“Devia era ter vindo há mais tempo!” é o que mais se ouve dentro do autocarro da nova carreira da CARRIS, a 61B. Dantes, nenhum dos seus passageiros teria tido alternativa senão subir a calçada íngreme do bairro Bela Flor em direção ao topo da freguesia de Campolide. Mas, hoje, já nenhum dos seus residentes tem de cansar-se desnecessariamente. E tudo graças aos esforços da dona Gracinda.
Gracinda Pio, ou dona Gracinda (como é conhecida no bairro), usa óculos escuros e caminha agilmente com as suas calças coloridas. Chegou a Campolide, ao bairro Bela Flor, nos anos 1980, por mero acaso.

Natural de Alcobaça, veio para Lisboa, mais concretamente para um quarto na rua Morais Soares, para trabalhar na área dos seguros. “Claro que não queria morar num quarto a minha vida toda”, diz, “Quando a vida começou a melhorar um bocadinho, comecei a procurar apartamentos”.
Um dia, ao abrir o jornal, deparou-se com um anúncio de apartamentos na Calçada da Quintinha, no bairro Bela Flor, onde nunca tinha ido. “Vim ver os apartamentos e gostei muito”, conta. Nesse tempo, o bairro Bela Flor em nada se parecia com o que é hoje: “Isto era só barracas”.
Gracinda recorda a sua chegada à freguesia, e tudo o que viria a acontecer a seguir: em 1986, o presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Abecassis, subscrevia um acordo político com o objetivo de erradicar as barracas da cidade, lançando o programa RECRIA. Seguir-lhe-iam os passos Jorge Sampaio e, mais tarde, João Soares, para que se realojasse a população.

Com a construção das novas casas na Bela Flor, Gracinda viu uma oportunidade: para habitá-las, era necessário viver na freguesia, sem ter casa em nome próprio, o que era o caso dela. Foi aceite na terceira fase do concurso, tornando-se assim um membro ativo do bairro. Com a população fora das barracas, a Bela Flor foi crescendo. “Primeiro umas 200, depois umas 300, até 400 famílias”, diz. Mas, mesmo com o passar dos anos, continuava sem transportes que servissem a comunidade.
A longa luta por uma carreira de autocarro
A luta começou cedo, assim que dona Gracinda veio para o bairro e passou a integrar a Cooperativa de Habitação e Construção Bela Flor, gerida por voluntários. “Como se vê, este bairro fica aqui metido nesta cova e é de difícil acesso”, diz Gracinda, apontando para as ruas em declive, por cima da saída para a Ponte, quem vem das Amoreiras.
Todos os dias, pais caminhavam com os filhos até à paragem mais próxima para os levar à escola, e muitas vezes os mais velhos recusavam-se a sair de casa, tão exaustiva era a subida para se chegar aos outros pontos da cidade. Aliás, como grande parte da população da Bela Flor trabalha na área da carpintaria ou da construção, era habitual reunirem-se passageiros do bairro em carrinhas de trabalho para se subir até ao cimo das ruas.
“A Cooperativa, a pensar no coletivo, começou a interceder junto da CARRIS para que tivéssemos um transporte”, lembra Gracinda. Mas a luta seria interrompida e só voltaria a ser recuperada em 2009, com a eleição do atual Presidente da Junta de Freguesia de Campolide, André Couto – que não vai ser reeleito por ter chegado ao limite de mandatos.

“Já antes de 2009, enquanto morador da freguesia, sabia que havia uma comunidade que nunca tinha tido autocarro e que tinha essa ambição mais que justa”, sublinha André. Nesse ano, foi iniciada “uma sensibilização” da CARRIS para o problema, mas não foi possível levar um autocarro à “cova”, como Gracinda lhe chama. Para colmatar esta falha, criou-se uma carreira de bairro, o “Soma e segue”, “para diminuir o isolamento daquela comunidade”, especifica André Couto.
O panorama só viria a alterar-se no ano de 2017, com a municipalização da CARRIS. Foram feitos estudos de qual seria o melhor percurso, mas todo o processo demoraria ainda quatro anos, até à inauguração da carreira. Quatro anos! Até ao aguardado dia da inauguração, a 11 de maio de 2021. Nesse dia, os residentes do bairro disseram: “Saiu aqui o Euromilhões, na Bela Flor!”, espalharam pelas ruas.
“É uma história bonita da cidade de Lisboa que junta décadas de luta de uma população que nunca desistiu”, resume André Couto.
Tempos de mudança
O processo todo demorou mais de 20 anos. “Há 20 anos, a Cooperativa fartou-se de escrever cartas através do Presidente, mas não havia destes autocarros pequenos…”. Nem mesmo quando os autocarros de bairro passaram a ser implementados na cidade, o pedido foi atendido.
Mas dona Gracinda nunca deixou de bater o pé, acompanhada dos seus dois parceiros de luta: Luís Rosas, presidente da Cooperativa, e Maria Pinto, também membro da Cooperativa. “Isto leva tempo, mas muda-se, muda-se sempre alguma coisa”, conclui a mulher de armas.

E o que é que (ou mais, quem) contribuiu para esta mudança? “A gente nova, que é mais exigente”, discorre Gracinda, “As pessoas são mais ativas, estão mais conscientes. Há 20 anos, quem falava com o Presidente da Junta?”
São sinais de outros tempos, sim. O autocarro da 61B agora passa de meia em meia hora, e vai da rua da Bela Flor à Serafina. Contudo, dona Gracinda não quer que as mudanças fiquem por aqui. O bairro Bela Flor é “um bairro sossegado, com espaço para passear e com zonas verdes”, mas ainda lhe faltam alguns “bens do dia-a-dia” como “uma padaria, um talho, uma peixaria”, elenca.
Pelo menos, por agora, a cidade está só à distância de uma viagem de autocarro, mas a mudança vai-se fazendo… passo a passo.
* Ana da Cunha nasceu no Porto, há 24 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna.
Sou Ator profissional e Repórter de A Gazeta do Repórter e residente na Serafina/Campolide. Este autocarro, foi talvez das poucas coisas que valeram apena apostar e implementar para a freguesia. Tem o que é necessário e serve a população mais necessitada e envelhecida nas suas idas ás compras. Algo que as faz mais confiantes. Gente que dependia de outrem e que tem um autocarro que as deixa no pingo doce, e onde as volta a apanhar no mesmo sitio. Grande iniciativa da Junta de Freguesia de Campolide. Parabéns André Couto!