avião noite Lisboa Portela Humberto Delgado
O ruído aeroportuário noturno afeta grande parte da população de Lisboa. Foto: unsplash

Para que a companhia que o meu corpo faz à minha mente seja minimamente harmoniosa, tenho de fugir de Lisboa de vez em quando.

 Não me refiro a um fim de semana em Berlim com aquele casal amigo que já leu todos os guias da capital alemã, refiro-me a estar fora durante meses, durante tempo suficiente para que a minha perspectiva sobre a cidade se altere, talvez para que eu próprio me altere (a cidade não tem assim tanta culpa).

Quando passo demasiado tempo em Lisboa, deixo-me sucumbir por diversas sinergias urbanas negativas e tenho a tendência a transformar-me num paralelepípedo, um ser áspero, fraccionado, com declives abruptos e ideias quadrangulares. A coisa não é tão obviamente trágica, não começo a ver a CMTV, nem a concordar com o André Ventura, nem a engrossar as filas na Primark. Tem mais que se lhe diga esta transformação.

Passo a fazer sempre o mesmo caminho de volta a casa, deixo de arriscar em conhecer aquela rua a subir que fica por ali algures e aonde nunca fui, passo a ter o dia demasiado organizado, demoro tempo a mais a pensar no que visto e, pior ainda, começo a deixar que o marketing me faça crer que aquele blazer de tweed me faz realmente falta.

Por vezes, é difícil perceber que me estou a transformar num paralelepípedo, a própria reflexão é um paradoxo quando entro nesta espiral, ou melhor dizendo, nesta quadrícula. São normalmente terceiros que me alertam para tal.

O meu irmão diz que passo a falar menos de livros, a minha mãe diz que passo a beber mais venenos estrangeiros, os meus amigos dizem que respondo sempre com duas pedras na mão, ou neste caso com dois paralelepípedos na mão.

Estes são só alguns dos indicadores que me fazem retirar periodicamente para o meu refúgio no Mediterrâneo.

Decidi mobilizar-me para a igreja dos filósofos, a taberna, solução óbvia e fácil para quando o mundo anda contra nós. Um sábio das ruas disse-me que ser filosofo é pegar em ideias soltas de café e sistematizá-las, problematizá-las. Há sempre gente interessante naquele lugar de culto, gente pronta a filosofar.

Pedi um copo de vinho tinto e sentei-me ao balcão, ao pé do senhor Gerónimo, que me explicou que o mundo se divide em dois tipos de pessoas, aquelas que têm os frutos secos em frascos e permanecem crocantes e aquelas que têm a embalagem aberta há muito tempo deixando-os moles. O velho Gilberto Mó, que estava a ler o jornal, comentou em voz alta:

– Então não é que agora estão para aqui a dizer que querem abrir uma fábrica de unicórnios aqui em Lisboa!

– Então, mas isso tem algum jeito, os bichos vão cagar as ruas todas, quero ver quem vai limpar isso depois –, responde a Ti Hermínia, sempre pronta a botar abaixo.

– Cagar as ruas? Então e o trânsito? Isto já anda famoso com as bicicletas, com as trotinetas e sei lá mais o quê! Com tal bicheza aqui pela cidade, então… eles têm cada ideia –, ouvia-se lá do canto.

Na condição de paralelepípedo ainda pensei em mandar uma pedrada no charco e esclarecer o conceito a estes compinchas, mas decidi embarcar na conversa e soltei:

– E o estacionamento?

Quando nem a taberna me ilumina o pensamento, pode dizer-se que a coisa está feia. É nessa altura que jogo uma cartada que tanto pode correr maravilhosamente bem, como pode calcar mais ainda o pedregulho em que me torno. Os jovens! Cabe a cada geração falar mal da outra que vem a seguir e eu divirto-me quando visto a pele desse cliché.

Fui beber um copo ao Cais do Sodré com uma velha amiga e com o seu irmão de dezanove anitos. Talvez me pudesse surpreender, mas não aconteceu. Perguntei se ele gostava de ler, ele disse que sim, depois perguntei de que tipo de livros gostava e o rapaz começou a falar-me em manuais de autoajuda e empreendedorismo.

Bebi o meu copo depressa e pedi outro para não morrer de tédio. Generalizei, como fazem as gerações mais velhas, disse que eles eram todos uns tecnocratas e uns pragmáticos, talvez nomes que já me tinham chamado a mim.

Esgotado o recurso dos jovens, voltei-me para o último suspiro, os cães. Sempre aprendi muito com os canídeos e sei que vou continuar a aprender. Sentei-me à beira do ringue do Campo dos Mártires da Pátria, estavam duas equipas a jogar basquetebol, algo que me deixou curioso. Sentei-me no murete ao pé de um cão grande com um ar aborrecido.

As equipas eram compostas por várias nacionalidades, consegui perceber que havia por ali argentinos, americanos, brasileiros, um grego e uma rapariga sérvia que jogava tremendamente. Estavam lá uns portugueses a jogar pelo meio, tinham caras compenetradas com a tarefa, normalmente somos bons com a bola no pé, mas é de salutar que haja rapaziada a tratar a bola de outras maneiras também.

Às tantas, um dos jogadores dribla dois oponentes e afunda a bola com estrondo no cesto, um movimento que me provocou gáudio, levando-me mesmo a um curto aplauso de reconhecimento. Virei-me para o cão e perguntei se ele tinha reparado na tal jogada do rapaz que vestia de verde aguerrido, o cão respondeu cinicamente, disse que só via a preto e branco. Ofendido com a resposta e com a postura geral do cão, perguntei se eles, os cães, não viam supostamente o mundo de uma forma mais singela, ele respondeu que já estava há muito tempo na cidade…

No dia seguinte marquei o meu voo.         


* João Santos Pereira vive entre o Mediterrâneo e a sua querida Lisboa. Fingiu estudar em vários sítios, de onde até um Mestrado em Gestão Desportiva surgiu, mas sempre aprendeu mais com as pessoas do que com o ensino estabelecido. Viaja pelo mundo, a pé sempre que pode, o mesmo aplica na cidade das sete colinas. Gosta de beber vinho tinto e de jogar à bola, acompanhado por gentes de falas várias, sempre que possível. Dedica posteriormente o seu tempo a escrever as aventuras que daí advêm.

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