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Após o brilhante triunfo de Pedro Pablo Pichardo na prova de triplo salto dos Jogos Olímpicos de Tóquio, vários colunistas nos asseguraram que o seu ouro vale tanto para Portugal como o ouro olímpico de Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Nélson Évora. O unanimismo na imprensa de referência só não foi total porque sabemos o que Nélson Évora pensa sobre este assunto (mas trata-se de um competidor directo), foi noticiada a resmunguice de um ex-eurodeputado comunista (mas que pareceu estar menos perturbado com a naturalização de Pichardo do que com a sua “traição” ao regime comunista cubano), e o comentador de desporto Luís Lopes é um conhecido crítico da naturalização de Pichardo.
Sem a pretensão de reacender uma polémica recorrente que só a próxima naturalização de outro atleta com nível de selecção voltará a avivar, ainda julgo ir a tempo de propor uma distinção: é obrigatório que a medalha de Pichardo valha o mesmo para Portugal do que as outras quatro, porque Pichardo é hoje um cidadão português, mas não é certo e nem sequer se deve exigir aos portugueses que o ouro de Tóquio valha o mesmo e tenha o mesmo significado do que o ouro dos nossos outros campeões olímpicos, que se formaram como atletas em Portugal e não passaram por um processo de naturalização acelerado (previsto na lei).
A base desta distinção é a diferença que existe entre Estado e nação. Por isso, estiveram bem as mais altas figuras do Estado ao dar os parabéns a Pichardo, como bem esteve o Comité Olímpico Português ao escolher o atleta que mais se destacou nestes jogos para porta-estandarte na cerimónia de encerramento dos jogos.
Mas os portugueses que não vibraram com Pichardo como há décadas se emocionaram com Rosa Mota não são forçosamente criaturas a quem a idade foi retirando o entusiasmo, nem xenófobos ou racistas, as acusações latentes ou explícitas com que são mimados aqueles, pela sua hesitação ou percepção das diferenças, impedem Pichardo de ser a nova unanimidade nacional.

Esta conclusão deveria ser trivial, mas como não é proponho o exercício óbvio: se o percurso de Pichardo é absolutamente normal, se – como nos querem fazer crer – não é motivo para reflexão, por que razão condenaríamos um Estado que resolvesse deixar de investir na formação de atletas e apostasse em exclusivo na naturalização de atletas entretanto formados por outros países?
Cuba tem apenas mais um milhão de habitantes do que Portugal, mas já conquistou 85 medalhas de ouro e nós apenas cinco. Deixando de lado a tensão que se instalaria entre os países, por que motivo Portugal não promove a deserção sistemática de atletas cubanos de elite para Portugal? Porque uma selecção nacional não se faz como se monta o PSG.
Assim, o que há de mais redentor no percurso de Pichardo, além do carácter opressor do seu país de origem, é a sua singularidade. Aceitamos que Portugal naturalize um Pichardo, mas haverá um número de Pichardos naturalizados para o fim específico de representar a nação a partir do qual a maioria da população se sentiria desconfortável com tais decisões do Estado. É mesmo esta a principal diferença entre Pichardo e os outros quatro olímpicos que nasceram em Portugal ou aqui chegaram ainda muito novos. Ninguém se põe a contar quantos Évoras o país toleraria.
Discutir fenómenos sobre os quais a nossa opinião é muito influenciada pela frequência com que ocorrem exige um grau de nuance que tende a rarear no espaço público e não se dá bem com a polarização. Talvez por isso, a trivialização da ida de Pichardo aos Jogos Olímpicos como atleta português foi feita pelos colunistas da imprensa de referência com recurso a simplificações que só toleramos porque vão ao encontro da visão bem pensante do Portugal cosmopolita.
No Expresso, Francisco Louçã, um conselheiro de Estado, construiu o seguinte raciocínio: sendo o pastel de nata tido por 100% português, mesmo contendo massa folhada, que não foi inventada em Portugal, a medalha de ouro de Pichardo também deve ser vista como 100% portuguesa. Q.E.D… É certo que a culinária está na moda, mas frustra não ler nenhuma consideração sobre a eventual necessidade e que critérios usar para limitar as naturalizações aceleradas de atletas sem vínculo prévio a Portugal.
No Público, João Miguel Tavares dedicou-se a um radical exercício de relativismo. Segundo ele, a polémica sobre Pichardo é absurda porque as nações são construções artificiais. Usando a mesma lógica, das religiões ao Direito, não nos devemos arreliar porque – tirando talvez os instintos – tudo é artifício. Mas ao escrever “Cada nação é um clube”, João Miguel Tavares mostrou que não quis pensar muito no tema; Porque cada nação não é um clube. Não mesmo.
Tirando os casos de filhos de pais com forte paixão clubista, tendemos a escolher o clube a que queremos pertencer e na esmagadora maioria dos casos não escolhemos a pátria; ao contrário de Pichardo, somos quase todos portugueses acidentais.
Já Pedro Abreu, também no Público, não resistiu à falácia da culpa por associação quando lembrou os deploráveis comentários de um racista e xenófobo do calibre de Jean-Marie Le Pen sobre jogadores da selecção francesa de futebol de 1998, o que é descabido numa discussão sobre Pichardo porque aqueles jogadores, incluindo Zidane e Djorkaeff, nasceram na França.
Pedro Abreu fez ainda uma confusão que tem sido habitual: é evidente que a medalha pertence sobretudo a Pichardo e que o atleta tem o direito de tentar encontrar um país que lhe permita ser feliz, mas o que se discutia não era se Pichardo tem direito a Portugal e sim, ao invés, se Portugal tem direito a associar-se aos feitos de Pichardo. É que no peito de muitos alegados xenófobos ainda resta algum pudor…
Enfim, para quê perder ainda tempo a inventariar os maus argumentos de uma discussão encerrada? Porque um naturalizado com o mediatismo de Pichardo tem uma dimensão que extravasa o âmbito do desporto, sobretudo numa altura em que a extrema direita cresce em Portugal e o país tarda em definir uma política de imigração que ajude a contrariar o envelhecimento da população.
Não duvido que parte da motivação de muitos para classificar a naturalização de Pichardo e o seu papel como representante da nação como um não-assunto se deve à noção do valor simbólico do atleta para as comunidades de imigrantes que procuram (ou não) naturalizar-se. Mas é uma leitura redutora, que não nos permite sequer interpretar a escolha de Pichardo para porta-estandarte como um acto político inteligente, o que só uma mente burocratizada não reconhecerá, e levou a uma degradação da qualidade da discussão que lembra as consequências nefastas da “hipercorrecção” para a escrita e da consciencialização aguda para o bom senso.
No seu famoso ensaio de 1882 sobre o que é uma nação, Ernest Renan lembra a centralidade do esquecimento e até mesmo do erro histórico no forjar de uma identidade colectiva. Recuperando o exemplo do pastel de nata, talvez não seja essencial para a coesão nacional mas dá jeito esquecer ou não ter muito presente que não inventámos a massa folhada.
Exemplos menos frívolos do necessário delicado equilíbrio entre a memória e o esquecimento são os vários processos de reconciliação nacional no século XX em países marcados pelo genocídio ou transições tensas da ditadura para a democracia. Embora Renan use uma escala temporal de gerações, este papel do tempo também se faz sentir ao longo de uma vida.
É de Paulo Rangel, no Público, a contribuição mais sofisticada e pertinente das que li na nossa imprensa. Assumindo a inspiração de Natália Correia, que cunhou o termo “mátria”, Rangel desenvolve a noção de Portugal como “filiátria”. A pátria deixa de estar associada aos antepassados e ganha uma dimensão de futuro enquanto “a terra dos filhos”. Rangel fê-lo lembrando as declarações em que Pichardo se referia à filha, já nascida em Portugal. Mas contará menos a existência de descendência do que a inscrição de Portugal nos planos futuros de Pichardo.
É esse compromisso – e não a medalha – que compensa a falta de um passado. E o tempo fará agora com que nos esqueçamos dos detalhes da naturalização de Pichardo, o atleta vá consolidando a ligação à nova pátria e Portugal se vá tornando cada vez mais hegemónico no trajecto pessoal e desportivo do atleta. Ele não pode ser mais cidadão da República Portuguesa do que já é, mas, ao contrário do que se lê por aí, vai ficar mais português e nós mais merecedores de o celebrar.
Por isso, nas olimpíadas de Paris (2024), quando Pedro Pablo Pichardo conquistar novamente o ouro, vamos ser mais a pular, pularemos mais alto e não há que ter vergonha desta mudança.
* Vasco M. Barreto é biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque, onde ficou 7 anos. Regressou a Lisboa e instalou-se nos Anjos. Em 2011 mudou-se para Oeiras, mas continua a dizer-se lisboeta. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.