Quando o Tomás arranja uma namorada nova, já sabemos que se vai transtornar a vida. Larga as sapatilhas, mete uns sapatos. Deita fora o gorro e passa a mão pelo cabelo. Diz adeus aos couratos, a vida passa a lagosta e filet mignon. Demora dias a responder às mensagens, deixa de aparecer nos jantares de grupo e, quando finalmente volta, vem a dizer coisas como “Nós não gostamos de tiramisú”.
Mas nós quem? Estávamos eu, ele e a Teresa, que comia uma taça como se tivesse vindo da prisão. Eu, já se sabe, nem uma nem duas no que toca a açúcar, sou equipa tostas de queijo até ao fim. Claro, assim a pés juntos, estava a falar da Elsa.
A minha prosa tem limites e não posso mostrar-me a revirar os olhos. Caso contrário, era isto mesmo: as retinas a fazer uma órbita para a direita, pouca paciência, muito enfado.
Namoravam há onze (11) dias. Nem dez (10) nem uma dúzia (12) nem quinze (15). Onze (11). Ele contava-os e comemorava cada rotação da Terra desde que tinha sido escolhido pelos astros – por ela, em quem o sol batia em cheio, sendo astro ao cubo. E de repente havia um nós. Surpreendia sempre, porque se julga que se aprende com os erros, mas era o mesmo padrão que com a Filipa, a Carolina, a Alice, a Dina e a miúda das tranças de quem já não sei o nome.
Quando se vai sôfrego ao amor, não há como não o devorar, como Saturno a deglutinar um filho. No início, o Tomás ainda fingia que era ele o devorado. Amava sempre muito e tanto, mas à primeira centelha com outra, o fogo de artifício anterior era pó que incomoda e deixa tosse.
Agora, todas as apostas estavam na Elsa, ela é que seria a égua vencedora, e isto apesar da frase de apresentação: “Não é muito bonita, mas.” Como as outras eram sempre de Julia Roberts para cima, eu e a Teresa desconfiámos logo de que aquilo, mais do que ter perna curta, não tinha pernas para andar.
Somos um grupo que gosta de jantar no Zapata. O Tomás passa as tardes na biblioteca Camões, é só descer uma rua. A Teresa trabalha no Rato, é descer outra. E eu, também feita amante, cruzo Lisboa à chuva só para os ver, que ter amigos é amar sem pedir nada.
Como o Zapata é o nosso lugar sagrado, temos a decência de aparecer sempre em trio, nunca levar lá mais ninguém, nunca arriscar macular o nosso espaço. Jamais estragaríamos um bitoque com o sabor de um amor falhado, jamais temperaríamos um coração de boi com o demasiado sal de um coração partido. Relações de vários anos, incluindo um casamento, passaram por nós sem lá terem posto os pés, e é assim que a vida deve ser.
Ora, com dezassete (17) dias de namoro, o Tomás lixou-nos à grande, assumiu que eu é igual a nós (eu=nós), que nós é maior do que o mundo (nós>mundo), e trouxe com ele a Elsa. Eu e a Teresa nada devemos à simpatia e admito que nos custou fazer um esforço para o plástico pelo nosso amigo. Cerimónias fúnebres seriam mais agradáveis do que as nossas caras de enterro até chegar o café, e eu, que sou abstémia, quase o pedi com cheirinho. Já o Tomás sorria, feliz da vida, e pedia mais mousse e mais cerveja, sem perceber que estávamos com vontade de o atirar da ponte 25 de Abril.
No dia seguinte, quem tinha vontade era ele. Algures entre a meia-noite e as duas da manhã, a Elsa resolveu cortar o fio à meada. Chegou o drama, vieram os áudios do WhatsApp, o não estava nada à espera. “Achei que era um amor para a vida.” “E se eu tentasse falar com os pais dela?” Gravou uma playlist numa pen, que, graças a Deus (tenho amigos católicos), a Teresa conseguiu interceptar.
“Tinha quase a certeza de que, mais semana, menos semanas, íamos dar uns beijinhos um ao outro”, disse-nos ele. A Teresa ficou possessa, histérica, escandalizada: “O quê? Vocês nunca se enrolaram?!” As mãos tinham raspado uma vez e quem ama sabe que epiderme na epiderme é igual a amor para sempre. Um segundo é uma eternidade. Um segundo condensa a vida inteira.
Quem já teve olhos a bater em olhos em plena noite de Lisboa – o Tejo ao lado, as estrelas em cima, multiplicando-se por ele ou por ela – sabe que esta cidade existe para dar palco aos amantes e entender-me-á sem cinismos, compreenderá o meu amigo, que ainda por cima tinha um trunfo: “E ela já me seguiu no Instagram.”
O rapaz estava um caco e nenhuma de nós teve coragem de dizer o óbvio, ainda que o óbvio pudesse amansar-lhe a dor: “Descansa, Tomás, ela não acabou contigo.” É que para ele não era óbvio que não tinham sequer começado.
Como um estóico, numa noite, pegou no coração escouraçado, fez dele a vitrine da perfeição de amor. Sozinho, plantou-se no Adamastor a ver Lisboa, a Lisboa dele e também a Lisboa dele e dela. A Lisboa deles.
“A nossa Lisboa…”, dizia, apesar de mal a terem visto juntos. E então pôs-se a sós com os poetas, que ali tinham deixado a mágoa, que ali tinham deixado um verso, e cada artéria da cidade parecia uma artéria coronária. Meio milhão de habitantes e quantos milhões de corações partidos?
Um amigo come e cala, e nós calámos e comemos quando o Tomás nos contou isto. É que nunca sequer tinham ido ali juntos, mas ela era lisboeta, já lá devia ter passado tantas vezes, aquele chão existiria apenas para os seus pés. Depois de um caminho perdido, como não querer insistir nos passos?
Com 31 anos, o Tomás queixava-se da vida: “E agora, quem me vai querer?” Não sabíamos. Eu não o queria, a Teresa também não. E por isso faço este apelo, à boa moda dos folhetins antigos, embora com mais caracteres, que com a Internet pode-se, e em caso de solicitação envio foto: alguém me fica com o Tomás?
Oferece-se isto: elemento do sexo masculino, sem fertilidade comprovada, doutorando em Engenharia da Energia e do Ambiente, especialista em renováveis, com rendimentos ligeiramente acima do salário médio português, sem descontos para a Segurança Social; cabelo forte; boa voz; simpatia; romantismo à escala da sua fragilidade emocional.
Exige-se: senhora de boas maneiras, 25-33 anos, tão disposta para o amor vertical quanto para ganhar o Euromilhões esta semana. No caso de não conseguirmos, para esta vaga, alguém com uma razoável produção de estrogénio, cogitaremos a possibilidade de recrutarmos um elemento do sexo masculino, embora aí já se exija uma inteligência extraordinária, um dorso tonificado, zero pêlos, e ainda que seja um bom dono de casa (duplo sentido: possuir um imóvel, adorar aspirar carpetes).
Num e noutro caso, priorizaremos quem souber dançar salsa. Verifique-se a circunstância de zero candidatos e enveredaremos pela opção c: eu ofereço 7 euros a quem ficar com ele e a Teresa oferece 5.
O mundo abre-se para o amor, enchamos Lisboa de esperança, ainda que os tempos no meu círculo de amiguinhos sejam negros. A história é ainda mais trágica do que o coração estragado do Tomás: nunca mais fomos ao Zapata.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
Alegre e divertido