A autora da crónica, Maria João Martins, à varanda, na Rua dos Fanqueiros. Foto: DR

É o que lê a menina no grande jornal de parede na Rua da Palma. Os dois “h”, reunidos numa só frase, parecem-lhe bem mais misteriosos do que o significado da palavra “golpe”. O tempo é a Primavera de 1975, Lisboa o lugar, e, pela mão segura da avó, ela vai ao mercado do Chão do Loureiro.

Na rua, como em casa, todos falam de política. O ar enche-se de palavras novas como “golpe” (de Estado, entenda-se), “capitalismo”, “socialismo”, “reação” ou “eleições” e as crianças apropriam-se delas sem pedir licença. 

  – És um fascista. – gritam ao companheiro de brincadeiras com quem se zangam durante dois minutos.

   – E tu? És pelos comunistas ou pelos socialistas?

   – Assim não brinco. Vou chamar o COPCON.

COPCON – Comando Operacional do Continente; MFA – Movimento das Forças Armadas; PREC – Processo Revolucionário em Curso. No recreio, os alunos da primeira classe dominam com maestria este jogo de siglas. Sabem perfeitamente quem é Mário Soares, Álvaro Cunhal, Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, Spínola e Costa Gomes e acrescentam “Grândola” ao repertório de cantigas de roda, enquanto batem com os pés na gravilha para imitar a introdução do tema que, emitido pela Rádio Renascença, fora uma das senhas da Revolução.

 – Avó, preciso de canetas de feltro novas.

– Ainda tens as outras, que recebeste no natal.

– Há cores que já estão secas e tenho um trabalho muito importante para fazer.

– O que é?

– Vamos fazer cartazes para as eleições. A nossa sala vai ter uma mesa de voto e somos nós que fazemos a decoração. 

– Que maravilha. E tu, que vais desenhar?

– Não sei, avó. E esse é um problema: nunca fiz desenhos para eleições.

Nem ela, nem quem quer que fosse no país inteiro, mas sempre gostara de desenhar. “Bruxas”, como chamava às criaturas que lhe saíam da mão, mas, na verdade, eram meninas de roupa e cabeleira exuberantes que adorava semear um pouco por toda a casa, desde as folhas brancas que lhe iam dando aos móveis de cozinha. Uma delas, montada sobre uma bicicleta e com uma viçosa flor a sair do alto da cabeça, tivera honras de ser publicada no suplemento infantil do Diário Popular, duas semanas antes da História lhes entrar pela vida adentro.

Mas para as eleições, não, não estava a ver. Não lhe parecia que tivesse havido “bruxas” no 25 de Abril.

Esta história começa quase um ano antes. A menina está sentada no chão da casa da avó, na Rua dos Fanqueiros, entre sonhos de futuro e mobílias miniatura, numa tarde de Primavera tímida. A mãe e a tia, vestidas à última moda, chegam das compras e comentam com ligeireza:

– Que coisa estranha, havia tanta polícia na rua.

A menina continua a brincar sem um sobressalto. Jamais teria fixado estas banais palavras se aquela tarde não tivesse sido a de 24 de Abril de 1974.

Algumas horas depois, tudo mudava:

– Fernando, acorde, há um golpe de Estado.

São umas seis horas da manhã e é a voz do padrinho a chamar o pai. A menina vira-se para o outro lado porque, afinal, é Abril, mas a manhã ainda está fria e pardacenta. Quando se decide a levantar, os adultos andam estremunhados na cozinha a remexer o botão da rádio. A avó faz café na chocolateira. Sem café não se consegue pensar, convicção que a neta acabará por herdar.

    “Aqui Posto de Comando das Forças Armadas. As Forças Armadas Portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem manter com a máxima calma… “

Espicaçada pela curiosidade, a menina corre para a varanda e vê os tanques a cortarem a rua e os militares à volta deles. Naquela manhã não passarão os eléctricos de que ela tanto gosta, tal como não haverá padeiro a rechear os sacos de pano pendurados nas portas de Lisboa. 

– Avó, tenho medo. Aqueles tanques de guerra lá em baixo na rua…?

– Não tenhas medo, filha. É festa.

E era, avó.

Sempre com o rádio ligado, que era a única fonte de informação disponível àquela hora, sentam-se para comer cozido à portuguesa, pormenor de que esta pequena testemunha dos acontecimentos se há de lembrar para o resto da vida.

Alguém fala no Chile e ela não percebe.

Alguém contrapõe: Isso não. Senão não usariam o Grândola.

E ela voltou a não perceber.

Depois, o sobressalto, inconfundível mesmo para uma criança, de uma rajada de tiros.

Não se sabe de onde vêm, quem o dispara, quem atingem. A avó levanta-se do sofá e vai fechar as portadas de madeira das janelas. Chegara a Lisboa no estertor da 1.ª República e, como tal, sabia lidar com esta brusca desordem das coisas. Saber-se-ia depois que esses tiros haviam sido disparados pela polícia política, a partir das janelas da sua sede na Rua António Maria Cardoso, e tinham feito as únicas vítimas mortais daquele dia.

Sentada na sala, a família espera, sem saber o que pensar.

A avó diz:

– Se as lojas continuarem fechadas, como faremos com duas crianças pequenas em casa?

 Ninguém responde. Se ela não tinha respostas, mais ninguém as teria.

E continuam à espera porque, afinal, não podem fazer outra coisa. 

O telejornal chega ao final da tarde, a preto e branco como tudo nesse tempo, com os locutores a lerem as notícias de cigarro nos dedos. O golpe – palavra nova – triunfara. Um general velho (ou que assim parecia a quem só tinha seis anos), com um monóculo engraçado, tomava o poder. Nas semanas que se seguiram, não houve uma só noite em que não aparecesse na televisão, imediatamente antes da trupe do “Vamos Dormir”, que mandava as crianças para a cama com uma canção. 

No dia seguinte, a menina acompanha o pai e o padrinho pelas ruas de Lisboa.

Bora lá ver a revolução!

E os cravos. E os soldados muito novos, com sorrisos de orelha a orelha, que, numa madrugada, tinham passado de recrutas à espera de marchar para a guerra no Ultramar a heróis da liberdade. No Limoeiro, a menina verá os presos de delito comum,  suspensos das grades, na esperança de que os tomassem por vítimas de repressão política e lhes abrissem as portas.

Em Outubro desse ano, quando finalmente chegou à escola, a arquitectura desta criança tornara-se silvestre. Com a morte súbita do avô, em Maio, aprendera o medo de perder a quem ama. Com o festivo verão de 1974, também descobrira, às cavalitas do pai, o poder de uma cidade em festa. Andara em manif’s. Gritara palavras de ordem que não compreendia, sabendo apenas que gostava das que rimavam. Assistira a uma explosão de liberdade e alegria. Agora, de xaile branco de lã com grandes borlas, ia aprender aquele código secreto que lhe permitiria decifrar o mundo que renascia todos os dias, nas páginas dos jornais.

Nota de autor:
Esta menina, que contava seis anos a 25 de Abril de 1974, é a jornalista, autora deste texto. Quis um acaso feliz que a família estivesse toda reunida em casa dos seus avós maternos na Rua dos Fanqueiros, o que, ainda hoje, considera um dos maiores privilégios da sua vida. Este texto vai dedicado ao pai, Fernando Lima Martins (1938-2023), que teve a imprudência de levar a filha a ver a Revolução.


Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *