Quem passear pelo Bairro de Alvalade, principalmente pela Avenida de Roma e andar com a cabeça no ar, não a ver as nuvens, mas a observar os prédios, vai reparar “num estranho tipo de esculturas”, como dizia o arquitecto Keil do Amaral. 

Estas figuras estão colocadas em espaços reduzidos no cimo das entradas de alguns prédios de Lisboa. Tiveram o epíteto de “Entaladas”, atribuído por aquele arquiteto lisboeta, responsável pela Alameda Central do Parque Eduardo VII, entre outros, nos anos 40. Surgiram nos anos 1950, um pouco por toda a cidade, nas Avenidas Novas, na Sidónio Pais e António Augusto de Aguiar, mas com maior incidência no Bairro de Alvalade, em prédios residenciais.

Chamam-se assim porque estão entre as portas da rua e as varandas do primeiro andar. Aquilino Machado, investigador do Centro de Estudos Geográficos – IGOT/UL, olissipógrafo por vocação e amor, principalmente ligado ao Bairro de Alvalade e à sua história, enquadra o aparecimento das “entaladas” no Plano de Urbanização de Alvalade, gizado pelo arquiteto Faria da Costa. Este plano visava uma expansão da cidade devido à necessidade de habitação de renda económica.

O centro histórico de então, nomeadamente o Socorro, atual Martim Moniz, fora demolido, o que criou a necessidade de realojar as pessoas que aí moravam. Além disso, Aquilino Machado refere o “êxodo de pessoas oriundas do interior” para a capital, em busca de trabalho.

Segundo o investigador, “havia um conjunto de pré-existências, de quintas que alimentavam Lisboa” na zona onde é agora o Bairro de Alvalade e também algumas áreas de recreio como no Campo Grande, poiso de férias da Nobreza de outrora.  Quem vivia na Travessa Henrique Cardoso, apelidada de “rua das Pulgas”, eram os operários que trabalhavam nas fábricas da zona – à época havia uma fábrica de cerveja muito importante – e a proximidade da linha de comboio favorecia o transporte de mercadorias.

Estas “pré-existências” acabam por ser integradas por Faria da Costa no seu novo plano de urbanização. “Os primeiros esboços de Faria da Costa foram estruturados pela importância dos eixos, a Av. De Roma e a (futura) Av. dos EUA que ligam as áreas industriais mais importantes: Fábrica do Braço de Prata a Alcântara”, explica.

O Plano de Faria da Costa e o conceito de “Unidade de Vizinhança”

Faria da Costa desenhou o plano de urbanização em 8 células específicas: em todas, “o coração” era uma Escola. A distância entre a escola e as células era não mais do que 500 metros. Lisboa estava longe de ser a cidade cheia de carros que é hoje. As “células” que receberam os beirões, alentejanos e lisboetas que haviam sido desalojados foram as do Bairro das Caixas e da zona onde fica o Palácio dos Coruchéus.

Rendas económicas, pois claro. Para operários e funcionários públicos. Nestas “células” não havia qualquer função comercial. Nada de lojas, Daí, Faria da Costa projetar a “célula 3” com função comercial – onde é hoje a Av. da Igreja. Uma frondosa e movimentada avenida cheia de comércio.

“O plano de Urbanização tem vida, cresce e amadurece com os congressos de arquitectos dos anos 50”, refere Aquilino Machado. Principalmente o VIII Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1951. Nesse congresso, o arquiteto catalão Josep Lluis Sert fala da ideia de integrar as artes na arquitetura. Mais tarde, em 1953, no congresso da União Internacional de Arquitetos que acontece em Lisboa, dá-se o impulso decisivo para esta integração.

Do Congresso surge uma petição assinada por um conjunto de artistas e arquitetos que, “considerando a Arte o expoente máximo da cultura de um povo, reivindicavam que nos projetos de arquitectura mandados executar pela Câmara (…) seja sempre incluída qualquer forma de “decoração plástica”, à semelhança do que acontecia já noutros países”

Sai um despacho um ano depois, em Março de 1954, na sequência desta petição que incita o Estado e os investidores privados a avançar com as ideias de integrar as artes na arquitetura.

Surge o conceito de “Unidade de Vizinhança” há muito definido noutras áreas e que preconiza que “a ideia de obra de arte total como qualidade deve partir da arquitetura. O conceito não se deve entender como uma mera reunião de atos artísticos (como acontece numa exposição), tampouco como um conceito próximo da decoração, que força a união das diferentes artes. Supõe antes o êxito de um efeito exteriormente percetível que, de modo a produzir-se, requere necessariamente uma especifica relação entre as artes“, como explicavam João Pedro Francisco e Paula André no artigo “Arte Pública na Unidade de Vizinhança: o caso do Bairro de Alvalade”.

Da ideia de unidade de vizinhança à arte aleatória

O Bairro de Alvalade estava em expansão e era o local ideal para os empreiteiros e arquitetos avançarem com a ideia destes apontamentos escultóricos: relevos e “entaladas”. Alguns destes elementos não têm uma ideia pensada de raiz. São figuras introduzidas meio “ad hoc”, uma forma de ter uma “peça de arte” que valoriza o prédio, mas não necessariamente integradas na ideia do prédio.

O arquitecto Keil do Amaral era um dos maiores críticos destas figuras. O que o incomodava mais era o facto de as figuras estarem, precisamente, entaladas nos espaços que encimavam as portas e o primeiro andar e de não estarem integradas na obra de uma forma harmoniosa e pensada de raiz. Aquilino Machado lembrou o que escreveu, ironicamente, Keil do Amaral, no seu livro “Lisboa, uma Cidade em transformação”:

“Unam-se por favor. Congreguem-se, redijam uns estatutos, submetam-nos à sanção indispensável dos poderes públicos e entrem em ação. É preciso agir. Fazer qualquer coisa. Porque as pobrezinhas sofrem… e a cidade vai por mau caminho… (…) De modo que vou sugerir-lhes um nome para a colectvidade filantrópica que devereis formar: Liga dos Amigos de Lisboa e das Mulheres… não, não soa bem… Associação Protectora de Lisboa e das Mulheres Entaladas. É melhor mas ainda padece duma certa imprecisão com o seu quê de chocante. Ah! Achei! Associação Protectora de Lisboa e das Mulheres Entaladas entre as Portas e as Sacadas”

O porquê da criação destas Figuras Escultóricas

Na Av. de Roma foram então construídos prédios de “renda Livre”. Os lotes foram vendidos pela Câmara Municipal de Lisboa a privados e, com a venda, a Câmara garantia financiamento para construção de prédios de “renda social para onde iriam viver funcionários públicos de baixa condição económica”.

Quem comprava os lotes, principalmente na Av.de Roma, eram empreiteiros que construíam prédios para vender e arrendar a famílias com maior poder económico. O propósito era, pois, a valorização da fachada principal e conferir um certo estatuto a esses edifícios. Investimento que era valorizado com estas figuras e permitiam mais rendimento, consequentemente, possibilidade de os empreiteiros construírem mais prédios. Em alguns prédios, no plano de arquitetura já estava prevista uma intervenção, no entanto, não se sabia bem o que seria.

A importância da entrada

Inês Andrade Marques, professora e Investigadora da Universidade Lusófona, estudou a temática das “Entaladas” também destaca os CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna como importante lugar de debate sobre a integração das artes na arquitectura. A investigadora salienta, no entanto, que o debate sobre a “integração” ou a “síntese das artes” estava na ordem do dia, após a 2ª Guerra Mundial em muitas outras instituições ou associações, como a UNESCO, a AICA – Associação Internacional dos Críticos de Arte, o Groupe Espace – uma associação de artistas franceses – e era objeto de monografias e números temáticos de revistas da especialidade. Era o espírito do tempo.

Em Lisboa, surpreendentemente, a UIA – União Internacional dos Arquitetos, realiza o seu congresso em 1953 e no rescaldo daquele congresso, a referida petição de artistas junto do presidente da CML traria consequências efetivas na encomenda de obras de arte pública nos anos seguintes.

A investigadora refere que “o despacho de 1954, que instaura a obrigatoriedade de inclusão de obras de arte em edifícios de promoção municipal se reflete especificamente na criação dos grandes painéis de azulejos da avenida Infante Santo e na encomenda de obras de arte para edifícios escolares e outros equipamentos das décadas de 1950 e 1960, mas cria um clima propício para a encomenda destes relevos de menor dimensão nos edifícios residenciais.

Inês Andrade Marques, que dedica grande parte do seu trabalho ao estudo sobre a arte pública, explica que nos prédios construídos paralelamente a vias importantes, como é o caso dos prédios da Av. de Roma, há necessariamente uma ênfase na fachada principal e grande importância é dada ao espaço da entrada. Os entalados ficam, precisamente, nesses espaços, causando impacto visual. Estabelece-se uma espécie de hierarquia no espaço do edifício, em que a fachada principal é o mais importante e os relevos estão colocados de modo a ter a máxima visibilidade para quem passa na rua.

Já na construção de edifícios que não se alinhem paralelamente à via, mas que se implantam perpendicularmente a esta, como acontece na Av. dos EUA, por exemplo, já não há uma fachada principal única. Todas as fachadas dos edifícios são importantes e a marcação da entrada principal não é tão evidente.

Em alguns dos edifícios desta avenida podem ver-se painéis de mosaicos fora das entradas, nas fachadas de topo, independentemente da importância da rua. Ou seja, quer nas fachadas que se alinham com a avenida, quer nas fachadas que se alinham com a rua secundária, atrás. “É um outro entendimento do espaço que acompanha esta opção na implantação da obra de arte”, diz Inês Andrade Marques. “E é também uma outra linguagem artística, uma outra proposta estética”.

Ambos os investigadores referem que os escultores de renome não valorizavam este tipo de relevos ou esculturas por ser uma encomenda para prédios de rendimento e não uma obra com visibilidade. José Farinha e Soares Branco eram os escultores mais talhados para este tipo de trabalho cuja temática gira muito à volta da mulher /mãe, mulher/esposa, elementos do imaginário mitológico e temáticas relacionadas com o trabalho. No entanto, alguns destes relevos escultóricos têm figuras femininas nuas o que até pode causar estranheza dada a moralidade conservadora propagada pelo regime.

Efetivamente, nos relevos para estes edifícios privados, em que a encomenda geralmente se fazia diretamente ao escultor pelo construtor, como refere Inês Andrade Marques, não havia censura oficial antes de aparecerem no espaço público. Nos edifícios públicos, a história era outra. Nem sempre a nudez passava pela censura da polícia da moral e dos bons costumes e os artistas eram muito vigiados no processo de execução das suas obras.

Quanto à arte verdadeiramente integrada e não como ornamento, a investigadora fala-nos da artista Maria Keil, (mulher do arquiteto Keil do Amaral) que criou os revestimentos azulejares para as várias estações de Metro inauguradas na década de 1950. Aquilino Machado destaca a os painéis de Cecília de Sousa na Av. Dos Estados Unidos ou Menez no histórico Café Vá-Vá na integração da Arte na arquitetura.

Temáticas das Entaladas

Nem só de mulheres são feitas as entaladas. Há figuras masculinas. No número 82 da Avenida de Roma, um operário com uma simbologia muito própria, que Aquilino Machado “encaixa naquelas que celebravam o esforço e a rectidão na plana construtiva da nova cidade: lá se encontram, o fio de prumo e o esquadro, como objetos primordiais desse desígnio.”

Um “Entalado” do escultor Soares Branco em edifício da Av. de Roma, n.º 80. Fotografia de Teresa Rouxinol

Há um outro relevo de trabalhadores da construção: alguns operários como se vê do lado esquerdo da imagem e outros mais “intelectualizados”, quem sabe o arquiteto e o escultor…

Baixo relevo na Avenida de Roma, nº 74. Fotografia de Teresa Rouxinol

E o futuro da Arte Integrada?

Para Inês Andrade Marques, “… a visão integrada da arte está um bocadinho em risco. Assistimos a um predomínio da arte urbana (…) que é, de alguma forma, o oposto da arte integrada. A arte urbana acontece geralmente sobre suportes arquitetónicos preexistentes, em zonas urbanas há muito consolidadas. Pinta-se um edifício que já existia, ou vários, e muda-se radicalmente a paisagem urbana num curto espaço de tempo. As intenções são boas, mas não só não pode haver uma criação arquitetónica e artística conjunta de raiz, como não há tempo para um envolvimento efetivo da população nesse processo de criação, que seria o grande desafio dos nossos tempos”.

Os festivais de arte urbana, que estão muito em voga, seguem muito mais a lógica de curadoria de uma exposição. Os artistas são convidados pela sua obra, que se mantém muito semelhante e se quer imediatamente reconhecível.  “O que é feito cá pelo artista X é feito no Japão, no México ou em qualquer outro lado do mundo. Um dos objetivos destes festivais é as pessoas reconhecerem esse trabalho e ficarem contentes por terem uma obra do artista X na sua cidade”.

Trata-se, portanto, mais de uma questão de visibilidade do artista, do que qualquer ideia de integração das artes, ou até de integração “site specific” – uma intervenção feita especificamente para o lugar. Este tipo de obras “é feita para mostrar nas redes sociais a obra de determinado artista e, de preferência, com grande impacto na cidade”, mas sem tempo para pensar, para estar em conjunto e de forma interdisciplinar e criar conjuntamente.

No entanto, para a investigadora, embora não seja uma preocupação dominante, há um interesse crescente nos processos colaborativos de criação de arte pública envolvendo as pessoas a quem esta se destina. A Faculdade de Belas Artes de Lisboa teve historicamente um papel importante na integração das artes porque foi durante décadas o ponto de encontro de arquitetos, pintores e escultores que ali estudavam em conjunto. As afinidades entre eles geravam redes de contactos que se mantinham pela vida fora e que depois se refletiam em muitas obras de arte integrada na arquitetura na cidade.

Hoje tem um papel importante também, ao preparar os alunos de Escultura para um envolvimento das populações em processos de co-criação das obras de arte pública, e a investigadora destaca o trabalho desenvolvido pelo professor Sérgio Vicente.

Quem sabe se os seus alunos darão continuidade à ideia: “Um Pintor, Um Escultor, Um Arquitecto” e tornarão as nossas cidades mais habitáveis e também mais belas. Ou, quem sabe, incentivar os alunos a experimentar processos de co-criação de obras de arte pública, de modo a que estas façam sentido para as pessoas a quem se destinam.


  • Teresa Rouxinol é alentejana de Évora por nascimento e Lisboeta por adoção e coração. Desde os 18 anos em Lisboa já conta com mais anos nesta cidade luz do que na cidade natal. É apaixonada pela área da comunicação e pelas artes e espetáculos, mas já fez de tudo um pouco. Nos tempos livres faz “rádio pirata” e adora conversar. 

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10 Comentários

  1. Conheço bem a Teresa, alma alentejana de coração lisboeta, fizemos juntos teatro amador misturado com tertúlias e muito favaios. Sempre ávida de mais e melhor, conversa fácil e apaixonada pela vida, por esta cidade, pelas artes e pelas pessoas que tinham histórias para contar. Hoje é ela que nós conta histórias.

  2. Muito grata pela historia que li agora sobre a arquitetura do bairro onde praticamente nasci.Fomos viver para Alvalade em 50 fui fazer 1 ano de idade.E até casar sempre ai vivi.Agora que os Pais faleceram aida tenho a casa.Gosto mesmo muito desses bairros.

  3. Teresa, muito obrigada! Que interessante! E muito completo, bela reportagem. Obrigada.

  4. Aqui vivo há décadas (“descontado” o período dos anos 70 do século passado, quando vivi em Lund / Suécia , em cuja universidade estudei – a nível de “pós-graduação” – e , depois lecionei – direito internacional privado – para jovens advogados suecos …o que, para um “latino” não era muito usual)…

  5. O conceito de vizinhança nos velho bairro de Alvalade não abarca somente a proximidade das casas dos seus moradores a infra-estruturas sociais como escolas, hospitais, igrejas. O conceito de vizinhança neste bairro assentava e assenta principalmente na génese dos seus logradouros comunitários constituídos pelas hortas dos moradores e uma área verde comum de lazer onde se criavam teias de cumplicidade assentes no trabalho de horticultura, partilha de saberes e coscuvilhice e onde as crianças brincavam felizes. Área verde agora a ser destruída para parques EMEL à custa deste património único de arquitectura, ambiental social e económico. Há já há um ano que este crime ambiental sobre esta grande área verde de Lisboa (são dezenas de logradouros que podem render à CML/JFA milhões de euros em estacionamento e IMI) aguarda por uma solução que até ao momento nunca ouviu os cidadãos afectados que lutam para salvar os logradouros verdes e comunitários de Alvalade.

    PS – após inscrição, continuo a aguardar o aguardo link para participar na reunião on-line sobre este tema a acontecer amanhã às 18h30 após candidatura à cerca de uma semana

  6. Regina, o link será enviado hoje. Obrigada pela sua sempre atenta participação.

  7. Já conhecia um pouco a história da ‘entaladas’, mas este artigo vai muito mais além. Muito bom, saber mais sobre como surgiram, a relação com a construção do bairro de Alvalade e a abordagem à arte pública atual, a sua relação com a arquitectura e a importância da cocriaçao com quem habita os lugares. Também tive a oportunidade de conhecer o trabalho do professor Sérgio Vicente, um exemplo fantástico de como se pode envolver artistas e moradores no processo de criação. Obrigada e parabéns pelo artigo!

  8. Muito interessante este artigo sobre a origem das “entaladas” que, quer se concorde ou não, dão um ar de graça ao prédios e servem para os individualizar, tendo sempre em conta que “o óptimo é inimigo do bom”.

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