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Após uma ausência de cerca de um ano, imposta pela infame pandemia forçada, voltei do estrangeiro para a nossa querida Lisboa. Acordei nem cedo, nem tarde, já em minha casa e equipei-me a rigor. Estava prestes a fazer uma das coisas que mais me dá prazer na vida, caminhar e pensar. É como se fosse uma hemodiálise, mas em vez de limpar o sangue através dos rins, limpo o espírito através de outro orgão que fica mais acima entre os ombros, assente no pescoço e dentro de uma caixa que por vezes é bem dura.
Los Angeles. Poderia ser o nome exótico dado ao meu bairro, um nome que claramente despertaria o interesse de qualquer ávido leitor de revistas de viagens, mas não é o caso, o nome do meu bairro é simplesmente “Anjos”, mas desengane-se aquele que acha que por detrás deste nome simplório não existe uma dose grande de exotismo, perseguições de automóvel, sirenes, noites loucas e gente vestida de forma menos convencional, tal como o nome da badalada cidade californiana poderia sugerir.
Saio de casa e passo pelo mini mercado do meu amigo Kassim para cumprimentá-lo e comprar uma cerveja gelada. Pergunto como estão os meninos dele e fico a saber que já tem mais um, faço contas ao tempo que estive fora e não bate nada certo, mas a sua alegria é contagiante e a bebé parece muito bonita através daquele ecrã de aparato móvel, ao colo da mãe que ainda está no longínquo Bangladesh. Retribuo com o meu mais genuíno sorriso, ainda que tapado por uma máscara com cores de bloco operatório, mas afinal de contas os olhos também sorriem e isso é o que importa.
Vou divagando pelo bairro, vou às minhas livrarias locais e fico feliz de ver que está tudo em plena operação mesmo depois de sacudidas pela pandemia. Encontro até um velho livro do meu querido Nikos Kazantzakis em português, coisa rara nos dias que correm.
Seguindo caminho vejo novas barbearias abertas, vejo novas galerias de arte e bares onde antes jaziam stands de automóveis mumificados pelo tempo; vejo que algumas pastelarias e cafés mudaram, mas muitas outras permanecem iguais. Fico triste por ver que a papelaria onde os meus avós iam comprar o jornal, tinha fechado, eu, inclusive, só comprava os livros de colorir e prendas para os meus sobrinhos pequenos naquele cantinho clássico, fielmente guardado por um velhote que eu julgava ser eterno.
Fiquei inquieto ao ver aquele cenário, mas rapidamente passei pela porta do restaurante favorito do meu avô, “O Raposo”, e um velho conhecido disse-me que o senhor só se tinha reformado. As aparências deixaram-me imaginar que a covid tinha apanhado o velhote, mas afinal deveria saber que os velhotes eternos nunca se vão.
Entrei na Almirante Reis e desci rua fora, saindo, por conseguinte, do meu bairro. Vi alterações na estrada, nos passeios, nas fachadas dos prédios, lojas que abriram e lojas que fecharam. Passei o dia às voltas até decidir voltar para o meu bairro e, eventualmente, para casa.
Subi pelo caminho contrário ao que tinha tomado quando saí, queria culminar aquele dia bem passado a beber uma imperial, ou talvez até um jarrinho de tinto, pois teria a companhia da minha mulher e de um ou outro amigo, na minha tasca de eleição.
Corto bruscamente à esquerda na Almirante Reis e entro na Rua dos Anjos, bairro adentro como se quisesse despistar alguém. Vou com uma passada determinada em acabar com a secura que tinha na garganta, deviam ser umas sete e meia da tarde. Fora as outras, esta é uma das horas em que a imperial sabe melhor e o meu cérebro agora limpo e cheio de ideias, dava alertas e discursos motivacionais para que o meu corpo o levasse ao Sol Rio, a minha tasca local.
Tinha saudades de muita coisa e não sabia por onde começar. Talvez pedisse uma sopinha enquanto esperava por companhia ou talvez um prego cortado ali na hora, o meu objectivo era atrasar ao máximo a minha voraz fome de iscas à portuguesa, talvez pedisse uma saladinha de orelha, enfim, com engenho talvez conseguisse picar um pouco de tudo.
Já quase no final ou no início da Rua dos Anjos, olhava para o meu horizonte e esperava ver aquele belo paradoxo de indivíduos engravatados e cheios de complexidade à porta da Ordem dos Advogados, paredes meias com pessoas alegremente ébrias e cheias de soluções para os problemas do mundo à porta da tasca Sol Rio; não conseguia ver nada disso e o meu coração (aquele órgão que fica entre o estômago e o cérebro) começava a apertar. Chegado ao local vejo as portadas verdes de ferro fechadas e com um aspeto impenetrável. Pintado a spray podia ler-se a frase “Sol Rio Saudade Eterna”.
Pois é! A minha tasca tinha fechado e uma comoção nostálgica e áspera invadiu os meus sentidos. Consegui ganhar coragem e espreitei lá para dentro, estava tudo arrancado do chão, uma arena vazia onde tantas batalhas se travaram. Eu tinha um problema pessoal com o que estava a acontecer diante dos meus olhos, mas havia um problema mais conceptual que dali advinha. Uma tasca velha quando fecha não pode ser substituída por outra tasca nova. Pode até haver intenção de tal coisa, mas, quanto muito, o novo estabelecimento é aspirante a tasca, não adquire o título só pelo simples facto de estar aberto.
É preciso tempo; é preciso que as garrafas lá da última prateleira ganhem aquela patina de pó e gordura; é preciso que os copos deslizem tantas vezes sobre o balcão de vidro das sobremesas que seja impossível distinguir o leite creme da pera bêbeda; é preciso que se batam tantos bifes na tábua de corte que esta fique abaulada como uma tijela; é preciso tempo para o cheiro da banha e do bagaço se encrustarem nas paredes e no balcão de inox; é preciso encontrar fornecedores de bolinhas de naftalina potentes como as de antigamente, daquelas que queimam os cílios nos narizes dos clientes. E isto são apenas características que precisam de tempo, há também aquelas que já muito dificilmente se repetirão.
Era preciso voltar atrás no tempo para que os fumadores fossem à casa de banho e tatuassem o autoclismo com as beatas esquecidas dos seus cigarros; era preciso talvez ir a um timeshare abandonado em Quarteira para resgatar aquela televisão pequena e cinzenta da Sanyo apenas com quatro canais e amarrada com cintas pretas a uma placa perto do tecto.
Depois vem o tópico da clientela, existem várias personagens que se espantam com os novos estabelecimentos como os vampiros com as estacas de prata. Assim de repente chegam à minha memória habitués como o senhor cego, sempre vestido de fato com a sua bengala. Era muito parecido com o Ray Charles, mas tinha um sorriso ainda mais contagiante, talvez por causa do delicioso bitoque que lhe serviam. Lembro-me também do senhor Capelão, um simpático indivíduo das beiras que apenas se permitia consumir vinho fora de casa (escusado será dizer que passava os serões na tasca). O próprio Gimenez, um grande amigo meu que tem cara de galã de cinema, chegou a primeira vez ao Sol Rio com um ar desconfiado mas com o tempo acabou por ter uma garrafa de amêndoa amarga com o seu nome na prateleira. As suas vestimentas corporativas com camisas perfeitamente engomadas, podiam fazer dele um foco, mas no Sol Rio ninguém olhava de lado para ninguém.
A ideia custou a entrar mas finalmente a mentalização imperou. Vou ter de ir à procura de uma nova “minha tasca”, vou cabisbaixo mas esperançoso pois, felizmente, não vivo em Los Angeles mas sim nos Anjos, e seguramente encontrarei outro sítio mítico como o Sol Rio.
Um lisboeta sem tasca pode ser chamado de qualquer coisa, até de californiano, resta-me a crença de que as tascas sejam mesmo eternas como o senhor da papelaria da esquina.
*João Santos Pereira vive entre o Mediterrâneo e a sua querida Lisboa. Fingiu estudar em vários sítios, de onde até um Mestrado em Gestão Desportiva surgiu, mas sempre aprendeu mais com as pessoas do que com o ensino estabelecido. Viaja pelo mundo, a pé sempre que pode, o mesmo aplica na cidade das sete colinas. Gosta de beber vinho tinto e de jogar à bola, acompanhado por gentes de falas várias, sempre que possível. Dedica posteriormente o seu tempo a escrever as aventuras que daí advêm.