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Hoje, parece impossível dizê-lo. Estávamos em Maio de 2006, era a segunda vez que eu vinha a Lisboa. Tínhamos seguido os passos do Eça, apanhado o autocarro de novo no Cais do Sodré e chegávamos ao Rossio em direcção a casa. O professor de Geografia dizia qualquer coisa, mas ninguém queria saber. Víamos, pela primeira vez, o Largo de São Domingos e a novidade enxotou tudo. Em meio segundo, levantámo-nos todos a correr para as janelas.
Nunca tínhamos visto um grupo de negros.
O professor exigia atenção, mas nenhum de nós o ouvia. Olhávamos para as pessoas na rua. A luz de Lisboa batia-lhes em cheio e eu nunca tinha visto amor igual. Quis lá saber da literatura, do Eça, dos movimentos pendulares. Era a primeira vez que via o sítio onde o mundo se cruzava. Talvez literatura fosse esse movimento e esse encontro.
Reparem: para mim Lisboa já me parecia uma coisa muito grande. Aparecia-me em versos, em romances, tinha a dimensão de todo o meu tempo passado a sós com um livro. Naquele dia, e que distante é agora a dizê-lo, e tão certo em simultâneo, soube-me a mundo.
Não há duas histórias iguais em Lisboa. Alguns nasceram cá, mas talvez os pais ou os avós tenham vindo de outro lado. Tudo se converge e a paisagem não se dá ao luxo de ser estática um minuto. Da alta finança aos bairros sociais, quantos romances poderíamos fazer sobre esta terra? A multiculturalidade faz-nos mais ricos, a disparidade diminui-nos enquanto sociedade.
Às portas das eleições, cabe-nos aprender o que é uma derrota. Sempre que debatemos se salários baixos são um bom negócio para as empresas, perdemos. Sempre que se confunde tecido empresarial com economia, perdemos. Sempre que a mão-de-obra é um factor de lucro alheio e não está em cima da mesa o pagamento justo por um serviço prestado, somos uma falha.
Calhei de ser escritora, não há nada que me deixe mais ampla do que meter-me na cabeça de alguém. O exercício de empatia é necessário à escrita, e que é da política sem ele? Hoje, como noutros momentos de escrutínio, a empatia parece voltar a ser o que nos posiciona no mundo. E, nesse campo, a direita continua a ser o perigo a que nos tem habituado.
Rui Rio discute prisão perpétua, legitimando-a como assunto possível. Não sabe traçar linhas vermelhas, senta-se à mesa com a escória, sabendo que pode precisar da sua mão. Diz que não é contra o salário mínimo, mas apenas se as condições económicas o permitirem, como se não coubesse ao poder político intervir na economia – como se o aumento dos salários não significasse novas condições económicas. Só nesta ideia, impera uma postura – as costas vergadas da falta de coragem.
Rio bica aqui e bica ali, diz frases e dá-lhes a antítese, mas quem o ouve repara e quem o viu não esquece: este é o Rui Rio que abria uma garrafa de champanhe com os compinchas enquanto assistia à demolição de uma das torres do Bairro do Aleixo. Lá dentro, no meio do aparato policial, famílias viam as suas vidas transformarem-se em pó. Rio brindava, no abraço do seu barco, com os seus pares ao lado – o seu lado estava escolhido, quem precisasse da mão forte de um governante a defender os cidadãos só encontraria a conveniência das negociatas. Sobre empatia, eis Rio Rio – sorri desavergonhadamente enquanto pisca o olho à extrema-direita.
Nesta última semana, ainda o ouvimos com vergonha, depois de o termos visto festejar os votos que André Ventura teve nas presidenciais. Afirma que outros são os parceiros preferenciais para formar governo, mas foge ao assunto ao fugir à aritmética: que será de todos nós se, na hipótese de PS + esquerda serem minoritários, 1+2 não for maior do que 50?
A Iniciativa Liberal dá-nos um programa que é um petisco para quem gosta de terror. Tanta incoerência, tanta falta de noção, que parece impossível que não tenha vergonha do que diz, e que arrecade votos de quem não entende as implicações do que veicula. A amplitude da sua visão política são os 40 centímetros que vão da cabeça ao próprio bolso – regra geral, cheio, e por isso a turvar as vistas curtas. À Iniciativa Liberal, falta a empatia de perceber quem está abaixo, a experiência de viver com um salário mínimo, a corda ao pescoço que é a lei do mercado a imperar num Estado que não protege ninguém.
Cotrim Figueiredo afirma querer criar riqueza, mas no minuto a seguir é contra a subida do salário mínimo nacional ou até contra a sua existência (esse empecilho), o que deixa por entender que riqueza quer criar. CR7 não precisará de mais milhões, mas os cuidadores informais continuam a ter de pagar a conta do supermercado, e a lei do mercado impôs que a EDP nos fosse ao bolso. Que os liberais modernos experimentem, neste Janeiro, ter uma casa quente com um salário mínimo e pode ser que tenham noção do que é a vida. Ou até com menos do que o salário mínimo, já que, sendo adversos à ideia, talvez consigam puxar pela cabeça e ter noção de que só o paga quem a isso é obrigado. Não o fosse e pagaria menos, como fazia antes das subidas. Aquela mão-de-obra baratinha ao serviços das empresas chama-se gente e é para a gente que se deve governar.
Enquanto o gelo derrete e os ecossistemas se transformam, Cotrim Figueiredo acha que o combate às emergências climáticas não é uma prioridade, talvez porque o futuro de um planeta exista no éter, e a seguir consegue a proeza de ser diametralmente contraditório: num dia, afirma que “só fazendo a economia crescer é que é possível dar resposta às necessidades de correcção dos desequilíbrios ambientais”; no outro, que “não há possibilidade de reduzir emissões sem reduzir a actividade económica”.
A incoerência é trágica, como é o desnorte para a educação do país. Na proposta que faz, a educação deixa de ser saber, o conhecimento deixa de nos engrandecer humanamente, tudo é um instrumento ao serviços dos mercados, esses deuses incorpóreos que ninguém convida para jantar. A História, a Literatura, a Filosofia, a Filologia, a Antropologia, para esta gente tudo é palha. A memória colectiva é palha, engrandecermo-nos humanamente não pode passar de um hobbie.
Com a ideia perigosa e catastrófica que a Iniciativa Liberal tem da educação, percebemos que, no seu entender, esta não é um sector estratégico para o país, só um investimento monetário, só criação de mão-de-obra funcional ao serviço do lucro alheio. Sempre paga por baixo para os mercados funcionarem.
O cidadão quer estudar, pede um empréstimo para se financiar, e depois passa uns 30 anos a pagar o curso. Para quem começa a vida adulta e a sua independência económica, a Iniciativa Liberal só tem uma proposta: uma dívida às costas a pesar durante décadas. Não se sabe bem como haveria de ser paga, porque o fetiche com o lucro máximo das empresas implica dumping salarial.
Sendo Cotrim Figueiredo inimigo do milagre chamado Serviço Nacional de Saúde, que nos meteu vacinas no corpo independentemente dos dígitos que temos no banco e que para a Iniciativa Liberal é um encargo a despachar, e defensor de um sistema privado, não conseguiu ainda explicar o que acontece a quem não tiver seguro de saúde ou o que acontece em casos em que a urgência humanitária tem de se impôr ao lucro.
Na pandemia, bem vimos o que era o funcionamento dos privados: não pagas, não tens; não nos dá jeito, não levas; ficas em risco, o problema é teu. Nas vésperas das eleições, nem ambiente nem política rural nem cidade – à Iniciativa Liberal, só interessa a selva do capitalismo. Um leão a comer gazelas é uma vitória, porque o leão fica mais forte, e um liberal nunca pensa que um dia pode ser gazela.
Perante isto, esbugalhamos os olhos como Francisco Rodrigues dos Santos, cuja proposta para o país é meter farpas em touros. Há quem queira matar a fome, Rodrigues dos Santos quer acabar com a sede de sangue de um forcado. O CDS transforma-se num fio de partido, com um líder que ninguém leva a sério, e é patético vê-lo em campanha a fingir que agora é que vai ser. Rastejou perante o PSD, continuou no charco. Foi quase tão ridículo como vê-lo manso perante um chef de cozinha, envergonhando toda a democracia partidária e parlamentar.
Mendiga o seu centímetro de poder e só se recusa a fazer maioria com o PAN – o país em pandemia e discutem se devemos chacinar touros ou dar banho a gatos fofos. Um partido que tem a idade da democracia pós-Estado Novo tem como propostas para o país apenas beatice e touradas. E um partido que advogue e repita a sua matiz cristã só tem um propósito – afastar quem não acredita que um homem se pôs a voar em direcção ao céu depois de morto. Para Rodrigues dos Santos, esses são os outros, e a condição de alguém outrado implica sempre a sua desqualificação.
Vemo-lo na arrogância sem empatia com que se refere a quem não é igual a ele. Para ele, só há um tipo de família, quer impôr a sua vida aos outros, mandando nas escolhas de fim de vida, no útero das mulheres, nas hormonas da pessoa com quem metemos a aliança no dedo. Enche a boca para falar de liberdade enquanto nos espeta rosários nos ovários.
E, por fim, parece uma piada, mas chama-se André Ventura, também ele, como os dois anteriores, cabeça de lista pelo círculo de Lisboa, antítese do território etnicamente uno que quer impôr, com um programa eleitoral que parece ter sido escrito por miúdos de 13 anos com um atraso cognitivo. Este, de tão absurdo e desavergonhado, é mais estudo de caso do que alguém para ser levado a sério.
Não apenas pertence ao sistema como foi parido por ele, e já com o símbolo do PSD na lapela dizia as alarvidades do costume com o beneplácito de Pedro Passos Coelho. Esse mesmo, o primeiro-ministro que se demitiu da tarefa de governar, escolhendo o mais fácil: à falta de resposta, mandou os jovens emigrarem. Ao leme de um país, mandou a cauda do barco mergulhar. Ponta de lança do 11, mandou a defesa trabalhar.
Filho disto, eis André Ventura, cuja convicção se molda ao que convém. Não passando de candidato a uma Câmara em Loures no PSD, fundou um partido que lhe serviu de palco. Ali, é tudo a eito: berra, guincha, chora, faz beicinho. Quando o contrariam, faz murchar as orelhas de cãozinho. Os congressos do Chega chegam a ter graça: como estão todos juntos, vemos que aquilo nem tem ar de partido, só de vilões dos Moto Ratos.
Uma lesma sem coluna vertebral, André Ventura finge sacanamente que o RSI é atribuído num pega lá dá cá aleatório, inventa que metade do país trabalha para outra metade estar a ver Netflix num plasma depois de ter ido passear à Comporta de Porsche, ele, que é o rei das canalhices sem vergonha de ser quem é – cobarde, oportunista, histérico. Promete trabalhar em exclusividade no parlamento, mas acumula salários. Legisla de um lado e ajuda empresas a fugirem ao fisco do outro enquanto lança a ameaça absurda de que os malvadões dos estrangeiros vêm aí munidos de iPhones para nos roubar o que é nosso.
No fim, que boa alma, promete abdicar do salário de membro da assembleia municipal – o que não será grande sinal de altruísmo, na medida em que este nem sequer existe. Moralmente corrompido, assim é André Ventura, o cristão que não tem amor para dar ao outro e que grita contra a corrupção enquanto se perde de amores por Luís Filipe Vieira. Vemos André Ventura em debate e até nos perguntamos se ele será tão simples da cabeça quanto parece, mas nesse caso talvez não conseguisse falar e andar ao mesmo tempo.
A história encarregar-se-á de pôr Ventura no panteão dos crápulas. De cada vez que a humanidade tropeçou no seu caminho, rompendo os valores do humanismo, da solidariedade, da decênca, da entreajuda, fê-lo por ceder à palavrosidade violenta e bacoca de um André Ventura. A estratégia é sempre a mesma, espernear e berrar a ver quem é mais histérico. E a histeria de André Ventura, um minion excitado pelo próprio impulso, baseia-se no ódio ao outro e na ideia mesquinha de que a queda do outro é a alavanca de alguém. Fá-lo por ter encontrado um nicho. Fez uma tese de doutoramento, teve outras conclusões. Tentou ser romancista, fez figuras tristes. Enquanto líder político, falta-lhe coerência e proposta.
Eu sou do tempo em que a direita andava histérica com um governo viabilizado pela maioria de esquerda, pondo o segundo partido mais votado a fazer orçamentos do Estado, mas ei-la agora ufana a querer o pote, um perigo para o país que quer andar de mão dada como andou nos Açores. Perante as alarvidades de Ventura, Rui Rio passa-lhe a mão no pêlo – embora esta semana finja que nem sequer lhe tocou. O homem é racista condenado, mas não é fascista, não, senhor. O homem é cristão beato, mas quer fechar fronteiras, dando a não-portugueses a cruz de não terem um passaporte com a cara de Camões.
Não haverá governo de direita sem ele, e isto diz muito sobre o pântano moral em que a direita se encontra – é chocante que os outros partidos tenham mais sede de poder do que de decência, prefiram o imediatismo das notícias ao lado certo da história, não tenham a ombridade de chutar para canto o que não merece palco. Os Açores lembram-se dos Açores, Portugal continental também.
Aos assobios para o lado, não houve ainda uma resposta clara, porque Rui Rio teme dizer uma frase até ao fim e não rejeita negociar com quem devia ser a linha vermelha da política, por ser o carrasco de tudo o que é avanço civilizacional. E assim diz o que é óbvio, fingindo que o problema que o PSD pariu não existe: ou haverá maioria de esquerda ou de direita, e o PAN vender-se-á em saldos a quem lhe der mais. Admitirá, em caso de maioria com o Chega, viabilizar um governo do PS?
Um governo assente nos pilares das direitas em campanha seria um retrocesso para o país, porque sempre que a direita está no poder o país anda para trás: os salários estagnam ou decrescem, os subsídios vão ao ar, sonhar com mais direitos laborais não sai do sonho, ir à Universidade torna-se em coisa de elite. Lembro-me bem do que foi o governo PSD/CDS, e nessa altura ainda não tínhamos uma direita bélica, de tão odiosa. Quem votou naquilo também nos foi ao bolso.
Neste momento, a luta é outra: Trump conseguiu os EUA, Bolsonojo conseguiu o Brasil e a direita mansa prepara-se para estender o tapete vermelho ao que, volta e meia, baixinho, diz condenar. Pelo meio, António Costa parece não apenas fechar a porta à esquerda que lhe permitiu dois mandatos como primeiro-ministro, mas também a trancá-la. Ao Estado a que pertenço, exijo apenas que faça deste país o mais horizontal possível.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.