No nº55 da rua das Taipas, onde ainda é possível ler-se “Vila Martel”, já se sente a mudança. Uma nova placa impõe-se, anunciando que ali, naquela antiga vila operária onde em tempos se montaram os primeiros ateliers conjuntos de Lisboa, reunindo artistas como Columbano Bordalo Pinheiro e Nikias Skapinakis, está prestes a nascer um novo hotel enquanto se amplia o Memmo Príncipe Real, na parte superior do logradouro onde se encontra a Vila Martel, com entrada no nº56 da rua das Taipas.

O projeto, pela empresa Ekmar – Hotelaria e Turismo e a cargo do atelier de arquitetura STC – Samuel Torres de Carvalho, foi licenciado em abril do ano passado. A obra consiste na anexação dos números 56J e 56 da Rua D. Pedro V com os números 51-53 e 55-57 da rua das Taipas, constituindo-se assim um só lote. Daí, partir-se-á para a ampliação do hotel Memmo, que passará a ter mais 23 quartos (22 dos quais serão construídos na Vila Martel), e para a construção de um “pequeno hotel de 2 estrelas” nos números 51-53.

É uma velha ideia que agora ganha forma: em 2016, anunciou-se um projeto de demolição desta vila para ali surgir um bloco de 14 pisos (oito dos quais enterrados e seis acima do solo), resultando na construção de mais 24 quartos e um parque de estacionamento robotizado com 186 lugares do hotel Memmo. Um hotel já de si polémico, por estar semi-encravado numa encosta e ter dois acessos sem ligação entre eles.

O projeto, que previa ainda a preservação de dois dos ateliers da Vila Martel (que seriam usados como espaços de restauração e serviços) e a criação de uma galeria envidraçada, a ligar a rua das Taipas à a rua D. Pedro V através de escadas e elevadores, foi chumbado, tendo em conta “a excessiva volumetria proposta para o novo corpo de unidades de alojamento e estacionamento do hotel”, afirmou Paula Silva, então diretora-geral do Património Cultural, exigindo-se assim a sua revisão.

Em 2022, quando a Mensagem visitou a Vila Martel pela primeira vez, ainda lá havia moradores, altura em que a CML afirmou que, desde 2016, não dera entrada nenhum processo referente à área da Vila Martel. A degradação e esquecimento do espaço eram já notórios. Mas, entretanto, o caso mudou de figura. Com o projeto aprovado, os moradores voltaram a receber cartas para abandonar as suas casas, tal como já acontecera em 2016, e deram-se início às obras, orçamentadas num total de 2 milhões 950 mil euros.

O objetivo é a “reabilitação da Vila Martel”, conjunto classificado como “bem de valor patrimonial relevante” no Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente (PUALZE). Ali, surgirão 22 quartos de hotel, criando-se ainda um núcleo de acessos à antiga Vila Martel. Para tal, as suas moradias serão demolidas, mantendo-se, no entanto, a fachada principal do conjunto.

A ideia, como se escreve na memória descritiva do projeto, é “reabilitar o conjunto da Vila Martel, mantendo a volumetria e leitura do invólucro externo, bem como a repetição de tipologias existente, respeitando o valor cultural e patrimonial daquele.”

À Mensagem, o Património Cultural – IP (um dos organismos que em 2023 substituiu a DGPC) explica que, em 2022, um projeto anterior para a Vila Martel obteve parecer favorável condicionado. Porém, a atual empreitada acabaria por ser aprovada pela DGPC nesse mesmo ano, uma vez que a Vila Martel não corresponde a um imóvel classificando, encontrando-se apenas na “Zona Especial de Proteção conjunta dos imóveis classificados da Avenida da Liberdade e área envolvente”.

Vila Martel… ou Montmartre em Lisboa

O Pátio Martel nasceu na encosta da Glória em 1883, nos terrenos traseiros da casa dos Condes de Castelo Branco, pelas mãos de Joaquim Trigueiros Martel, um dos fundadores do jornal O Século que, inspirado pelo Café Bas-Rhin, na boulevard St. Michel, em Paris, onde passara a sua juventude, ali decidiu criar uma vila de artistas. Durante anos, foi nessa vila que permaneceram os ateliers de artistas como Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa, Carlos Reis, Eduardo Viana, Francisco Franco, Jorge Colaço…

vila martel hotel
Foto: Frederico Raposo

Em 1900, o Pátio do Martel mudou de designação. Nessa altura, o proprietário do recinto, Simão Trigueiros Martel, ampliou a vila, chamando-lhe isso mesmo: “Vila Martel”.

E por ali foram passando mais e mais artistas, como Nikias Skapinakis, que não só retratou Almada Negreiros num dos ateliers, como pintou o quadro Quintais de Lisboa inspirado na Vila Martel. Também por lá se poderia encontrar o escultor Martins Correia, cujo atelier recebia visitas das mais célebres personalidades: Jaime Cortesão, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia.

Nos anos 1950, esta vila operária recebeu as primeiras reuniões da Junta Patriótica da Salvação Nacional (um organismo clandestino que reunia representantes das correntes oposicionistas): Nuno Rodrigues dos Santos, Mário Soares, Francisco Salgado Zenha o próprio Skapinakis (que chegou a ser perseguido e preso pelo regime) fizeram dela um lugar de intervenção política. Com o passar dos anos, os ateliers foram convertidos em habitações. Agora, o destino é outro…

Em 2016, Nikias Skapinakis escreveu sobre os seus últimos anos na Vila Martel:

Fiquei, portanto, a trabalhar sozinho. Durante quase sessenta anos passaram pelo atelier artistas e escritores, amigos e amigas, de quem, na maior parte dos casos, pintei retratos  individuais ou colectivos. Com o passar dos anos, o atelier deteriorou-se, sobretudo devido às enxurradas que desciam  do morro, ao qual estava encostado, e que se infiltravam por baixo das paredes que  enegreciam. Há pouco mais de um ano, fui-me embora. Para além das pessoas e do trabalho realizado, ficou-me, também, a memória de um local  tranquilo e aprazível.

(…)

Consta-me que o atelier vai ser substituído por um hotel. Bem, é o progresso. Mas desejaria que a ginjeira e a palmeira reconciliadas pudessem permanecer acauteladas no  projecto. De facto, gostaria que a palmeira crescesse e que os pássaros continuassem a  debicar as ginjas. Talvez os turistas acidentais apreciassem …

Leia tudo sobre a história desta aldeia de artistas, aqui:


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 28 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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1 Comment

  1. Bom dia amensagem,
    so ha um pequeno erro no texto, Skapinakis mudou-se pra ser SkaNIPakis no terceiro paragrafo.

    Obg pelo trabalho 🙂 !

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