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Vou contar como vi e ouvi sem acrescentos. Tudo aconteceu no dia do grande terramoto. Estavam sentados a duas mesas e percebi o que diziam. Um era calvo e gordo, uma barriga que sobrava do guardanapo, e o outro esticado e marreco, de quem pede muitas vezes “com sua licença”.
– Que bicheza tem aí nas entranhas, homem? Catano! Nem esta tremedeira lhe para o ruminar da boca. As coisas a mexerem-se dos lugares e você debruçado sobre o prato.
– É o terceiro abalo esta semana e quer que eu deixe de comer por isso?
– Um pouco de respeito, senhor. A natureza ressente-se.
– Que faça ela bom proveito. As entranhas também se lhe remexem. Tem o estômago às voltas, por certo. Eu, pelo menos, cá me aprovisiono.
– Isto não é fome, senhor. A natureza é certa, sabe? Avisos, digo-lhe eu. E não sou de superstições. Mas isto parece-me motivo bastante para revermos as nossas malfeitorias.
– Está maluquinho! Ó homem, está-me você a dizer que os abalos da terra são encomenda do céu? Esses devaneios devem-lhe vir com a fraqueza. Coma. Coma, que sabe que aquelas reuniões duram que é um inferno.
– Acha que ele hoje está para falar?
– Não está sempre? Por isso coma.
– Que homem mais mesquinho. Só se cala, quando um lá se desequilibra da cadeira pela tonteira do sono e vá de encenar que deixou cair os dossiês.
– Cala-se agora! Vinga-se mais do desgraçado e vá de encomendar mais falatório.
– E para hoje, o que há na ordem de trabalhos?
– Os candeeiros da Sé… parece-me. Que diacho de sopa que não para dentro do prato!
– Mas os candeeiros do largo não foram mudados agora?
– Foram, homem. Os outros já estavam fundidos desde que Dom Sebastião desapareceu no nevoeiro. Eu cá tenho para mim que são os catraios da torre do sino às fisgadas aos pardais.
– Se já estão postos melhor. A reunião fica mais curta.
– Nem pense nisso. Depois da empreitada concluída ele fala mais do que quando é preciso fazer alguma coisa. Esteja certo de que não saí dali hoje sem saber a história da lâmpada. De qualquer maneira a substituição luminosa não lhe correu tão bem como ele queria.
– Catano, este foi dos fortes. Que quer dizer com não correu como ele queria?
Como estou a observar a conversa de perto, há coisas que me saltam à vista. Por certo, ainda não se tinham apercebido de que se trata de dois homens da autarquia, deputados municipais. Talvez os mais argutos tenham adivinhado que havia neles um matiz de política tasqueira, mas não passaram daí. O da sopa contorcia-se agora em gargalhadas golfejadas à maneira daquele boneco de orelhas longas e dentes separados e contava divertido o episódio dos mata-moscas:
– Mas já viu bem aquelas lâmpadas roxas, que mais parecem os mata-moscas eletrónicos dos cafés? Art Deco foi ele dizer para os jornais. O que lhe digo eu é que, quando se fala dos candeeiros que a câmara meteu no largo da Sé, toda a gente pergunta: o quê? Os mata-moscas?
Passemos agora para a reunião da Assembleia Municipal, porque dei por mim a pagar à pressa e a seguir estes dois representantes do povo.
– Art Deco?O senhor presidente anda a dar sinais de tartamudez mental. Aqueles candeeiros só faltavam zumbir para serem efetivamente mata-moscas comerciais. Porque lá para isso servem, já que os insetos se mostram hipnotizados pela luz arroxeada.
– A minha mãe já não vai à missa para não ver a aberração – acrescenta outra deputada de camisa abotoada até ao queixo.
O Presidente engordou dentro da camisa de colarinho apertado. Engordou, triplicou o queixo, empinou o estômago. Os botões a resistirem ao aumento do volume do corpo. E a cada argumento, parecia mais inchado.
Por certo o chorrilho de acontecimentos seguintes teria dado boas primeiras páginas de jornais, mais promissoras do que o comentários sobre os fiéis que declinaram a celebração eucarística. Mas também nesta situação a máquina de propaganda funcionou e atenuou as consequências do desaire. A verdade é que o peso da publicidade da câmara nos jornais locais, acrescida do peso da publicidade do Governo de cor condizente à da câmara, é sobejo. Vicissitudes de um meio pequeno, onde a economia de mercado é débil e se arrasta enferma.
Findos os argumentos da oposição, tomava a palavra o autarca. E garanto que ainda não tinha concluído o raciocínio que culminaria na primeira ofensa dissimulada, escarnecendo da capacidade intelectual do caro deputado, quando se iniciou o fenómeno.
O primeiro sinal, visível para poucos, começou no baloiçar da água dos serviços municipalizados – porque o orçamento camarário não comporta água engarrafada (ou terá sido uma petição dos ecologistas?) – dentro dos copos baços, passando para o retinir das mesas, semelhantes a carteiras de escolas, muito juntas umas às outras; os papéis começaram a mexer-se como gente, logo seguidos das assentos desocupadas da sala.
A deputada abotoada deu um gritinho. Um deputado aflito admoestou outro por escarnecer dos roncos da natureza. Esse outro confessou-se logo maldisposto, no estômago revolvia-se-lhe um prego no prato malpassado e comido à pressa no tasco. Mas o autarca continuava na sua preleção e tudo parecia mexer mais a cada frase.
Por certo, estaria satisfeito com os efeitos que causava nos inertes. Calou-se apenas quando o busto do presidente do Governo tombou do pedestal e ficou decapitado de olhos fitos na audiência. O episódio poderia ser alimentado pelas superstições da população, atiçadas nas manchetes e na abertura dos noticiários. Era de abafar o assunto.
*Intertexto com o título da obra Fantasia para dois Coronéis e uma Piscina, de Mário de Carvalho

Filipa Martins
É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.