconteceu.
Nesta fase da conversa, já estávamos a chegar ao fim. Eram quase horas de trabalho. Da sua longa vida, que considera bonita, agradável, junto das pessoas de quem gosta, nunca imaginou uma carreira que durasse tanto. E que continua a durar. Passaram-lhe pelos ouvidos, senão todos, praticamente todos os guitarristas e todos os violas, cantores como o Ricardo Ribeiro e cantoras como a Mariza ou a Ana Moura, e celebridades portuguesas e brasileiras de visita.
Só não cantou no estrangeiro. Gostava de ir ao Brasil, ao Rio de Janeiro. Não fosse a pandemia, até teria ido a França e à Suíça. Não fosse a pandemia, também teria mais poupanças, que teve de usar para complementar a reforma.
Os fadistas e as fadistas só ganham se cantarem. Não há contratos, não há subsídios de férias nem de Natal, e não há queixumes. É o que é. São as regras. E o que importa é cantar. O Senhor João sabe mais de 40 fados, alguns não os canta para não chatear os músicos, só os canta para si. E, em casa, não canta nada, que o descanso é sagrado. Ouve. Ouve muito, que é assim que aprende.
Em Lisboa, não há fadistas como o Senhor João. O seu grande incentivador Telmo Simões, que não chegou a ser padrinho, sendo-o, tinha razão quando disse ao ainda jovem João Carlos “Continua, que tu vais longe!”.
Tem vindo, sim. Embora haja muitos cantores e muitas cantoras “vadios e vadias”, no que ao fado diz respeito, e que todos e todas façam do fado uma das fatias mais genuínas da cultura portuguesa, o metro e sessenta e cinco (pelas minhas medidas a olho) de João não se confundem. Canta, apresenta, serve à mesa, recebe a gente do bairro e turistas. É um dos melhores cartões-postal da cidade. E não estou sozinha nesta opinião em que me atravesso.
– Marco Rodrigues, o que dirias sobre o Senhor João?
– Conheço o João… Desde que me mudei para Lisboa, tinha 15 anos. Passados estes anos todos, a vontade, o amor e a paixão pelo fado e pelo meio fadista é a mesma, pura, transparente. Representante de uma geração, que durante o tempo em que o país não dava importância ao Fado, ele vivia dele e nele. Obrigado, João, e a todos que sempre acreditaram e seguraram a bandeira do FADO.
– E tu, Sara Correia, o que dirias?
– O João conhece-me como o fado me conhece a mim. Acompanhou os meus primeiros passos, viu todo o meu caminho e eu ainda acompanho todo o seu percurso fadista até aqui! O João é do fado, é fadista!
Terminámos por volta das oito e um quarto da noite. Os quinze minutos que faltavam ainda nos permitiram ir ao Canto da Atalaia, antiga Mascote da Atalaia, duas ruas acima da Tasca. Ouvimos um fado, ele com nova imperial na mão, eu com um novo copo com água.
Toda a gente o conhecia, é quase escusado referi-lo, porque as andanças de músicos e fadistas entre as casas do Bairro Alto, Alfama, Graça e Mouraria, nos intervalos de umas e de outras, é tão normal como o Senhor João jantar n’O Trevo nos dias em que está a trabalhar na Tasca do Chico do Bairro Alto.

À saída, tirámos uma fotografia de lembrança, à porta de outra casa que não a sua oficial. Não faltam quezílias no fado, também escusado será referi-lo (e nem eu sou de intrigas!), mas que mal tem uma fotografia além da pátria, não é? O Senhor João sorriu novamente.
Fez questão que eu abrisse a noite da Tasca com dois fados, aqueles que canto com respeito, porque não sou fadista mas gosto de cantar, mão no peito, mão na anca. Pedi-lhe, com carinho e alguma insistência, que cantasse a Trigueirinha no primeiro bloco. O Senhor João bateu o fado e deu-me logo a sua mão. Eu acertei o passo no bater do coração, mas filmei quieta. “Ah, fadista!”, gritei. Era noite de lua cheia. Estava tudo certo.
* Nascida em Coimbra em 1989, Rita Dias canta, compõe, escreve e representa. Lançou o disco “Com os pés na terra”, participou no Festival da Canção e editou o livro de poesia “O Encontro do Tempo Ternário”, em Portugal e no Brasil. Em 2020/2021, estreou-se em duas peças de teatro e, em 2022, lançará o seu segundo disco, “Morremos tanto para crescer“.