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Parecia um dia como os outros. Tinha, aliás, sido um dia como os outros. Já era uma e tal da manhã, ninguém podia adivinhar que o ponto alto do dia ainda estava para acontecer.
Estávamos a meio das férias da minha mãe. Durante o dia, tínhamos cometido o erro de ir para a praia de Paço d’Arcos. A paisagem enchia os olhos, o problema era que havia mais cães do que pessoas, incluindo um palerma que não parava de galar a minha mãe. Não bastasse e nem ondas havia e, se as houvesse, o seu som seria ofuscado pelos dos motores dos carros.
Encafuadas em poucos metros de areia, presas entre a rocha e a água, passámos ali umas horas a levar com o sol em cheio na cabeça. Eu, apesar do protector 50+ para criança, ardia. Horas depois, já em casa, parecia que o sol era eu a mandar calor para todo o lado.
Mas estava tudo bem. Fiz jorrar litro e meio de água fresca a ver se arrefecia por dentro. Não adiantou de muito, mas que se pode ainda esperar àquelas horas da manhã? A partir dos 27, o pós meia-noite é noitada, e tudo o que havia em mim era sono.
Até que o cheiro a queimado deu de si.
Estávamos as três na sala e a minha namorada acordou logo do seu torpor:
– Acho que a a máquina do tabaco está queimada.
Levantou-se e foi para a cozinha, onde a lâmpada bate mais de cima. Abriu a máquina com os braços esticados. O cheiro estava mais intenso, aquilo era coisa para explodir.
Entretanto, espreitei pela janela da sala e uma nuvem de fumo saía do 2º esquerdo. Não se via ninguém nem barulho. Vinda da cozinha, a minha namorada ainda disse que estava um tipo a tossir à janela. Lá voltei, e ainda o vi por dois segundos.
Enquanto ouvia “Onde é que viste um gajo a tossir à janela?”, ele ainda olhou para cima e nem uma nem duas. Nem explicações nem decência. Nesta altura, havia fumo dos dois lados da casa. A vizinha entre nós também se fez ouvir, e pelo sim pelo não recolheu a roupa do estendal.
Entretanto, a minha mãe tagarelava ao telefone totalmente indiferente à possibilidade de o 2º esquerdo estar a arder. Afinal, se estava na capital, a capital que se amanhasse. E não era fogo dentro de pedra que lhe ia estragar as férias, mesmo que isso significasse passarmos pelas chamas com os pés metidos em havaianas.
O 2º esquerdo parecia arder mais do que o virgem Amaro nos braços da sua amiga Amélia quando o habitante voltou a assomar à janela, tranquilíssimo como se até fosse bom ter a casa a arder. Ainda lhe perguntei “Está tudo bem?” e ele, sem olhar para cima, disse “Sim”. Nem um gesto para tranquilizar, tudo aquilo parecia mais bizarro do que uma crónica do José António Saraiva publicada depois de 1326.
Repeti “Está mesmo?” e ele “Sim, deixei queimar uma panela de arroz”.
Mas o meu olho Sherlock Holmes não me deixa ir ao engano, o meu nariz Miss Marple também não. Peguei no meu monóculo para disfarçar a miopia de um olho e disse à minha namorada:
– Nem pensar, isto cheira a pizza queimada.
Ela, que pouco percebe da vida, argumentou a sós:
– Queimado é queimado, é tudo igual.
Tenho 31 anos, ainda ontem era jovem, se há coisa que bem conheço é o cheiro da pizza a esturricar. E aquilo cheirava a pizza queimada. A massa queimada, queijo queimado, pimento queimado como o da pizzaria da minha adolescência. As nuvens de fumo passavam pelas janelas, conseguiram até passar pela porta e invadir as escadas do prédio. Mais do que nunca, eu estava em casa.
Desconfiámos. “É estranho, não é?”, disse-me ela, e eu concordei. Iríamos ficar quietas perante o perigo? Não é que soubéssemos que malvadez cogitar, que ele queimasse um cadáver com aquele olhar sereno também nem lembrava ao Stephen King, e só um compulsivo diria arroz em vez de pizza só para enganar a vizinhança.
Do outro lado da rua, vizinhos de pijama desciam as escadas. Com óculos por cima do sono, perguntavam ao rapaz, que fugia de uma janela à outra:
– Está tudo bem?
E ele repetia:
– Sim, só deixei queimar um tacho de arroz.
Sem se fiar, já a minha namorada tinha ligado ao 112. A minha mãe, repito, continuava ao telefone. Sabe Deus que tanto teria para dizer àquelas horas da manhã. O 112 disse que viria. Minutos depois, parecia haver menos fumo, talvez aquilo fosse mesmo arroz queimado, e se o habitante da casa a arder estava tranquilo, para que iríamos nós estar com preocupações de velhas?
Ele era o adolescente que os pais tinham deixado em casa durante as férias e que, como qualquer adolescente, achava normal cozinhar arroz de madrugada e que, como qualquer adolescente, fazia da cozedura de arroz um dilema de Física Quântica para génios doutorados em Harvard antes de chegarem à puberdade.
A minha namorada resolveu ligar de novo para o 112 a cancelar tudo. Ainda não tinha chamado do outro lado e o carro da polícia já barrava a rua, a sirene dos bombeiros já cantava pelos céus. Ou os carros dos bombeiros têm rodas de Obikwelu e tracção de Salomé Rocha, que leva um país nas pernas, ou a preocupação exalta-se quando alguém telefona quase às duas da manhã ao 112 dizendo que talvez haja um incêndio na rua do primeiro-ministro. Seja como for, ali estava a cavalariça toda, com a memória viva de um prédio a ruir na Morais Soares.
A senhora do 2º direito estava entretanto à janela. Barulhos, luzes, um camião dos bombeiros, outro dos Sapadores, um carro da polícia mais adiante – por coincidência ou não, mesmo à porta da casa do António Costa –, outro a barrar a rua do outro lado – por coincidência ou não, mesmo a proteger a loja das bolas de Berlim – e mais três enfileirados à minha porta chamaram todo o prédio.
De pijama, ali se pôs a senhora Alice, e também ela falava ao telefone. Dela pouco sei, para além do nome. Gaba-se de ser vizinha do Costa e diz muito bem da junta. Eu, que nem sei de quem é a junta, digo que sim a tudo porque preciso de um favor na próxima reunião do condomínio. Quando a vejo no café, sorrio-lhe e digo “Que cãozinho tão fofo!”, e nem sequer gosto de cães.
Mas a montanha pariu um rato. Pouco depois, a agente da polícia disse no walkie-talkie:
– Foi um jovem que queimou arroz.
Ainda assim, um bombeiro armadilhado, versão astronauta apaga-incêndios, entrou na casa do rapaz, e saiu pouco depois, e o fumo continuou a sair da casa e a subir. Só dez minutos depois a minha mãe largou o telemóvel, perguntando: “Então, era um incêndio?” No dia seguinte, o prédio inteiro ainda cheirava, insisto, a pizza queimada.
Agora estou para ver como vai ser a próxima reunião do condomínio.