Sabemos que Portugal é uma das sociedades mais envelhecidas do planeta. Há um livrinho que descreve bem este problema e propõe soluções, como a reapreciação do que é envelhecer e da carreira profissional, mas nenhuma solução resolverá o problema num par de décadas e aumentar a fertilidade e/ou um saldo migratório positivo afigura-se incontornável. Interessa-me aqui discutir a imigração a partir do lugar-comum de que Lisboa é uma cidade cosmopolita.
O número de estrangeiros residentes em Portugal aumentou 40% na última década e na área metropolitana de Lisboa eles são já 8,9% da população. Não chega para fazer de Lisboa uma cidade cosmopolita se a compararmos a Bruxelas ( 62% de estrangeiros), Nova Iorque (37%) ou mesmo Paris, cujo principal defeito, segundo alguns, é o excessivo número de franceses (são só 75%). Falta também a Lisboa a multiculturalidade enraizada que encontramos em grandes metrópoles das Américas, como Toronto, Los Angeles ou São Paulo.
Muitos dos estrangeiros residentes em Portugal estão de passagem, que pode ser intencional (estudantes e profissionais com carreiras de grande mobilidade) ou forçada (trabalhadores precários com poucas oportunidades de ascensão social). Outros vieram aqui viver os últimos anos. E haverá ainda os vencidos de Lisboa, que chegam com a ideia de ficar e partirão desiludidos. Nenhum destes estrangeiros criará aqui família e pouquíssimos deixarão um legado duradouro.
Seria interessante conhecer a capacidade de retenção dos estrangeiros residentes ao longo dos séculos. Não encontrei essa estatística, mas suspeito que até há poucas décadas a atracção e retenção de estrangeiros terá sido baixa, apesar da fama de Lisboa como a metrópole cosmopolita dos Descobrimentos.
Não deixa de ser curioso que durante a Segunda Grande Guerra Mundial, por causa da neutralidade de Portugal, Lisboa tenha sido sobretudo uma escala na migração dos refugiados de guerra, não um destino.
Ora, quem já viveu em países que se fizeram a partir de grandes movimentos migratórios com origens diferentes, como o Brasil e os EUA, sabe que a hesitação perante um nome próprio ou apelido que se lê pela primeira vez é um episódio frequente nos media da palavra falada. Também se hesita em Portugal, mesmo antes de o chefe de cozinha Ljubomir Stanisic ter atingido o estrelato televisivo, e os exemplos não se esgotam na dificuldade real ou táctica com que Jorge Jesus criava variantes de “Lopetegui”.
Tivemos o escritor e encenador František Listopad, de origem checoslovaca, que por misericórdia e algum instinto de sobrevivência passou a chamar-se “Jorge Listopad”. Temos o fotógrafo Daniel Blaufuks, descendente de imigrantes alemães judeus que escaparam dos nazis. E há gerações que o nome “Almeida Garrett” provoca embaraço, quando aqueles que dizem “garré” logo ouvem de alguém um sonoro “garrétte!”
Outros exemplos haverá de ilustres portugueses com nomes desafiantes, mas escasseiam. A esmagadora maioria dos apelidos são portugueses há centenas de anos.
Quando fazia a chamada nas minhas turmas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, poucas vezes terei hesitado. Este exercício é imperfeito a vários níveis, nomeadamente por não detectar os naturalizados de países lusófonos e os seus descendentes, que são uma população numerosa entre nós, mas falar-se de cosmopolitismo lusófono seria usar um oxímoro.
Por isso, não resisti a passar em revista a toponímia de Lisboa e, fazendo um exercício rápido de onomástica que deixaria um genealogista indignado, a seguir enumero os apelidos que soam estrangeiros: Abecasis, Amzalak, Andresen, Antinori, Ary, Barjona, Benoit, Benoliel (2), Bensaúde, Bettencourt (2), Bivar, Braamcamp (2), Breyner, Brown(e), Brun, Bual, Cadornega, Calderon, Carp, Cesariny, Champalimaud (2), Chicó, Choffat, Cid, Cinatti, Consiglieri, Cordon, Cossoul, Dalgado, Derouet, Dourdil, Edmée, Eloy, Esaguy, Ferrari, Ferry, Frondoni, Garrett, Gazul, Ginestal, Gneco, Gulbenkian, Hintze, Hogan, Holstein, Janz, Jayme, Jervis, Keil (2), Lambertini, Levy, Lindley, Ludovice, Lupi, Lyon, Mantero Belard, Margiochis, May, Mayer, Metrass, Michaëlis, Miguens, Miller, Moser, Nery, Norton, O’Neill, Osberno, Ottolini, Paggi, Perez Fernandez, Perry, Pery, Pézerat, Piel, Pusich, Quartin (3), Rau, Roby, Saint-Léger, Samwell, Schiappa, Schwalbach, Semke, Smith, Stegagno Picchio, Stephens, Stromp, Suggia, Tabucchi, Tasso, Todi, Ulrich, Vecchi, Velez, Verdonk, Villaret e Zbyszewski *
A um apelido estrangeiro associamos uma linhagem que em algum momento entrou em Portugal e aqui se fixou. A lista só parecerá longa se não tivermos em conta que Lisboa tem 3666 arruamentos (ruas, travessas, largos, avenidas, jardins, etc.) e que há na toponímia um viés para as elites, que são tipicamente mais cosmopolitas do que o resto da população.
Uma amostragem mais contemporânea confirma a impressão de Portugal como país periférico, pobre e fechado, até recentemente pouco capaz de atrair e/ou fixar estrangeiros não-lusófonos e lhes dar hipóteses de ascensão social. Entre os 170 colunistas dos principais jornais portugueses, só encontrei seis apelidos que ecoam outras geografias: Boucherie, Burnay, George, Loff, Manus, Mucznik, Soller e Stilwell.
A Mensagem de Lisboa é um caso à parte, pois tem a Safaa Dib, o Samim Seerat e o Catalin Schitco como cronistas.
O regime de cidadania português tem sido elogiado internacionalmente por ser inclusivo. A recente possibilidade de naturalização de descendentes dos judeus sefarditas expulsos da Península Ibérica é uma reparação histórica louvável. Centenas de milhares de imigrantes e seus descendentes adquiriram a nacionalidade portuguesa nas últimas duas décadas, o que reflecte um claro esforço de abertura.
Mas é trivial lembrar que só a criação de riqueza aumentará a imigração e naturalização de estrangeiros de um modo orgânico e com impacto determinante na demografia. E que em alguma altura, enquanto cidadãos, teremos de deixar de fazer uma distinção qualitativa entre a “nacionalidade originária” (dos descendentes de portugueses ou nascidos em Portugal) e a “nacionalidade derivada” (acessível aos estrangeiros, por residirem em Portugal há pelo menos 5 anos, pelo casamento ou união de facto, ou ainda pela adopção).
Afinal, Dom Afonso Henriques foi filho de uma infanta do Reino de Leão e de um francês; o ius sanguinis não o fez português. E apesar de ter nascido e crescido em território hoje dentro das nossas fronteiras, o ius solis não se aplicará com efeitos retroactivos. Assim, Dom Afonso Henriques tornou-se português no exacto momento da fundação do seu reino, ou seja, o nosso primeiro rei foi um português naturalizado.
Que esta brincadeira sirva da próxima vez que sentirmos o impulso de tratar como cidadãos de segunda ou adversários os portugueses naturalizados. E evitemos também a habitual hipercorrecção com pitada autodepreciativa que é considerar a activa naturalização como mais meritória do que a passiva “nacionalidade originária”.
Há uns dias, soube que fiquei em terceiro num concurso público para uma posição académica numa universidade lisboeta. A posição foi ganha por uma portuguesa que conheço e em segundo ficou um candidato, porventura teutónico, que desconheço. Foi uma circunstância ideal para testar o meu cosmopolitismo.
É fácil simpatizar com a ideia de um Portugal que dá oportunidades a estrangeiros quando daí não resulta um impacto negativo directo nas nossas oportunidades. Mas o verdadeiro cosmopolita é aquele que não divide os seus concorrentes directos em portugueses e forasteiros.
No meu caso, confesso que tive de reprimir um impulso inicial quando vi a classificação do concurso. Voltei a ser cosmopolita passados uns segundos, que teriam sido uns minutos ou horas se a posição fosse crucial para a minha carreira (não era).
Talvez parte do processo de abertura de Lisboa e Portugal aos estrangeiros tenha ainda de passar por uma reflexão individual em que admitimos que o tribalismo é uma pulsão natural que precisa de ser superada.
* Esta lista exclui nomes estrangeiros de personalidades sem ligação óbvia a Portugal (Gandhi e Adenauer, entre outros) e figuras de ficção (Sandokan), mas não exclui estrangeiros que não se “naturalizaram”, bastando que tenham estado em Portugal alguns anos ou aqui deixado uma contribuição relevante.
* Vasco M. Barreto é biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.
* Lia Ferreira nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.