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Nem todas as crianças me lembram livros mordidos. Mas algumas, cujo choro nasce fora da caixa torácica, as de olhar desfixo e sorriso posto ao lado, lembram-me um livro mordido e remordido nas pontas – edição brochada pronta a ser molde de novos dentes.
A mãe da criança que me mordia os livros chamava-se Filipa. Suponho que tivesse cara, que ainda a tenha, mas eu não a recordo o suficiente para a descrever. Viera de São Tomé, do cheiro suado dessa terra, para se empregar em casas e esquecer o leve-leve.
O leve-leve, mais do que o deixa acontecer, é o que se diz por lá para o turista aliviar a carteira. Só que não havia leveza no fardo que trazia numa espécie de capulana atada às costas: trazia o filho de dez anos.
Por não ter onde o deixar, a Filipa largava-o de manhã no meu quarto enquanto tirava o pó, aspirava e fazia tostas-mistas, fatia de fiambre, fatia de queijo, fatia de fiambre. Sentindo-se abandonado, o rapaz chorava-se de alto a baixo e tacteava até à minha cama, onde se metia para chupar a ponta dos lençóis, mamilos secos de tecido. Talvez sentisse as vibrações do aspirador, quase imperceptíveis na estrutura da cama, dizendo-lhe que a mãe continuava a existir, ainda que cansada e longe.
Depois coçava a carapinha, atirava-se para o chão e, de cócoras, chorava-se mais um pouco. Os olhos, vejam-nos comigo, eram gelatinas brancas. Quando ele os coçava, temia que lhe escorressem pela cara. Seguindo as mãos-guia, chegava às estantes e aos livros e mordiscava os fitilhos e lambia as lombadas e tentava subir às prateleiras.
«Não trepes, não trepes», dizia-lhe eu.
Entre o filho da Filipa e o meu irmão, pensava eu, havia parecenças, ambos cairiam sempre de muito alto embora fossem incapazes de trepar. «Não trepes», insistia. Por vezes, ele virava-se para mim, sentindo as minhas mãos nos seus ombros, e gemia de medo e de abandono. Quem não o ouviu não o ouve, agora que só geme em frases de crónica.
Quando tentava trepar às estantes do meu quarto – os braços em aranhiço, as pernas arqueadas, o queixo assente na prateleira –, parecia ainda mais cego, surdo e mudo.
Nascido assim, fechado num corpo entregue ao mundo, roubara à mãe o leve-leve de São Tomé. Em resposta, ela trouxera-o ao colo para Portugal, estudara para compreender os médicos, e agora trabalhava porque em Cuba, contava-se, alguém tinha aprendido a curar a surdez, a cegueira e a mudez. Talvez Cristo.
Antes de Cuba havia Portugal e casas para aspirar. Aqui e ali, desligava o aspirador e abria a porta do meu quarto para espreitar o filho. Encontrava-o dentro da minha cama, refazia-a; encontrava-o debaixo da cama, tirava-o da toca; encontrava-o balançando-se na cadeira, afastava-a dele; encontrava-o mordendo os dedos, tirava-lhos da boca. E regressava aos afazeres sem o suspiro devido, sem partilhar os gemidos do filho, talvez nem sabendo que valia mais do que qualquer lenda épica.
Um dia, dei com ele a comer a lombada de um livro de Luis Sepúlveda. «Isso não», disse-lhe. Ele não me ouviu. O livro já estava impresso de dentes. Tirei-lho da mão: ele lançou-se ao chão, mais chorando, mais tacteando, e assim deitado esticou os braços e chegou com as mãos aos meus pés.
Pela ponta dos dedos, sentiu as minhas pernas e ergueu-se por mim acima. Eu já pronto a devolver-lhe o livro, a dar-lhos todos – não serviam para nada, se não servissem uma criança cega, surda e muda. Ele seguiu erguendo-se, as mãos a mapearem-me – já não chorava –, até ficar completo de pé à minha frente.
Depois aproximou-se, murmurou qualquer chamamento triste de mamífero, e deu-me um beijo na testa.

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.