*para o João Paulo Cotrim, do ilustrador e do amigo.

Em choque a primeira palavra que me ocorre é Não. Não saber como. Na imensidão de vidas vividas com o Cotrim abre-se um vazio cheio de nada. Não, não é fácil escrever sobre a morte de um amigo. Mais difícil é quando nos damos conta de que a nossa vida se confunde com a dele. Esquisita sensação, a de escrever o nosso epitáfio.

Foto de Tiago Fezas Vital.

Agora sem exagerar: é como se me tivessem arrancado uma parte fundamental de mim – arrancado um braço, aquele que entrelaça ao outro e nos aperta com força, aquele que nos dá o primeiro abraço e que é o último a nos largar. O nosso braço. Foi assim para mim, para todos nós que tivemos o doce privilégio de o ter, ao João Paulo Cotrim.

O resto, o ter que vos contar o extraordinário e corajoso editor, o argumentista, o poeta, o motor de arranque de várias gerações de autores, o galerista e impulsionador de inúmeros projectos pioneiros ligados à ilustração e à banda desenhada que furaram com pinta e inteligência a lógica do pensamento hermético, isso, poderia deixar aos outros. Mas não, quero-vos contar na primeira pessoa.

Imaginem que vos estou a abrir uma garrafa, pode ser de cerveja, pode ser uma IPA, daquelas turvas.

Turvo, dou um golo e recuo a mais de 30 anos. Estou com o mesmo copo, de uma cerveja mais banal, num bar. Se não me falha, o Bar da Memória, na Ajuda, em Lisboa, no começo de 1990. Comigo estão o Jorge Mateus e os irmãos Fernando Martins e Carlos Guerreiro. Muito jovens, tínhamos acabado de criar um fanzine irreverente e um bocado punk, o Hips!, que estava a dar que falar muito graças à nossa enérgica distribuição “à pata” – num ápice estávamos a ser falados e elogiados em páginas inteiras no Se7e, Blitz, O Independente, Público…

Tanta energia, tanta sede não nos cabia num só copo em Cacilhas, ponto de encontro de putos a acabar o secundário e que se travestiam de marginais porque marginal era a palavra de ordem no outro lado da margem onde vivíamos. Na época, o nosso universo da BD era uma ervilha verde e cheia de vitamina, mas ainda pequeno grão, todos se conheciam. Renato Abreu, um autor de estilo avant-garde não alinhado com o clássico insistente, fez o telefonema. Um seu amigo, com nome engraçado que eu não tinha fixado mas que me fazia lembrar uma onomatopeia de banda desenhada, com um som de campainha “Trriiiiim”, tinha lido sobre o fanzine, achado piada, e convidava-nos a participar num projecto novo.

Numa só noite conheci as três pessoas que mudariam absolutamente a minha vida. O jornalista e publicitário Júlio Pinto, o designer (e ilustrador naqueles dias) Jorge Silva, e o editor João Paulo Cotrim que teria uns vinte anos e que reunia num espaço apertado amigos e desconhecidos, de todas as idades, num bar que celebrava a Lisboa de Jorge Sampaio, a Lisboa da coligação das esquerdas, a cidade a despertar para dançar.

O João Paulo abriu a pista, a partir daí a música nunca mais parou. LX Comics era o nome do projecto de revista. Lx de Lisboa, Comics de banda desenhada mas à espanhola, a lembrar referência à Madriz, publicação dos anos da movida madrileña que estávamos também todos a experienciar na versão pós Krus Abecasis. A ideia era avançar com uma periodicidade regular, se possível 4 números por ano, com novos autores que conseguissem apresentar histórias inéditas consistentes, metade a cores a outra metade a preto e branco, tudo pago à página, todos portugueses com excepção para Miguelanxo Prado que sendo galego já era cá da malta.

A vereação da cultura editava. Desde o primeiro minuto o vereador João Soares abraçava o projecto e teve até que arregaçar as mangas e falar grosso na defesa de uma página minha – não esqueço, isto começou no Bar da Memória – quando, na BD inaugural desenhei o obelisco dos Restauradores literalmente na forma de um pénis, e acabou alvo de tentativa de boicote em reunião municipal. “- Um obelisco é um falo, sempre foi um falo, senhora vereadora!” De repente uma banda desenhada, um vereador de esquerda a dar uma lição de História e Simbolismo a uma vereadora democrata-cristã.

De repente o Cotrim a agitar, e… a publicar.

A LX Comics foi agitação mais para além da Praça do Município. Alterou todo o cenário da banda desenhada nossa contemporânea dando-lhe importância, relevância perante novos leitores anteriormente desinteressados no género, tornou tangível a possibilidade da (semi) profissionalização, até então uma miragem e, o mais importante, fez despertar novas gerações de autores.

Dou mais um golo de cerveja e a memória leva-me agora à Avenida de Roma, 93, rés do chão esquerdo. Abre-me a porta uma bela morena de voz calma chamada Isabel que me leva até a um gabinete apilhado de revistas, entre elas está o João Paulo Cotrim. “- Entre senhor doutor, a vida corre-lhe bem?” Eu sento-me a olhar para trás, não fosse estar a empatar a entrada de algum tipo importante. Mas não, era para mim que ele falava.

Estava no quartel-general da MFCR, uma humilde editora que contrastava com aquele tempo iniciático do supérfluo. Havia uma proliferação, desde os meados dos anos 80, de uma certa indústria editorial orientada para o espectáculo de massas e o jovem João Paulo investia na Ecologia e Ambiente, antes de ser moda, e na cultura fora da caixa (revista Lua Cheia) ou na Ciência e Ficção Cientifica (revista Omnia), que, para muitos, passara de moda. Estava pronto para ilustrar alguma dessas revistas, mas não era para isso que ele me chamava.

Volto a dar mais um golo (aqui começo a sorrir). Ele não falava muito disso, mas João Paulo teve um passado ligado aos movimentos dos jovens católicos progressistas, o que hoje parece ser um paradoxo mas que na realidade o define na sua génese: o apostar no amor ao próximo, o transformar a sociedade no seu todo – sempre foram os seus namoros, mais o seu profundo respeito pela amizade.

Um dia o amigo, o inseparável amigo Jorge Silva, mostra-lhe um original meu pintado a cores mas publicado a preto e branco no COMBATE, jornal do PSR, Partido Socialista Revolucionário (onde Cotrim acreditava e colaborava), e gostou tanto que me quis convencer a colaborar com um seu amigo de infância que procurava um ilustrador. Esse amigo era na altura jornalista do programa eclesiástico 70X7 que passava nas manhãs de domingo na RTP e a proposta era desenhar toda uma campanha para a prevenção ao tabagismo com a orientação do professor Fernando Pádua, médico cardiologista que se debatia na defesa do coração e de factores de risco como erros alimentares, abuso do álcool ou inatividade física.

Foi esta campanha o meu primeiro trabalho de ilustração encomendado pelo João Paulo (estou-me a rir neste momento). Semanas depois estávamos no Hot Clube, casa cheia, a beber o seu novo projecto, estávamos todos convidados a ilustrar 2 páginas a cores num livro de produção ambiciosa, também com a chancela CML, sobre os bares e discotecas da Lisboa de 1991. O Livro, autêntico catálogo da ilustração portuguesa, aliás o embrião de muitos outros que daí virão, é batizado “Lisboa – Noites de vIdro” e nessa noite descobre-se que o João Paulo namora com a Isabel.

Outro golo na cerveja. A Bedeteca de Lisboa e tudo o que gira na sua volta é-lhe indissociável. É no palácio oitocentista do Contador-mor, restaurado para albergar a BD e os seus, que sobre o editor nasce o galerista e o curador. Curador, termo tão irritantemente elitista, degustado no mundo miudinho das nossas Artes Plásticas mas que ao João Paulo cabe tão bem no seu sentido literal.

Traz-me sublinhar uma faculdade rara que todos os que o conheciam sabiam ser regra que o diferenciava de todos os outros: materializar o momento em livro, o objecto livro. Uma exposição tinha que ter um catálogo (Salão Lisboa, Ilustração Portuguesa, etcetera), nestes tempos de desmaterialização ele materializava, transformava em objetos únicos, mesmo aqueles, praticamente todos, de orçamento minguado, eram fecundados e depois paridos com amor, para depois nos virem pararem às mãos. É essa a prenda que o João Paulo e a Isabel Amaral nos deixam para a eternidade: OS LIVROS.

Volto a encher o copo, com os livros como bandeja.

Lembro A Filosofia de Ponta, que ilustrei para o Independente a partir dos textos do Júlio Pinto. Foi o João Paulo que nos uniu e nos deu a honra de exposição inaugural a 23 de Abril de 1996 (sim, com catálogo) na galeria principal, a poucos metros daquela que viria a ser daí a 4 anos, mal o sabíamos, a câmara ardente do filósofo argumentista.

O Júlio, com apenas 50 anos, era derrotado por um cancro e perdíamos um pai comum. Quem nos conheceu aos 3 juntos, saberá detectar réstias da perfídia do humor do Júlio, alma omnipresente em todos os nossos almoços ajantarados na Mymosa. Quando o João Soares, presidente da Câmara, ofereceu o palácio das Galveias para o chorarmos, o João Paulo preferiu abriu as portas da Bedeteca – quem hoje se atreveria a tal?

E quando Lisboa muda de executivo, em 2001, e o João Paulo abandona a direcção da Bedeteca, não será por apenas por convicção política mas por respeito a uma amizade.

E estas coisas também se pegam: nos anos embrionários do departamento de Ilustração da escola Ar.Co, ocorreu-me propôr à direcção acrescentar o ensino da Banda Desenhada. E porque faltava ao pioneiro curso a Palavra, convidei o João Paulo a dar as primeiras aulas teóricas sobre as disciplinas que eram a sua paixão. Duraram, se tanto, pouco mais que um semestre.

O primado da prática sobre a teoria puxava-o mais uma vez para outros territórios. Mas sem se afastar completamente, era da sua natureza nunca largar os filhos mesmo que ilegítimos. Sempre ligado ao Ar.Co, ajudou-nos a organizar em 2008 uma exposição única e irrepetível na qualidade, em parceria com o Centro Português de Serigrafia: Cor – Exposição de Ilustração comemorativa dos 35 anos do Ar.Co e dos 15 anos da Casa da Cerca em Almada, que reuniu o melhor da ilustração portuguesa.

O último copo. Só não lhe perdoo uma coisa – e escrevo isto a jeito de brincadeira – o ter-me obrigado (2010) a acompanhar, lado a lado com Cavaco Silva, a visita inaugural da monumental exposição Jogo da Glória – O século XX Malvisto pelo Desenho de Humor, no Palácio da Cidadela de Cascais e apoiada pelo museu da Presidência da República.

Nesse dia o João Paulo foi mais mártir que curador. E santo milagreiro, que com a ajuda do seu irmão de sempre Jorge Silva, nos ofertou a dádiva de outro catálogo único, uma obra de arte que retrata os eventos mais marcantes da vida social e política do século passado português, através de 400 ilustrações dos mais relevantes ilustradores e artistas portugueses do último século.

E até mesmo aqui, com o meu camarada de BD da Mensagem de Lisboa, Ferreira Fernandes, somos dupla nascida e enlaçada pelo mesmo curador num almoço na Mimosa do Camões, (Mymosa) restaurante eleito gabinete de trabalho, geminado com a Abysmo, editora também filha da Isabel, à rua da Horta Seca, mesmo em frente do ministério da Economia, palavra que nunca entraria no léxico do curador Cotrim.

No Folio do ano passado, no lançamento da cerveja literária.

No festival literário FÓLIO 2021, em Óbidos, ele nunca parou, incansável, parecia ter rejuvenescido, inaugurando, apresentado, palestrando, convivendo. Nós que pensávamos ser uns resistentes, mal tínhamos pedalada para o acompanhar. Até ao último golo de cerveja, João Paulo Cotrim conseguiu lançar no castelo de S.Jorge o seu último livro com o fotógrafo João Francisco Vilhena, mais um amigo. Sim, sempre os amigos, no sentido laço.

O livro chama-se Diário das Nuvens e é lindo. As fotografias “do mais enigmático dos elementos” captam toda a profundidade e beleza dos olhos de água do nosso curador.

Estou agora com o copo vazio. Sinto-me tão vazio e no mesmo tempo tão cheio. Um bocado perdido na Memórias das nossas Noites de Vidro, calo-me.

Busco as últimas palavras que o João Paulo me dirigiu quando, há um mês, a 19 de novembro, após uma apresentação em Cacilhas de um dos seus mais singulares projectos que ilustrei – Cadáver Esquisito uma cerveja literária – uma combinação de cerveja artesanal do mestre João Brasão com textos inéditos de cúmplices companheiros, em que me atira :

– Vou agora atravessar o rio, vens?

– Não. Vou ficar mais um bocado.

É tramado ter que ficar.

Lisboa, últimas horas de 2021

Nuno Saraiva, mais um ilustrador e autor de bd.

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