Quando foi convidado a participar no Festival Muro, a primeira reação de Sérgio Odeith foi dizer que não. “Não me sentia em condições físicas e psicológicas para o fazer”, recorda. Mas, depois, foi ver o espaço que lhe tinham reservado e não resistiu.
O espaço é uma loja no rés-do-chão da Gare do Oriente que funcionou como sala de bingo mas que está fechada há mais de um ano. Quando Odeith ali entrou viu paredes esburacadas, pó, fios elétricos, restos deixados pelo antigo inquilino. “Estes são os sítios que me fascinam”, explica o artista.
Odeith já fez muitos murais, e alguns deixam-no muito orgulhoso, mas uma coisa é pintar numa parede lisa e outra é chegar a um sítio “cru”, “em bruto”, e dar-lhe vida, aproveitando todas as suas imperfeições.
“Gosto dos espaços abandonados por causa da diversidade das paredes, gosto mais de esquinas, recantos, buracos, que podem puxar para algo que nunca ninguém tenha visto – nem eu. É muito mais desafiante.”

Além disso, o artista admite que nunca tinha tido esta liberdade: “Nunca, em todas as minhas viagens pelo mundo, me tinham dado um espaço e dito: podes fazer o que quiseres, podes pintar no chão, na casa de banho, tudo o que te apetecer. Não resisti à tentação.”
Odeith ocupou o espaço em modo “free style”, ou seja, sem grande planeamento. Trouxe as latas de spray e deu largas à imaginação. O resultado é “Obliquity”, a exposição que é também uma das raras oportunidades para vermos as suas obras ao vivo e a cores em Lisboa. E isso faz toda a diferença.
A arte de criar uma ilusão
Sérgio Odeith tem 45 anos e é um dos mais internacionais artistas portugueses. Nascido na Damaia, Sérgio cresceu a fazer graffitis entre as linhas de comboio de Sintra e de Cascais, trabalhou como tatuador e acabou por se tornar conhecido como Odeith e especializar-se em obras anamórficas, ou seja, pinturas que criam a ilusão de serem em três dimensões.
Toda a gente já abriu a boca de espanto ao ver uma fotografia de um dos seus insetos gigantes, que parecem querer saltar das paredes, ou dos carros que nascem nas esquinas dos prédios e que parecem mesmo, mesmo verdadeiros.

O que poucos sabem é que para se ter a ilusão da tridimensionalidade não se pode olhar simplesmente e de qualquer maneira para as pinturas. Temos de nos colocar num ponto exato e fechar um dos olhos para criar o efeito ótico ou, o que é ideal, olhar através da câmara de um telemóvel ou de um tablet. Só assim se consegue desfrutar completamente da obra.
Por isso, mesmo quem acompanhe o trabalho de Odeith nas redes sociais vai surpreender-se ao visitar esta exposição, uma vez que poderá ver a obra distorcida e, depois, vê-la em 3D. O “efeito uau” é garantido.
Ver ao vivo, partilhar no Instagram
Há um cheiro forte a tinta fresca que nos invade quando entramos no local onde Odeith prepara a exposição. Ele tem uma mesa repleta de latas de spray e vai tirando uma e outra e dando retoques nas pinturas, distraidamente, enquanto conversa connosco. Até parece fácil.
Em “Obliquity”, Odeith dá-nos uma pequena amostra daquilo que é o seu trabalho: carros em esquinas, insetos assustadores, quadros, graffitis e letterings mais “old school”, e uma peça completamente nova: um fantástico carro de corrida. A exposição prolonga-se para fora dali: num dos pilares da Ponte Vasco da Gama, o artista pintou a palavra Lisboa, também em 3D.
Nos últimos anos, Odeith viajou pelo mundo todo e deixou a sua marca em paredes de Inglaterra, Dinamarca, Austrália, Indonésia, Escócia, México, Dubai, Estados Unidos e muitos outros países. Neste momento, Sérgio está mais caseiro. Mudou-se para o campo e quer ficar por aqui com a família, o cão e os amigos.
O que ele gosta mesmo é de, no fim de semana, ir “com pessoal amigo” para uma qualquer fábrica abandonada, “com um churrasco, galhofa, copos. E depois fazer uma peça, só por brincadeira”. Só pelo prazer de se desafiar, de ver até onde é que pode ir, transformando aquele espaço em algo completamente diferente.
Esse é o espírito original do graffiti e que é invocado nesta exposição. “Sentir, cheirar, ver ao vivo é completamente diferente”. E depois, sim, que toda a gente fotografe e partilhe no Instagram.
“O muro que nos reúne”
Odeith é o cabeça de cartaz mas há muito mais para ver no Muro – Festival de Arte Urbana de Lisboa que, na sua quarta edição, ocupa a freguesia do Parque das Nações durante todo o mês de julho.
É uma freguesia extensa e que tem zonas de urbanização muito recente e outras já mais degradadas. “Tem linhas de comboio e jardins, túneis, equipamentos públicos e bairros residenciais, toda a zona ribeirinha que foi recuperada, é de facto uma freguesia com muita diversidade e foi por isso que escolhemos como lema ‘o muro que nos (re)úne’, porque nós tentamos criar ligações entre estes espaços todos”, explica o diretor do festival, Hugo Cardoso, da GAU – Galeria de Arte Urbana.

Como sempre, a proposta é para que as pessoas peguem no mapa e se deixem levar por caminhos que habitualmente não percorrem, longe das multidões e das esplanadas. “Da Ponte Vasco da Gama ao Casal dos Machados é uma caminhada grande mas é isso que queremos, pôr as pessoas a andar e a descobrir recantos que não conhecem nesta freguesia”, diz Hugo Cardoso.
Neste “Muro” participam mais de 30 artistas, nacionais e estrangeiros, com técnicas e estilos muitos diversos, espalhados por quatro núcleos:
– o núcleo da Multiculturalidade, no Casal dos Machados, interliga os conceitos de comunidade, nações, culturas e igualdade através de intervenções em empenas dos edifícios pelo Colectivo Rua, D*Face, IAmEelco, Los Pepes, Nark, Pedro Podre e Stom500.
– o núcleo da Sustentabilidade, na avenida de Pádua, centrado na temática do ambiente, com trabalhos de Bordallo II, o Grupo Visegrado – Mikołaj Rejs (Polónia), Fat Heat (Hungria), Tomáš Junker aka Pauser (República Checa) e Dupla RCLS (Eslováquia) – Jacqueline de Montaigne, Krus e Thiago Mazza.

– o núcleo da Cultura Urbana, no Parque Tejo, com intervenções de graffiti nos pilares e muro da Ponte Vasco da Gama, assim como no campo de basquete e no skate park. Para além do Odeith, conta com intervenções da writer columbiana Zurik e dos artistas Nuno Viegas, Trafic e coletivo Thunders.
– na Gare do Oriente, ponto central do festival, é possível visitar as exposições “Obliquity”, de Odeith, e “Karma” de Crack Kids e The Plastic Hike, assim como as instalações “Around”, de Fahr021.3 e “Before I Die”, de Rita Cabaço.
As exposições estão abertas de 3 a 31 de julho, das 10.00 às 21.00. A entrada é livre. Os murais – alguns dos quais só estarão completos nas próximas semanas – podem ser visitados em qualquer altura e vão permanecer muito para além do festival. Mas para quem quiser também há um programa de visitas guiadas, gratuitas, mediante reserva. Mais informações no site festivalmuro.pt ou através do email gau@cm-lisboa.pt.
*Maria João Caetano é jornalista. Mora em Lisboa há quase trinta anos mas, como Elis, sonha com uma casa no campo, preferencialmente no Alentejo, onde nasceu em 1974. Também há quem a conheça como “A Gata Christie”.