Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Há uns tempos, entrei num táxi para meia Lisboa rumo a Alcântara e mal me sentei apercebi-me da terceira presença. Não era o ambientador nem o terço pendente, era o taxista – ele inteiro – habitado pelo espírito dos taxistas, o espírito de ora isto muito bem, ora isto muito mal.
O homem, não mais de cem anos, não menos de sessenta, deve ter percebido que eu também sou habitado, tenho as minhas presenças, porque me disse «Esse cenho é de quem levou cos palitos». E eu, que estava de senho e de silêncio, mas sem palitos, respondi-lhe um «Sim sim» de ponto final.
E seguimos ao ritmo tossido do carro pela avenida da República, Fontes Pereira de Melo, túnel, Amoreiras, e quando pus os olhos na rua – antes tinha-os no fundo de mim, refúgio de onde menos se vê – estávamos na Possidónio da Silva, a descer para as Necessidades.
Nessa rua, as árvores toleram o tráfico de droga; ao contrário dos ciprestes de José Régio, são dedos apontados de gigantes amedrontados – evitam o armazém de encarcerar móveis chamado REMAR, os reformados com medo de serem denunciados pelo barulho das bengalas, a PSP do status quo, os que compram e os que vendem, a gente extinta que vive para se extinguir.
Um dia, num conto meu, a criança que a Soraia fez com o filho do dono do Johnny’s, ainda muito pequena, menina de dar com a cabeça na mesa de cabeceira, descia a Possidónio com a mãe quando a rua lhe deu um nó cego. Mas lembro-me agora que o conto está por publicar, só posso descrever o nó sobre a filha da Soraia mais tarde, quando tiver acontecido e for apenas de lamentar, ao jeito de dois parágrafos de jornal.
Estávamos a meio da rua quando o taxista puxou o travão de mão, tocou nas contas do terço, benzeu-se, virou-se para trás, disse-me «Você desculpe-me, desculpe-me você». E saiu.
O homem fora definitivamente habitado pelo espírito dos taxistas em dia de ora mau, ora péssimo: tinha-se posto à frente de um prédio como quem peregrina a Compostela. Mão esquerda tapando a boca e direita sobre a testa, estava em prece. E começou a chorar como alguns homens choram junto de outros homens, coisa atrapalhada e de esconder.
Eu no banco de trás, a vê-lo diante do prédio catedral. Saí do táxi, perguntei-lhe «Que se passa?», e pus-me a seu lado a admirar a fachada.
«Não vai acreditar, agora é que me bateu. Bateu-me agora.» Depois, olhando para mim: «Não acredita se lhe disser.»
«Mas diga.»
«É a primeira vez que passo por esta rua em mais de quarenta anos! E a emoção, sabe, a emoção. Eu nasci aqui, neste prédio, a janela do segundo esquerdo», e apontou para um alçado vago que nada tinha de esquerdo, direito ou R/C. «Cresci aqui. Ali brinquei com o Roberto, mais além meti-me com a Esmeralda. E a minha mãe, o meu pai… Nem sei o que lhe contar.»
Eu sabia o que lhe dizer: «Mas você é taxista há quanto tempo, para nunca ter passado por esta rua?»
«Conduzo há cinquenta anos, veja lá, cinquenta anos, como Lisboa é grande!»
Lisboa mete-se no bolso quando dá jeito levá-la de viagem. Lisboa é cidade de três sílabas, falta-lhe tamanho para quarenta anos de saudade.
Entretanto o trânsito fechava-se, iam reparando em nós, apitavam-nos, diziam-nos avancem ó cabrões. Ele indiferente, adorador do prédio onde nascera, descobridor da rua pequena onde fora pequeno. E eu, seguro de que aos habitados nada se diz de muito definitivo, insistia «Se calhar íamos andando…»
Fomos andando, mas para dentro do prédio. Aproveitando a saída de uma mulher, o taxista entrou, eu a segui-lo. Subimos as escadas estreitas onde cheirava tanto a sopa que se sentia o agrião na boca. Cheiro a sopa e a pessoa cansada. E mais a televisão dentro do segundo esquerdo, à porta do qual o taxista começou a bater e a pedir «Por amor de Deus, era só uma palavrinha».
Uma palavrinha para contar o que acontecera naquele metro quadrado: uma noite a mãe e o pai no colchão Pikolin («Você está a ver, com eles era a toda a hora»), depois ele no primeiro choro no mesmo colchão. Mais tarde, aflito das otites, encolhido na companhia dos pais para fugir às dores – em frase e meia, descrevera-me a casa, o Pikolin, a infância.
«Deixem-me entrar, que é urgente», continuava. Dentro, onde cinquenta anos antes o taxista sofrera dos ouvidos, agora João Baião berrava sobre chamuças e doces regionais e anunciava que isto hoje, senhores telespectadores, vai ser um dia de dança, festa e alegria.
«Ó homem, quero ir para Alcântara, vamos lá», disse-lhe eu.
«Que triste, isto. Ninguém abre a porta de minha casa.»
A rua parada e apitada, a gente de volta do táxi em ponto morto. O homem berrava «Eu nasci aqui! Eu nasci aqui!», os condutores respondiam-lhe «Nasceste a puta que te pariu!», e eu acenava, pedindo desculpa pelo meu taxista.
Quando chegávamos às Docas, nas casas decrépitas perto da nova CUF, de novo travou a fundo e disse-me, agora chorando livre de homem para homem: «Meu Deus, não acredita se lhe disser… Os anos passam, um gajo nem sabe. Bateu-me agora mesmo.» E saindo em corrida: «O meu filho nasceu aqui!»

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.
Muito, muito bom!
Que maravilha de texto. Obrigada!
Coitado do homem, eu tenho apanhado outros com o “espírito do táxi” mas foi sempre pior. Eram gatunos e uma vez tive que lhe apontar a minha arma do James Bond junto à nuca. Estávamos numa pedreira com mil metros de fundo. A ideia do taxista era roubar-me e atar-me com um saco na cabeça e atirar-me para o fundo da pedreira. Não havia funerária que lá chegasse. Foi isso o que me preocupou.
Gostei muito! Parabéns pelo belíssimo texto.
Uma escrita de tocar os côncavos da gente.
Obrigado por partilhar este texto.
Maravilhoso! Não tenho palavras para comentar. A alma da gente!!! Eu nasci aqui… extraordinário!
Texto muito bonito bem escrito e profundo gostei muito
Muito bom! Fã da imensa graça das crónicas do ARC e, claro, da boa escrita – que só mastigo à segunda, porque da primeira acelero com a vontade de ficar logo a saber tudo.
Afonso. Obrigado.
E como é grande a emoção de chegarmos ao lugar onde nascemos.
É um arrepio de frio, de dor que o choro alivia.
Já por lá passei. O lugar onde nasci.
Este puto é muito bom! tudo o que olha traz-nos em escrita como se fosse coisa viva…
Sou fã, adorei a crónica e os três livros que li dele