Disse-me que gostava de trabalhar num sítio que nunca fechasse. Onde a luz artificial nunca se desligasse. Disse-me que imaginar lugares assim lhe dava conforto na infância, que nesses sítios, nas horas em que todos dormem, sobretudo nesse tempo estático em que se impõe o escuro, estaria sempre alguém desperto, alguém disponível, mesmo que não fosse preciso.
Quando se alongassem ao máximo as suas pernas e estivesse por fim definida a sua estatura de pessoa adulta, desejava trabalhar num hospital, num hotel ou, como derradeira hipótese, numa esquadra da polícia.
Disse-me também que foi nessa altura que se apercebeu de que as fardas eram imprescindíveis para trabalhar em sítios destes. Um facto que lhe pareceu curioso. Porque seria obrigatório usar uniforme nesses lugares insones? Descobriu mais tarde, disse-me, que o uso de uma farda dentro do trabalho transmite organização, higiene, padronização e segurança. E que também simplificava a comunicação entre as pessoas e a hierarquização entre as equipas.
Estes locais também exigiam trabalho de equipa, em conjunto, precisava de confiar nos colegas. Qualquer que fosse a sua escolha profissional num destes locais que nunca fecham, teria de ser em Lisboa. Não tencionava mudar de cidade.
Conhecemo-nos no restaurante Galeto. Eu do lado do balcão onde se come, ele do lado do balcão em que se serve. Contou-me tudo isto enquanto eu comia um hambúrguer em pão brioche e bebia um generoso copo de vinho.
Explicou-me que os planos de criança não tinham sido totalmente frustrados, que trabalhar no Galeto era o mais próximo dos lugares insones de trabalho que desejava na infância. Também usava uma farda que considerava elegante. Sentia que fazia parte da sua missão trabalhar no célebre restaurante lisboeta, onde se come essencialmente ao balcão. Embora não esteja aberto vinte e quatro horas por dia, o restaurante não fecha durante todo o ano. Com apenas uma excepção — o Dia do Trabalhador.
Contou-me que ali não se fecha a porta aos clientes no Natal nem no Ano Novo, que as portas só encerram mesmo neste Dia do Trabalhador. Contou-me ainda que o restaurante com mais de cinquenta anos foi criado pelo pai do actual proprietário. Uma ideia que importou do Brasil e que consistia em colocar as pessoas sentadas ao balcão num ambiente luxuoso. Achava bonita a ideia e gostava de ter os clientes todos virados para si. Sentia que fazia um pouco parte do cenário de todos os que ali se sentavam.
Disse-lhe por fim que era um dos meus destinos preferidos, ir até ali e jantar sozinha. Talvez o facto de ser ao balcão ajudasse a não sentir que me faltava companhia. Nunca tinha pensado. Não de forma consciente, pensei e não disse.
Avisou-me que eram quase três da manhã, estavam quase a fechar. Pedi a conta. Disse-me que recentemente tinha mudado de ideias sobre os lugares que nunca dormem. Que ainda gostava deles, mas já não eram os sítios que lhe dava mais conforto saber que existem.
Tinha um filho pequeno em casa. «Fez agora seis meses, parece um boneco.» Já não precisava de pensar em hospitais e hotéis, a sua casa tornara-se o local de conforto, de segurança. O único local que desejava que nunca se fechasse para si.
* Cláudia Lucas Chéu nasceu de madrugada na mais célebre maternidade lisboeta, em 1978. Cresceu na margem Sul, mas viveu parte da adolescência enfiada no King. Quase todos os momentos emocionantes da sua vida se passaram em Lisboa: perdeu a virgindade nas Laranjeiras, foi assaltada no Cais do Sodré, subiu ao palco pela primeira vez como atriz profissional na Praça de Espanha, publicou o primeiro livro no Rossio e deu à luz uma filha no Alto dos Moinhos. Vive há mais de duas décadas em Lisboa. Não contempla morar noutra cidade.