Os irmãos Baraça, de Barcelos para Lisboa Foto: Arte Popular Portuguesa

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Há pouco menos de dez anos (agosto de 2013), uns jovens virados para a Ciência e com bom gosto (projeto Balua), meteram um Galo de Barcelos numa caixa com GPS e câmara de filmar. Foram até à ponte de Barcelos, amarram a encomenda a um balão de hélio e tudo partiu para o espaço.

O Galo de Barcelos entrou na cultura portuguesa desde que, na década de 1950, o pintor António Quadros descobriu Rosa Ramalho. Em todo o caso, nunca um galo ou outra peça de cerâmica barcelense tinham estado na estratosfera, até àquele lançamento feito na ponte medieval.

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Quando chegou aos 13252 metros de altura e a 17 graus negativos, o grande balão branco rebentou. E a caixa mais o seu conteúdo simbólico caíram, vogando, suspensos por pequeno paraquedas.

No município de Barcelos, há duas freguesias vizinhas em que o clube e o campo de futebol se chamam Os Ceramistas, as ruas têm nomes de barristas de mãos mágicas (rua Rosa Ramalho, rua Rosa Cota…) e há uma rotunda com um monumento ao Galo de Barcelos de crista assanhada.

A sul, no caminho para o rio Cávado, fica Manhente, aldeia que forneceu durante séculos o barro para as olarias à volta. E essas duas freguesias, tão de argila e arte, de pintado e de vidrado, chamam-se Galegos de Santa Maria e Galegos de São Martinho.

Então, sem surpresa, aquele projeto espacial, embora pretextando partir para o infinito, ficou em casa: desabou num quintal galego, na aldeia de Vivenza. Voara de Barcelos até ao rio Minho e dessa fronteira aos subúrbios de Orense, os mesmos quilómetros divididos em duas partes iguais.

Como se a mais famosa peça do artesanato português, apesar da ambição estratosférica, quisesse agarrar-se às raízes galaico-portuguesas que as duas margens do Minho partilham.

Agora, desde outono passado, em Lisboa, que é capital de um país pequeno e de muitas e diversas raízes, também aconteceu igual fenómeno. Irrompeu, na Baixa pombalina, um pedaço de Barcelos, com a sua caixinha de surpresas. Uma loja de encandear.

A loja abriu na rua de São Nicolau com a rua dos Sapateiros, na esquina oposta à da rua Augusta, a mais concorrida da Baixa. Uma porta guardada, no passeio, por dois músicos de banda filarmónica, quase de altura de homem, de pífaro e de bombo, e cinco grandes montras, uma delas com um galo pernilongo, outra com um povoadíssimo presépio, mais uma com procissões várias e todas numa explosão de cores.

Lá dentro é um deslumbre.

Não é um canto de loja, é a loja Figurado de Barcelos. I-n-t-e-i-r-a. Articula-se a palavra para sublinhar como é importante para os artistas a atenção exclusiva, pois também eles não criam por atacado. A loja, toda a loja, é dedicada àquela arte popular minhota.
O figurado barcelense é um artesanato que não é tímido, tem cores garridas e formas exageradas e improváveis, ofusca, surpreende, quase assusta.

Há dez anos, aqueles jovens do projeto “espacial”, seguindo o que o GPS lhes indicava, chegaram a Vivenza, aldeia de granito marcado por musgo, igual às pedras do vizinho Alto Minho no meio de intenso verde. Interrogaram um camponês encostado a um muro: “Viu uma caixa, caída do céu?”.

Os bigodes do galego pareceram dizer que não. Já os jovens se afastavam, e o homem, depois de os ter medido, chamou-os.

Ele foi à adega e trouxe-lhes a caixa. Lá dentro, além do galo, um vídeo registara o encontro. Viu-se, então, o galego, filmado, a abrir a caixa com desconfiança, armado de uma gadanha – sabia-se lá das intenções dos extraterrestres mailos encontros imediatos em quintal… Tudo acabou bem, o galego guardou a surpresa que lhe caíra em cima, pôde devolver os testemunhos eletrónicos e foi presenteado com o galáctico galo.

Lisboa como montra do país

Em Lisboa, os turistas e os nativos também se têm surpreendido com a porta e as montras abertas da loja Figurado de Barcelos. E, figurem-se vocês, as coisas tão bonitas vindas do Minho profundo são mais do que elas. Ali, elas são Lisboa a cumprir-se: é a capital a ser o que deve ser. Uma capital a também servir as suas aldeias e cidades, de todo o país. Entre outros serviços, Lisboa a ser montra dos seus longínquos filhos.

As intenções dos 18 artistas populares que aterraram na Baixa de Lisboa são as de sempre: mostrar maravilhas aos outros. É antigo neles, a arte é arreigada e continua a inspirar-se na tradição familiar.

Na loja lisboeta há Cristos debruados de florzinhas – obras dos irmãos Mistério. Eles assinam “Mistério Filhos”, homenagem de Manuel e Francisco ao pai, o lendário barrista que tem homenagem toponímica em Barcelos: “Largo Domingos Lima (Mistério)”. Tão lindo, tão ingénuo, tão, tão…

Na loja pode encontrar-se uma banda de filarmónica a subir por um coreto em forma de Árvore do Natal, em que a autoria se reconhece em pormenores das caras dos músicos: olhos encovados e nariz afilado. Feitos no barro mole, pelo golpe inicial com pressão do polegar e o indicador.

Essa é uma das marcas dos autores, que assinam (tal como os Mistério Filhos) também em coletivo: “Irmãos Baraça”. Já a avó destes assinava “Ana Baraça”, usando, não o patronímico da pia batismal, mas o nome que lhe deitara o povo.

Os irmãos Baraça no seu atelier em Barcelos.

Vítor e Moisés Baraça, de 50 e 49 anos, têm a mágoa de terem perdido o forno comunitário do bisavô Manuel Valada (1880-1960). Perto do adro duma capela, em Galego de Santa Maria, onde é hoje o atelier dos Irmãos Baraça, era o enorme forno no quintal do velho Manuel.

Juntas de bois traziam rumas de lenha que ardiam três dias para a cozedura de bacias, tigelas, assadeiras – louçã utilitária, antes da invenção do plástico. Manuel Valada era um rodista afamado. Com a perna fazia girar a roda onde assentava o barro a que ele ia dando forma. Generoso, oferecia o seu grande forno aos vizinhos. “E nesses dias distribuía malgas de vinho verde”, adiantou Moisés.

Foto: Arte Popular Portuguesa

Como não agradecer por obrigarem repórter e leitores a irem ao dicionário, para saber que ruma de lenha era tão só uma pilha de madeira para alimentar o forno? Veem? Entramos numa loja de barro lindo e aumentamos o vocabulário antigo e honrado.

O velho Manuel rodou a louça toda a vida, além de o chamarem, por toda a região, para construir fornos de louça e de pão. Bem antes disso, primeira década de 1900, ele partilhou outro destino comum e coletivo. Como a maioria dos emigrantes portugueses de então, partiu para o Brasil, deixando por cá a filha, Ana, nascida em 1904.

Ana Baraça

Ela foi servir para os campos dos outros e continuou analfabeta. Depois, casou com outro Manel (Pereira) e também rodista. Lá em casa faziam-se alguidares e outras louças, que Ana ia vender às feiras de Barcelos e arredores. O marido tinha sido conhecido por outra arte: jovem, gostava de tanger a braguinha e passeava com ela pelas romarias. À viola amarrava fitas coloridas, guitas, faixas, enfim, baraças, e era chamado assim: “Oh Baraça, toca pra nós!”

Ana, já Ana Baraça, pois mulher dele, corria feiras mais além, a de Matosinhos e até a de Viseu, pelo São Mateus. Mas, mais importante, além das louças úteis, ela pintava loucinhas de brincar, até o famoso galo do apito, que ela pintalgava com a cabeça de um prego, dando-lhe relevos. Adorava figurar o trabalho do campo, bois com cornos de testada larga, mas mansa, homens de enxada às costas, trabalho.

“Ela não nos deixava fazer diabinhos”, diz Vítor, três gerações depois em que já vão os Baraças, além do fundador. O bisavô Manuel Valada, que no Brasil fez olaria, regressou e montou um atelier no quintal, com rodas para os seus continuarem a inventar o que o barro dá. A filha dele, a Ana Baraça, tornou-se um mito. O neto Fernando assinava pela mãe analfabeta, “Ana Baraça”, os trabalhos dela e os seus. E os dois bisnetos “Irmãos Baraça” já apresentados, e que duvidam que algum trineto do patriarca os siga.

Ana, o filho e os três netos Baraça.

Aliás, havia um terceiro irmão barrista, Carlos, que partiu para a América e não voltou, depois de inventar um presépio com personagens a andar de Vespa.

Uma fornada de gerações de uma família que teve a coroa de glória oficial quando teve de enganar o seu ícone. “Nesse dia, dissemos a nossa avó que íamos levá-la a Fátima”, conta Moisés, frente a uma foto de Ana Baraça, luto de viúva, eterno lenço negro na cabeça, surda e olhar desconfiado. Ela cirandou tanta feira que no fim da vida já não queria sair da sua aldeia de barristas.

Mas ali estava ela, aliciada pelo santuário de Fátima e, afinal, na foto, caída no Palácio de Belém. Estava a ser condecorada pelo Presidente Eanes, em 1985, com a Ordem do Infante Dom Henrique.

Ana Baraça viveria até 2001, quando o barro já vinha de Aveiro, pois o do vizinho Manhente esgotara-se por causa da fama do Figurado de Barcelos. E do galo, com sardões e minhocas, crista rubra e o coração que é o da filigrana de Viana do Castelo. E que ela, a primeira, pintou picotando com a cabeça de um prego.

Linhagens do figurado

Hoje, expostas na loja da Baixa lisboeta estão ainda Júlia e Prazeres Côta, mãe e filha – neta e bisneta de Domingos Côto, talvez (nestas coisas populares e de antanho, a dúvida é sempre prudente…), o primeiro a moldar um Galo de Barcelos.

Verdade certa é que Domingos e as suas descendentes têm nome de batismo mais prosaico, Rocha, mas ficaram Côto e Côta, que lhes vieram como alcunha da família. Indicia um defeito físico, talvez a falta de um dedo em algum parente, de quem ninguém se recorda.

Julia Cota no seu atelier. Foto: Arte Popular Portuguesa

Em Galegos, os cognomes são mais comuns que os nomes oficiais, veja-se os Baraça, os Mistério, O sr. João Dos Lagartos, a Maria Sineta, a Teresa Carumas (mais vocabulário: agulhas do pinheiro)… Até a barrista-mor Rosa Ramalho, de facto, Rosa Barbosa Lopes, que em criança se deitava à sombra de grandes ramos e Ramalho ficou, ela e os seus… Como se nos artistas do Figurado de Barcelos a imaginação excessiva também não os deixasse caber num simples BI.

A loja da Baixa expõe e vende peças de António Ramalho, bisneto dessa Rosa que um dia, modelando um passarinho na feira semanal das Fontaínhas, no Porto, chamou a atenção do jovem pintor António Quadros. Este iria ter um papel fundador na divulgação da arte popular de Barcelos. Encomendou à velha barrista uma fornada de peças – tantas quantas ela pudesse encher no forno – e deslumbrou-se com a qualidade delas.

O figurado foi sempre, como indica a palavra, alegórico. Nascia como utilidade, ser brinquedo, assobio, loucinha com a pretensão simples de encher os olhos. Representavam a vida comum e os animais à volta, mas desde sempre com um jeito tamanho para o exagero.

A prevalência do galo nesta arte de Barcelos tem explicação óbvia: não é ele que anuncia a luz? A luz que marca, do nascer ao Sol posto, o trabalho do camponês… E, também, a sugestão pícara: não é ele que passa a vida a galar? Ah como gostam os minhotos do piscar de olho!

Pronto, já podemos acrescentar à singeleza popular o que melhor a ilustra: uma imaginação desenfreada. Apareceram porcos com cornos. E o carrocho, cabra-loura, inseto de seis patas e tromba cornuda de vaca. Santos e lobisomens. Diabos mil… O imaginário aldeão a beber, há tantos séculos, em mitos.

Exagerando um poucochinho, e para armar ao pingarelho, pode dizer-se que, em Lisboa, no Museu de Arte Antiga, o tríptico de Hieronymus Bosch, As Tentações de Santo Antão, expõe uma espécie de Figurado de Barcelos, só que com um pouco mais de patine…

Os diabos dos Irmãos Mistério. Foto: Arte Popular Portuguesa

Então, como dizíamos, no final da década de 1950, António Quadros pediu a já referida fornada a Rosa Ramalho. Mostrou-a aos colegas, pintores e arquitetos da Escola de Belas-Artes do Porto e eles espantaram-se. A elite cultural portuense foi a primeira colecionadora e divulgadora daquelas peças que foram feitas para se pôr nas mãos das crianças ranhosas nos campos.

Parte dessas coleções foram, mais tarde, generosamente oferecidas ao Museu de Olaria de Barcelos, onde, entre cerca de 10 mil peças, há um acervo de 250 obras de Rosa Ramalho.
Aquando do encontro inicial, à volta de 1957, Ti Rosa era quase septuagenária, viúva, pobre e analfabeta. Como Ana Baraça, menos dada à conversa, que iria também beneficiar do que aconteceu à vizinha.

Aproveitando a atenção que António Quadros lhe trouxe, “RR” (assim Rosa Ramalho passou a assinar os seus vidrados) tornou-se um valor cultural e foi condecorada pelo Presidente Américo Tomás, nos tempos da Outra Senhora. Na ditadura e na democracia, o mesmo gesto da mais alta autoridade! Em quem deu as medalhas haverá talvez intenções diversas – mas é sempre uma conquista universal os poderosos reconhecerem mérito aos humildes.

Peça de António Ramalho que combina três imgens da avó. Foto da página Arte Popular Portuguesa

Lenço, blusa e saia sempre negros, olhos fulminantes e conversa tersa, Rosa Ramalho apareceu algumas vezes na televisão. Mas a RTP era a preto e branco, o que esbatia o colorido de algumas peças e não deixava brilhar a cor de mel dos seus vidrados.

Em todo o caso, foi com Rosa Ramalho que o figurado de Barcelos se tornou a arte popular mais conhecida em Portugal e a arte popular portuguesa mais reconhecida no mundo.

Um pouco por ter tido uma vedeta, RR, que fez pela arte popular do barro o que Amália fez pelo fado. E um pouco por ser um produto autêntico, enraizado e notável, feito por muitos. Contra, tem o facto de ser muito imitado. A favor, tem o de ter sobrevivido, não se deixando secar pelo efeito eucalipto que a sobre-exposição do Galo poderia causar. O Figurado de Barcelos continua variado, inventivo e surpreendente.

Em 1964, o cineasta José Ernesto de Sousa acabara de fazer o filme Dom Roberto, precursor do Novo Cinema e um olhar de ternura sobre um teatro de fantoches pelas ruas de Lisboa. Vivido e culto, por isso ou apesar disso, Ernesto de Sousa encantou-se com as peças de Domingos Mistério, o barrista de Barcelos.

Há sessenta anos, fino artista da capital colecionou e divulgou as obras do barrista camponês.

Mais tarde, As Alminhas, a mais conhecida obra de Domingos, o primeiro dos Mistério (o pai de “Mistério Filhos”), seria premiada e muito imitada: um inferno cheio de padres, irmãzinha e até um bispo.

A loja da rua de São Nicolau, Figurado de Barcelos, segue, afinal, uma tradição antiga e nobre: o dever de estar atento ao saber e ao bom gosto popular, como mostraram António Quadros e José Ernesto de Sousa.

E, de caminho, a loja Figurado de Barcelos, na Baixa pombalina, mostra o que Lisboa, porque é capital, deve fazer por Portugal que a honra.


NOTA – A loja Figurado de Barcelos, na rua de São Nicolau, em Lisboa, pertence a O Valor do Tempo, empresa que está associada à Mensagem. O nosso jornal não faz esta nota como mera ressalva formal. Os jornais não sendo para ser lidos de forma confiada, prevenimos para que, connosco, se desconfie melhor.

Para saber mais sobre Figurado consulte a página Arte Popular Portuguesa, aqui.


Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.

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