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Dó a Dó, lá vai afinando o som do Chiado. No violoncelo de Júlio Luz da Silva, cabem todas as notas. As que foram feitas para as mais conceituadas orquestras do Brasil, onde trabalhou, e todas as outras que a plateia das ruas de Lisboa vai pedindo. Mas, aos 26 anos, a pandemia obriga-o a travar a fundo no sonho de ser artista na Europa, para o qual a cidade era a porta de entrada. Sem audiência nas ruas vazias, Júlio silenciou o Chiado. Sem moedas na mala do violoncelo, ficou mais perto de ter de abandonar Portugal.

Era janeiro e Lisboa, tal como o resto do país, preparava-se para confinar novamente, dentro de poucas horas. Quase nem damos por Júlio, se o ouvido nos falha. Vestido de preto, embora de ténis brancos, encostado a um edifício abandonado a meio da Rua Garrett, abraçado ao violoncelo, que estuda desde os 15 anos. A voluta e as cravelhas, o topo do instrumento, deitadas no ombro esquerdo, o tampo ao colo e o espigão a cravar o seu posto na calçada portuguesa. Uma pequena coluna serve de apoio ao instrumental. Várias vezes o encontramos por aqui, debaixo do olhar vigilante de Fernando Pessoa, em bronze. Se não, estará na Rua Augusta, no cimo da Rua do Carmo ou em casa, a estudar para o mestrado que o trouxe a Portugal.

Há pouco mais de um ano que o jovem brasileiro chegou de Novo Hamburgo. Uma cidade do estado de Rio Grande do Sul com o dobro da área de Lisboa, mas metade da população residente na capital portuguesa. Admite que este país plantado à beira-mar não estava nos planos. Muito menos que o primeiro destino português fosse a cidade de Évora. Foi para onde veio estudar em 2016, depois de ter recebido uma bolsa de mérito no curso superior de música para estudar em Portugal. Fazer aquilo que chama de “licenciatura sanduíche”.

A paixão ficou, moeu e Júlio voltou no final de 2019, desta vez para mestrado. Também com uma bolsa, que lhe cobre metade do valor das propinas designadas para um estudante estrangeiro (2500 euros anuais). Mas escolheu residir a 130 quilómetros de distância, em Lisboa, cidade que o fascina.

No Brasil, deixou uma carreira como maestro de orquestras. “Eu tinha uma situação financeira melhor e um reconhecimento como músico muito maior do que eu tenho aqui. No Brasil, em termos de música, fiz um concurso assim que eu terminei a minha graduação, em 2017/2018, para poder entrar no emprego de uma rede de orquestras que tem no Estado de Goiás. Era maestro da Orquestra Jovem de Caldas Novas e, além disso, professor de violoncelo na Orquestra de Itumbiara. Isso me deu um certo prestígio, dentro dos músicos, porque era um emprego muito bom. Estava num bom círculo de músicos, estava estável.” Mas a estabilidade não assentava a quem detinha sonhos maiores do que o Brasil.

Do clássico Vivaldi a compositores que enchem as recentes tabelas da Billboard norte-americana. Nas ruas da cidade, as expectativas da plateia não são as mesmas dos homens e mulheres vestidos de gala que visitavam as suas orquestras. “Eu toco desde música erudita até música mais pop.” Até temas portugueses. O que a audiência ditar. “Depende muito do que se passa na rua.” Júlio levanta levemente os olhos do seu violoncelo, entre pausas. Observador nato, espreita em redor as idades de quem circula pela rua, para decidir o próximo arranque. “Se são mais jovens toco um repertório mais pop e eu vejo que agrada a eles. Eu também toco um pouco de música erudita, porque tem pessoas que gostam muito, principalmente as pessoas mais velhas. É uma música que toca mais, é mais sensível. Óbvio que estou aqui para ganhar dinheiro, mas eu também preciso de ter um sentido.”

Foto: Catarina Reis

Fazer das notas musicais que toca notas que caem na mala do violoncelo passou a ser assunto mais sério nos últimos meses. Durante dois anos, Júlio economizou com Portugal no horizonte, para poder autossustentar-se, mas estava consciente de que este dinheiro não duraria para sempre no bolso. Por isso, alargou as ambições, o tempo, o sacrifício e, assim, as algibeiras. “Eu estava a fazer casamentos, eventos, concertos com orquestra.” Mas, tal como aconteceu com todos os que se dedicavam a estas áreas, assim que a pandemia obrigou o país a confinar, em março do ano passado, a festa parou e o dinheiro deixou de chocalhar.

“Hoje basicamente eu vivo daquilo que eu faço tocando na rua.” E não há nada tão incerto do que as liberdades e disposição dos anónimos que passam por nós. A cada passada, uma esperança, uma indiferença ou uma surpresa.

Como este homem, que a meio da nossa entrevista, corre do lado de lá da estrada para junto de Júlio, de telemóvel no ouvido. Sabemos que tem alguém do outro lado da linha. “Rapaz, este menino tem um dom”, anuncia e sorri de entusiasmo. Deixa que o amigo escute Júlio e, de repente, puxa pelas cordas vocais e dá letra à sinfonia que ecoa do namoro entre a vareta que banhou de breu, resina vegetal sólida, e as cordas do instrumento. “Aleluia”, canta-se.

No Natal de 2019, levou 260 euros para casa depois de uma exibição de três horas. “Num dia normal na pandemia, dá para tirar em torno de 70 a 100 euros.”

JÚLIO DA LUZ SILVA

Apesar da incerteza que é trabalhar na rua, o jovem brasileiro já conhece o calendário: o dinheiro que leva para casa depende da altura do mês – o início, depois de pagos os salários – e até do ano – com a chegada de mais turistas, de olhar curioso sobre tudo, dispostos a admirar e a pagar por isso. No Natal de 2019, levou 260 euros para casa depois de uma exibição de três horas. “Num dia normal na pandemia, dá para tirar em torno de 70 a 100 euros.” Mas há dias quase proibidos. “Tem dias em que eu evito um pouco tocar, como uma quarta-feira. Às vezes até terça-feira, porque são dias um pouco fracos.” E, nestes, dedica-se exclusivamente aos estudos, que são também ensaios para o próximo dia na rua, onde chega a estar dez horas, quer faça calor ou frio.

Júlio aperta bem o casaco. Desde que as suas aulas de mestrado decorrem online e a liberdade de estudo é outra, o frio não tem sido impeditivo para cá estar. Os rendimentos estão a esgotar e as despesas não dão tréguas, por isso, todo o sacrifício é pouco.

Está a morar em Campo de Ourique, num apartamento que divide com a namorada e outros dois amigos. O casal paga 485 euros. Mas a companheira, também ela vinda do Brasil e estudante de Direito na Universidade de Lisboa, não consegue encontrar emprego e, ao contrário de Júlio, não tem bolsa que ajude a cobrir parte das propinas. “Então, eu pago os 485 euros, mais as contas, mais o mestrado. Tecnicamente, terei que pagar também o mestrado dela agora, mais ainda não se iniciou a inscrição” para o próximo semestre. Mas apenas as ruas de Lisboa davam ao casal o que precisava para responder a todas as despesas, com os espetáculos ao relento de Júlio. As mesmas ruas que, entretanto, ficaram vazias e deixaram de ser fonte de rendimento.

As dificuldades financeiras são cada vez mais notas graves numa pauta vazia e a ambição de viajar pela Europa de violoncelo nas costas vai perdendo o som. Júlio está agora mais perto de regressar ao país de onde partiu do que entrar pelo velho continente adentro. Portugal era a porta principal, o lugar onde esperava aprender e lançar-se para outras bandas europeias. “Tecnicamente, eu tenho que ter sempre 700 ou 800 euros por mês. Onde é que eu vou tirar isso, tendo que ficar em casa [confinado]? Não faço a mínima ideia”, lamentava. “Tenho de começar a vender as minhas coisas.” Ou aguentar com a ajuda temporária dos pais.

No dia seguinte à entrevista, o Chiado barulhento já não o era. Com o barulho, desapareceu também a música, sem ninguém para a envaidecer. Dado agora o primeiro sinal de desconfinamento, mais de um mês depois de ter abandonado as ruas, Júlio prepara o violoncelo para regressar. Quem sabe, ainda poderá estar a tempo de travar o regresso ao Brasil e cumprir o seu desiderato.

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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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6 Comentários

  1. Bom dia Catarina.
    Parabéns pela brilhante matéria. Ilustra muito bem as dificuldades de nossos jovens estudantes em buscar uma carreira internacional. Julio já se apresentou em nossa instituição e é muito dedicado e com certeza encontrará espaços em outros locais onde possa apresentar sua arte.

  2. Parabéns pela matéria emocionante, é lindo ver esta batalha para a sobrevivência da arte, que coragem deste menino.Parabéns Júlio.

  3. A jornalista esqueceu de perguntar ao pretenso músico o motivo pelo qual os tais “artistas” brasileiros, que nos incomodam e enchem os ouvidos com o ruído, designadamente na zona do Chiado, necessitam de se fazer acompanhar de potentos aparelhos de som. Ao que se sabe, numa orquestra não há aparelhos desses.

  4. É pena que a jornalista não deixa passar comentários discordantes relativamente a estes pretensos músicos, que, infelizmente para os residentes, precisam de altifalantes para se fazerem ourir,
    incomodando, quotidianamente, os residentes com o seu ruído. Convém lembrar que ruído NÃO é música. Por isso, uma orquestra não tem altifalantes. Nem o jornalismo objectivo e plural tem censura.

  5. Olá, Helga
    Obrigada por nos ler.
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  6. Helga, numa coisa estou de acordo consigo: por vezes o volume de som poderia ser mais baixo; mas estes ARTISTAS e não “artistas” como diz e não só brasileiros, precisam de ganhar a vida; já se imaginou no lugar de algum? é menos mau tentar ganhar a vida assim, mesmo pedir, do que roubar ou traficar. Um pouco mais de “humanidade” e/ou compreensão não faz mal a ninguém…
    A mim não me incomodam nada, muito pelo contrário; até lhes compro CD´s se os têm.
    Saberá que ARTISTAS de rua ou que a ela tiveram de recorrer são comuns por essa Europa fora há muitos anos? então depois da queda do “império soviético” nem imaginará (?).

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