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A processar…
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Nadir Loredana da Cruz Lopes: foi assim que começou em Cabo Verde, a 24 de abril de 1989. Ainda o muro não tinha caído na Europa, já se erguia uma muralha, no feminino, com nome de pintor português. O destino da Nadir era desaguar em Portugal, em Lisboa, e aqui ficar. Africar.

É empregada de limpeza, minha empregada de limpeza. Conhecemo-nos neste contexto. Nascemos no mesmo ano, o tal último dos anos oitenta. E grande parte da inspiração para esta rubrica de perfil vem da disritmia entre o que eu senti quando conheci a Nadir e o que eu não podia imaginar que seria a vida de outra mulher da mesma idade. Afinal, quanto nos separa? E quanto nos aproxima?

Mãe solteira de um menino de quatro anos, não segue os passos da mãe Maria das Dores, nem do pai Alcides. A primeira a viver em Itália, o segundo a viver em Cabo Verde. Mas toma os dois como referência. A primeira para saber o que fazer, o segundo para saber como não fazer. A família, onde cabem mais quatro irmãos e uma irmã, começou pobre, que ser cabeleireira ou trabalhador da construção civil não fazem uma mesa farta, embora se tenham fartado de trabalhar. Ainda fartam. E, mesmo que sobrevivam, ainda continuam pobres.

Quando a Nadir tinha um ano e meio, a mãe Maria das Dores emigrou para Roma para procurar melhores condições para cuidar dos filhos que deixaria para trás, por falta de dinheiro para os sustentar no estrangeiro, e para largar o marido que era abusivo na forma como a tratava, ciumento, violento, possessivo, agressivo. É sempre a vítima que corre Ceca e Meca, não é verdade?

Até aos 17 anos da Nadir, a mãe visitou-a quatro vezes. Quando havia dinheiro. E não foi por falta de trabalho, que a Maria das Dores chegou a ter quatro empregos ao mesmo tempo, uma direta diária das seis da manhã às nove da noite. O que custará a uma mãe saber que tem de se separar dos seus filhos para lhes garantir um futuro que seja mais seguro e mais instruído do que foi o seu? Talvez custe tudo e talvez valha tudo, quando a vê fazer a vida na cidade que escolheu. Mesmo que não seja a trabalhar no que estudou.

A Nadir formou-se na EPAD – Escola Profissional de Artes, Tecnologias e Desporto, em Lisboa, como técnica de Turismo. É relevante dizer que se formou com média de 19 valores, que ficou no grupo dos quatro melhores alunos e alunas do curso e que, por essa conquista, ganhou a oportunidade de fazer um estágio no estrangeiro, em Espanha. No relatório de estágio teve 17 valores, feito que, segundo a própria, era realmente diferenciador na escola.

De que lhe serviu o canudo e os 50€ gastos a imprimir CV, para que a contratassem? Propostas de 200€ a 300€ por mês, a trabalhar a tempo inteiro. E viveria como?, pergunto. A Nadir justificou-se com a crise de 2008 que se arrastou até 2012, como se não vivêssemos uma todos os anos, muda o objeto. Eu talvez lhe chame também falta de vontade. Ou até ouse insinuar racismo. Afinal, a única coisa de que a Nadir não gosta nesta cidade é a invasão constante a propósito da pele escura que a vida lhe deu, seja através dos olhares desconfortáveis nos transportes públicos, seja através dos comentários impróprios que ouve quando anda na rua.

Perante a falta de pontos de fuga, porque a mãe teve dinheiro para sustentar o período dos quatro anos de estudo e mais não pôde, mesmo que tenha querido poder, e porque não era opção voltar para Cabo Verde, a Nadir fez-se à vida trabalhando no que desse para se sustentar, como eu tantas vezes digo de mim, sentada com amigos à mesa de um dos quiosques da praça do Príncipe Real. Fiz-me à vida.

E regresso à casa de partida: quanto é o tanto que nos separa e o tanto que nos aproxima? A Nadir cuidou de crianças, de idosos na Santa Casa da Misericórdia, de casas e, indiretamente, hoje cuida das pessoas que moram nas casas que cuida. Cuida de mim. Uma casa limpa vale uma família cuidada. E eu posso assegurar que, apesar de me apetecer fazer o trabalho com ela sempre que chega o dia, afinal somos da mesma idade, ambas com ouvido para a música, ela dá conta de tudo. Faz-se a tudo até que tudo brilhe, como se me permitisse ver o meu sofá através de um filtro do Instagram.

Foi precisamente através do Instagram que me mostrou como a mãe era bonita. Emocionada. É que a Nadir percebeu adulta, no seu entendimento tarde, o que a mãe tinha feito toda a vida por ela. Agora que tem um filho a seu cargo, mesmo que o seu sonho profissional seja fazer animação turística num hotel, que até foi o que estudou (faz sentido, claro!), tem de garantir que há dinheiro em casa para as necessidades elementares, as suas, e para tudo o que for preciso, do pequeno.

Não há tempo para mandar CV de novo e, não estando sozinha em Lisboa, não tem com quem contar a não ser consigo. É real, sim. Existe, sim. Como a Nadir, quantas e quantos mais? E ela consegue. Mas eu desconfio que ela consiga ainda mais se lhe fosse dada uma oportunidade diferente. Como não sou dona de um hotel, apenas das minhas palavras, escrevo. Faço deste texto um microfone sem som e com alcance.

Sempre que a Nadir entra na minha porta, entra a certeza de que a força existe. Demorei um mês a conseguir conversar com ela para fazer este texto; é que uma hora de conversa é menos uma hora de trabalho. Então fiz perguntas e andei atrás dela, janela acima, tapete abaixo, enquanto a minha casa perdia os pelos de cadela acumulados e o meu coração ganhava uns quantos músculos sobre outras formas de nos fazermos à vida.

A Nadir saiu de São Vicente para Lisboa em 2009, eu de Coimbra para o Rio de Janeiro. Em 2010, já nos encontrávamos cá as duas sem sabermos. Ela sente-se lisboeta, eu sinto-me portuguesa. Ela é grata pelo que tem, eu pelo seu exemplo e por me ajudar a ver Lisboa para além das suas fachadas e frontarias. Afinal, quanto luz a vida de quem põe as casas da cidade a brilhar? Gosto de saber mesmo que doa. E uma das verdades, pelo menos uma, é agora nossa. É a mensagem que deixo, de perfil.


* Nascida em Coimbra em 1989, Rita Dias canta, compõe, escreve e representa. Lançou o disco “Com os pés na terra”, participou no Festival da Canção e editou o livro de poesia “O Encontro do Tempo Ternário”, em Portugal e no Brasil. Em 2020/2021, estreou-se em duas peças de teatro e, em 2022, lançará o seu segundo disco,Morremos tanto para crescer“.

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