Lourenço Pereira Coutinho é historiador, investigador do CHAM NOVA FCSH, autor de várias obras, entre a História e a ficção, e tem um podcast no Expresso. Nesta conversa, fala sobre a história menos óbvia de Lisboa e o seu porto, e como esta confluência definiu o que é a cidade e como ela evoluiu.


Leia aqui a conversa completa:

Lisboa é uma cidade definida por um porto. O Tejo e as suas condições de navegabilidade e segurança oferecidas por um estuário grande e generoso, favoreceram desde sempre a presença humana aqui na área de Lisboa. Lisboa é uma cidade porto. Em que medida? Como e que esse Porto a define? 
O porto é essencial para definir a cidade e até a sua evolução histórica, porque acaba por ser uma zona de confluência entre o rio e o mar. O estuário do maior rio da península e uma porta de entrada no Atlântico. A primeira porta de entrada de quem vem do Sul, não é? Também não havia quem se aventurasse mais para norte nesta altura… E Lisboa é essencialmente definida pelo seu porto e pela sua relação com o mar e com a sua frente ribeirinha. Não recuando milénios, mas recuando séculos, ao tempo árabe, Lisboa já era uma cidade de média dimensão nessa fase, que é um tempo a que damos pouca relevância. Normalmente temos uma ideia assim muito genérica do que se passou nessa altura, mas sem perceber as nuances e tudo o que se passou no mundo árabe e que permitiu também o avanço do reino de Portugal. 

Por exemplo? 
Por exemplo, a conquista de Lisboa em 1147 só foi possível num momento de maior fragilidade e de desintegração do poder muçulmano. E quando os cristãos avançam, Afonso Henriques já se intitulava Rei de Portugal apesar de ainda não ser reconhecido internacionalmente como tal… a conquista de Lisboa na altura viabilizou Portugal como reino. Exatamente porque foi possível ao primeiro rei de Portugal aumentar em muito a extensão do território que tinha herdado do seu pai. Ou seja, Lisboa e o seu porto são o ponto de viragem da história. 

Quais são os primeiros sinais de que Lisboa ia ser importante por ser porto?
Recuando milénios, até ao tempo dos fenícios, que terão fundado a cidade. Podemos falar dos fenícios como os principais fundadores da cidade de Lisboa, exactamente pela sua zona estratégica. É uma cidade também com importância no contexto da sua presença no espaço peninsular, avançando no tempo e voltando para os primórdios da nacionalidade. Nos primórdios do Estado Português, com o auxílio dos cruzados que vieram do Norte da Europa – porque os Cavaleiros Portucalense não tinham as máquinas de cerco nem a possibilidade de conquistar uma praça tão importante como Lisboa. 

E já nessa altura Lisboa era muito importante. 
E se essa Lisboa foi importante para os Árabes, também a sua configuração tem importância na conquista, ou seja, na dificuldade da conquista. Na altura, em 1147, estava integrada no reino taifa Badajoz. Qual é a visão de Dom Afonso Henriques quando avança para sul? Era aquela concepção que ele tinha do que eram as estruturas políticas a sul e queria reconfigurar o Reino que lhe permitiria ter uma grande cidade marítima portuária. Como Lisboa é uma grande cidade peninsular, como Badajoz ele não consegue conquistar, isso determina o futuro. Isso determina o futuro de Portugal. O facto de Dom Afonso Henriques ter conseguido, com o auxilio dos cruzados, conquistar Lisboa. Os cruzados não tinham interesse em Badajoz. Tinham que avançar muito para dentro, levar máquinas de cerco, aquelas estruturas muito pesadas era muito mais difícil.  

Isso determina o futuro de Portugal. O facto de Dom Afonso Henriques ter conseguido, com o auxilio dos cruzados, conquistar Lisboa.

Ou seja, mesmo politicamente, o facto de Lisboa ser um porto importante marca a sua história?
Portugal é uma criação política e não geográfica. Não é um espaço delimitado do resto da Península geograficamente, e determina uma opção decisiva pelo Atlântico. Porque também a ideia que nós temos que o comércio com o Atlântico surgiu no século XV ou que no século XV os portugueses descobriram o Atlântico, o comércio no Atlântico não está inteiramente certa. Desde os primórdios da nacionalidade, do século XII e sobretudo no século XIII, até pelo incremento da marinha e comércio pelo rei Dom Dinis, Portugal já tinha importantíssimas relações comerciais sobretudo com o norte da Europa, através do Porto. De Lisboa para Sul era mais complicado porque Gibraltar estava controlado pelos muçulmanos e a navegação no Mediterrâneo não era tão fácil para os portugueses. Mas com o Atlântico Norte era uma realidade e sempre através do porto de Lisboa. Sendo que Lisboa até ao século XIV não era a capital do reino. 

E como era essa cidade-porto, digamos assim? 
Era uma cidade com uma configuração bastante diferente da atual e muito circunscrita à zona ao redor das muralhas primitivas e da alcáçova do Castelo de São Jorge. Uma cidade que foi descendo as encostas e espalhando-se mais até para para Oriente. Era uma cidade com tolerância, onde coexistiam três religiões: o cristianismo, a religião cristã, obviamente, que era a do Estado. Mas também os muçulmanos que quiseram ficar e uma comunidade judaica que teve um papel também muito importante. Então toda a área comercial, todo o aspecto comercial e não só, e também junto da corte, era uma típica cidade medieval de média dimensão. Nós hoje em dia temos uma ideia de que as cidades do Norte são mais importantes e de maior densidade que as do Sul, mas claramente o mundo urbano estava a sul. As grandes cidades eram Roma, cidades no sul de Espanha, Nápoles, Sevilha e Lisboa, que também se inseria neste neste núcleo.

Nós temos uma ideia de que as cidades do Norte são mais importantes, mas o mundo urbano estava a sul. As grandes cidades eram Roma, Nápoles, Sevilha e Lisboa.”

Lisboa era quão importante?
Não era uma cidade tão grande como Constantinopla, por exemplo, que era a capital do Império Bizantino. Mas era uma cidade que foi ganhando gradualmente peso no contexto nacional, sobretudo com o reinado de Dom Fernando, que de facto, se fixa em Lisboa. A corte até então era itinerante, ia pelo país, com o Rei. Poderia ser mais a norte, pois havia reis com preferências por várias regiões mais para para norte. E Dom Fernando fixa-se sobretudo em Lisboa.

Porquê?
Lisboa também já era uma capital económica e Dom Fernando traz para Lisboa a Universidade. Portanto, concentra em Lisboa a capital política. A capital cultural é a capital comercial. E Lisboa afirma-se decisivamente na crise de 1383/85. 

Em que termos? Económicos? 
A revolta contra a possibilidade de o rei de Castela poder ter alguma espécie de tutela sobre Portugal, decorrente do Tratado de Salvaterra, de 1383, é contraposta pela vontade dos chamados homens bons e comerciantes da cidade de Lisboa. Na verdade é uma revolução civil,muito motivada por razões tão simples… tão simples ou tão complexas… mas tão comezinhas, por assim dizer, como a rivalidade comercial entre Lisboa e Sevilha. 

A sério? Ou seja, é sobretudo… a economia. 
Sim. Na altura Dom Fernando e o Rei de Castela tiveram vários conflitos, muito motivados por esta rivalidade, com os portugueses também a atacarem a cidade de Sevilha, a chegarem às portas da cidade. Sevilha não é propriamente uma cidade portuária, mas é uma cidade com uma ligação ao mar. Aqui claramente há uma revolta com uma base também de interesse comercial e económico, protagonizada por comerciantes que tinham ganho grande peso político e que é fundamental para estruturar a segunda dinastia.

Ou seja, por causa do porto…. 
Já que estamos a falar de portos, esses comerciantes existiam em Lisboa por causa do seu porto. Claro. Comerciavam muito azeite e couros. O comércio era fundamentalmente com o norte da Europa, como já falámos, e era sobretudo aquilo que não existia no norte da Europa e podia ser transportado.

Azeite e vinho. 
Se bem que o vinho tinha o problema de se poder estragar no transporte se as temperaturas fossem altas, algo que só foi resolvido, antes das câmaras frigoríficas, pelo vinho do porto, quando acrescentaram aguardente para conservar. E também cortiça, apesar de não ser ainda muito expressiva nessa nessa altura. Mas era este tipo de produtos tipicamente mediterrânicos que não existiam no norte da Europa. Isso equivale a um boom do porto, ou seja, o aumento grande da cidade por causa do porto. 

O porto não era onde hoje não é. O porto era basicamente junto do Terreiro do Paço, em baixo do castelo.. 
O porto acaba se por manter relativamente estável, sobretudo até porque no início da expansão, do segundo ciclo de expansão, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia isso altera a configuração e a movimentação no Porto Lisboa. Por motivos óbvios, porque Lisboa não era uma cidade expansionista, era uma cidade comercial e portanto, serviu de backup comercial. 

Era, digamos, o entreposto comercial das descobertas. 
Acaba por ser um termo correcto para olharmos para Lisboa: é um entreposto comercial onde a partir de determinada altura, século XVII, XVIII, os portugueses não eram aqueles que obtinham as grandes mais valias do comércio com o Atlântico. O que se passa no tempo anterior ao Marquês de Pombal…e que o Marquês de Pombal vai procurar contrariar.

Como?
Sobretudo quando era embaixador em Inglaterra, ele percebeu a forma como os ingleses encaravam o mercantilismo e as mais valias que obtinham no porto de Lisboa. 

Mas o que é que se passava? 
Os portugueses controlavam o comércio do Atlântico. O Brasil, as matérias primas do Brasil, o ouro, os diamantes, o pau brasil, o açúcar. Entravam no porto de Lisboa, era pago o quinto à coroa e esses bens eram depois desalfandegados e exportados para a Europa, com significativas mais valias, mas já por comerciantes estrangeiros. Ou seja, os ingleses nomeadamente, e imagino que também os holandeses e os demais povos mais ao norte, especializados em comércio. Tinham os seus interesses comerciais, eram negociantes privados a quem a Coroa e o Estado concediam privilégios. Agentes por conta própria, comerciais. E eram eles que depois exportavam para os grandes centros de consumo europeu os bens que eram desalfandegados em Lisboa, com significativas mais valias.

Os ingleses perceberam: não há problema em os portugueses controlarem o comércio entre o Brasil e Lisboa, pois nós controlamos o comércio entre Lisboa e os outros países europeus com mais valias.

Porque é que Portugal deixou que isso acontecesse? Por não ter conhecimentos, ligações ou por estar mais interessado noutras empreitadas? 
Não houve incentivo nem da coroa nem os próprios portugueses particulares tiveram essa iniciativa. De controlar tudo o que hoje em dia se chama cadeia de valor. Por exemplo, no século XVI, no início da expansão, Portugal tinha um entreposto em Antuérpia havia uma feitoria, tal como existiam feitorias no norte da África, muito importante para que os bens, muitos deles que chegavam ao porto de Lisboa, pudessem ser comercializados diretamente em Antuérpia. Isso acaba no tempo de Contra-Reforma. E depois com a mentalidade do tempo barroco que não incentivava a que quem detinha os monopólios do comércio pudessem depois fazer esse comércio com o resto da Europa. Mas é também pela concorrência muito forte dos britânicos. E esses aperceberam-se de algo muito simples: Não há problema nenhum em os portugueses controlarem o comércio entre o Brasil e Lisboa, pois nós controlamos o comércio entre Lisboa e os outros países europeus com mais valias, muito mais.

Que efeitos isso teve?
Eu diria que se calhar Portugal salvou-se de alguns conflitos por ter essa atitude tão aberta para com esses outros interesses. Foi fundamental a partir do século XVIII, no período posterior à restauração, a viabilidade de Portugal como país independente dependeu muito da boa vontade britânica. Isso é muito claro no século XIX, no tempo das invasões francesas. Mas já no século XVIII, Portugal ainda tinha alguma autonomia e teve a durante o reinado de Dom João V, também durante o tempo do Marquês de Pombal, apesar de grande parte do comércio estar entregue aos britânicos. Mas isto é claramente visível, sobretudo na primeira metade do século XIX. Isso foi o preço a pagar pela manutenção, no extremo da Europa, dos interesses peninsulares das nossas fronteiras. 

E em tudo isto, o porto… 
Sim, que sempre esteve ao serviço da Coroa. São já de finais do século XIX as obras que são inauguradas por Dom Luís, quando se transfere para zonas mais próximas daquilo que é hoje, em 31 de outubro de 1887. 

Curiosamente é a toda esta zona portuária que de certa forma, os lisboetas acabam por virar um bocadinho as costas após o terramoto.
Antes os lisboetas viviam muito na zona ribeirinha. Já tinham descido do castelo, já existia a cidade aqui. Grande parte da vida fazia-se em redor da zona ribeirinha. É provável que até por algo muito humano, pelo receio de que algo parecido com o terramoto se voltasse a passar tantas pessoas tentaram ocupar zonas mais seguras ou pelo menos que ficaram mais seguras com o terramoto E a própria configuração que o Marquês de Pombal dá à nova cidade, a Baixa Pombalina, muito dividido pelas zonas de comércio, com as profissões bem definidas, a Rua dos Douradores, a Rua dos Sapateiros… Tudo isso retira daquela zona, não só o Palácio real, como muitas casas importantes que o rodeavam. Portanto, parte do que poderíamos chamar a alta sociedade passa a viver em zonas não ribeirinhas, ou pelo menos não naquela zona do Terreiro do Paço. Lisboa do tempo liberal, a Lisboa burguesa acaba por escolher outras zonas para viver. A zona da Lapa também cresceu nessa altura, se bem que é uma zona próxima do Rio, mas não tão perto do rio. E isso também tem a ver com uma a mentalidade burguesa de século XIX de imitar as vidas citadinas de Paris ou de Londres, menos viradas para o Rio. 

E a zona ribeirinha?
Toda a zona ribeirinha continuava a fervilhar de vida, de embarcações que ligavam as duas margens do Tejo, de bens que que eram descarregados. Uma vida de obviamente portuária, com marinheiros, com esse tipo de animação e de perigos, de rixas. Portanto, as docas não são zonas que tivessem ficado despovoadas. Eram zonas de passagem, não de uma forma tão sistemática como depois, com as obras do porto de Lisboa. Há um gradual abandono da Lisboa Oriental que tinha muito peso até então e que começa a perder peso. Dos vários projetos que o Marquês de Pombal realizou para a reconstrução de Lisboa, um deles até advogava a passagem de capital mais para o Ocidente, para concentração na zona de Belém, que, obviamente, depois também acaba por ter essa ligação portuária. 

Toda a zona ribeirinha continuava a fervilhar de vida, de embarcações que ligavam as duas margens do Tejo, de bens que que eram descarregados. Uma vida de obviamente portuária, com marinheiros, com esse tipo de animação e de perigos, de rixas.

Também há uma grande mudança da zona oriental precisamente com a construção do porto. 
Sim, e não coisa pouca. Isso começa exatamente em finais do século XIX, com o início das obras no Porto de Lisboa 1887, com o aterro também de toda aquela zona de da actual Avenida 24 de Julho. Há muitas pessoas que não sabem que Lisboa acabava ali onde acaba a Lapa. E que toda aquela zona que hoje em dia é a Avenida 24 de Julho, por exemplo, era uma zona onde o rio ainda avançava muito e que depois foi aterrada e portanto, tornou se uma zona também de possível estabelecimento de pessoas. 

Alguma explicação para esse aterramento, para essa ganhar de toda essa parte da cidade?
Bom, isso deve ter motivos com certeza técnicos, arquitetónicos ou de engenharia que não políticos. Mas de facto foca muito Lisboa numa parte mais ocidental. Desde as Docas, por exemplo, ainda na Rocha Conde de Óbidos, que tem capacidade para para reparação de navios, não de grande tonelagem, mas com alguma capacidade. E depois, já no século XX, no Bom Sucesso, há também uma capacidade de existir em docas onde os hidroaviões aterravam,  numa fase muito anterior à construção do aeroporto de Lisboa.


E isso volta a mudar a cidade por causa do porto.
De facto, a vida passa a centrar-se mais numa zona ocidental. E diria até que depois, com  a inauguração de uma ponte também a Ocidente, que é de 1966, e acaba por contribuir para consolidar muito o foco na zona mais ocidental de Lisboa. Nessa altura já é uma questão a cidade ter se distanciado do Porto, distanciado de certa forma na vida do dia a dia, porque na verdade, o Porto continua a ser muito importante economicamente. 

O porto não perdeu a sua importância comercial, mesmo com o terramoto, por exemplo? 
De forma nenhuma, De forma nenhuma. Há várias imagens antigas do que se exportava nessa altura e do comércio que se fazia, mais uma vez bastante azeite e vinho. Vê-se bastantes pipas de vinho alinhadas na zona. E a cortiça que a partir da segunda metade do século XIX começa a ter uma importância cada vez maior nas nossas exportações. E hoje em dia somos o maior produtor mundial de cortiça. Mas há uma atividade económica que é fundamental, que se consolida nessa fase e que aproveita também toda esta nova dinâmica construída e em volta das docas, no Bom Sucesso. E de forma nenhuma o facto de a maior parte dos lisboetas se terem virado, por assim dizer, para dentro e de Lisboa se ter começado a expandir para zonas interiores para lá das Avenidas novas, anula a dinâmica do Porto de Lisboa, até pela nova relação que não existia antes. 

Qual?
Há um hiato de tempo entre o fim do comércio exclusivo do Brasil com Portugal, que é anterior à independência do Brasil. Portugal não perde o controlo do comércio com o Brasil na Declaração de Independência de 1822, é anterior, com a passagem da família real para o Brasil em 1807. Logo em 1808, o Reino Unido força Portugal a declarar a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. Os bens brasileiros deixam de vir a Lisboa e o Rio de Janeiro passa a exportar diretamente para todos os pontos da Europa. Portugal e, designadamente, Lisboa perde esse controlo. E nessa altura ainda não há o interesse por África, que é de finais do século XIX. 

Como assim?
As pessoas não têm esta noção, mas no início o comércio com a África ainda era pouco expressivo. Isso acontece já no século XX, porque de facto, a nossa presença no interior de Angola, Moçambique e de uma forma estruturada, teve muito pouco tempo. Entre a fase final da Monarquia e a Primeira República e no início do Estado Novo. Aí sim, começaram a partir vagas de colonos portugueses que começaram a povoar estes territórios. Portanto, quando começam as guerras, na década de 60, o que existia era uma primeira ou segunda geração. Mas aí, o porto de Lisboa tinha uma dinâmica não como grande entreposto do comércio com os territórios africanos e também como ponto de partida. E depois, a partir de final da década de 60, dos soldados das tropas portuguesas que partiram para para África. 

As pessoas não têm esta noção, mas no início o comércio com a África ainda era pouco expressivo. Isso acontece já no século XX. A nossa presença no interior de Angola, Moçambique e de uma forma estruturada, teve pouco tempo.

Há na expressão do porto como ele é hoje uma certa expressão do Estado Novo. As Gares do Pardal Monteiro com o Almada… 
Há aqui um intuito de reafirmação do porto. E essa afirmação do porto é essencial até para a afirmação de Lisboa como o que na altura se designava por capital do Império. Portanto, há esta aposta, não só na década de 40, que depois é também mais ou menos contemporânea das gares, da Exposição do Mundo Português, com alguns edifícios simbólicos e icónicos da época e de fomentar Lisboa e o seu porto como local de receção do comércio com os territórios africanos. E não tanto de exportação, porque a ideia era de fomentar um comércio interno. Ou seja, ao contrário do que se passava no tempo em que Lisboa era o ponto central de confluência dos bens que vinham do Brasil e que depois eram exportados para outros territórios não portugueses, a ideia do Estado Novo, era do comércio entre a chamada metrópole e as colónias, depois territórios ultramarinos.

E Lisboa era esse entreposto… e era muito importante?
Exatamente por este motivo: não era fomentada a exportação e, portanto, tudo acabava por ser um comércio interno.

E em termos da economia nacional era crucial, imagino. 
Era crucial, sobretudo com a cortiça, o vinho. Os bens que chegavam dos territórios ultramarinos eram recebidos em Lisboa e consumidos no mercado interno e não tanto para para exportação.

Ou seja Portugal já estava numa queda forte no comércio internacional, já não era uma potência mundial. O que é que o Porto representava nessa altura? 
Representava sobretudo uma interface interna com o epicentro do comércio interno. Sim, fundamental. Vinho, café, bastantes algodão? E daqui ia sobretudo a cortiça e outros produtos como o azeite. Produtos com mais valia. Exatamente por isso. 

Só que até que ponto é que a manutenção desse tal império, de que Lisboa era a capital era determinante economicamente? 
Essa acaba por ser mesmo a construção política de uma ideia, de uma quase autossuficiência. Que não era real, apesar de tanto Angola como Moçambique terem crescido bastante ainda durante durante a Guerra e sobretudo durante a década de 70. Mas era uma concessão do Estado que seria em teoria, viável, com a manutenção deste protecionismo. Mas Portugal na altura também já tinha aderido à EFTA e aos acordos do comércio internacional. Portanto, gradualmente também estava a abrir uma maior ligação com os seus parceiros europeus. Torna-se membro observador da então CEE, sobretudo com Marcelo Caetano. Um diagnóstico do que é certo sob este ponto de vista é de que Portugal teria que ser viável economicamente, abrindo-se a parcerias com outros países europeus. E, portanto, não era possível manter apenas um circuito interno de relação apenas com o com os territórios africanos.

Depois das independências, que fazem agora 50 anos, Portugal corta os laços com as ex-colónias. Até que ponto o Porto de Lisboa continua a ser um elo de ligação com essas ex-colónias, com esses países? E eles continuam a frequentar, continuam a vir cá a vender os seus produtos ou isso leva um certo tempo a repôr-se?
De facto é um período traumático para Portugal, sob o ponto de vista de encontrar um novo espaço comercial. Lisboa também acaba por ser a cidade que recebe muitos dos “retornados” que chegam destes territórios africanos. Portanto, também aí acaba por ser um ponto de contacto, portanto um ponto de regresso. 

Falamos muito de economia, menos da parte social. E o porto foi certamente um dos responsáveis por Lisboa ter sido uma cidade tão misturada, com tantas origens diferentes…
Para já, Lisboa acaba por, em virtude das circunstâncias e até da reconquista, por dar uma população muçulmana e judaica grande. Depois houve sempre, como em qualquer grande cidade portuária, várias comunidades de interesses de agentes estrangeiros que faziam aquilo que se chama o porto. Que continua até muito tarde com transitários e com tudo isso. Muitos deles eram estrangeiros e muitos deles franceses e ingleses, alemães também, que tinham interesses e agentes no porto de Lisboa. Depois, claro que Lisboa, como capital, uma dos Estados que tinha possessões no além Atlântico, existiam africanos e muitos escravos, sobretudo no século XV. Mas não tanto quanto se possa pensar nos tempos posteriores, porque, sobretudo no tráfico, a partir dos ciclos do açúcar e do algodão no Brasil, na segunda metade do século XVII e o grosso modo, o século XVIII, o tráfico faz-se diretamente entre a África e Brasil e, portanto, menos em Lisboa. Portanto, todo este conjunto de uma população, tudo isto cria uma cidade com algum cosmopolitismo. Nós éramos uma cidade imperial, tínhamos essas relações todas. Mas não éramos tão cosmopolitas do que outras cidades dp norte.

Porquê?
Porque tínhamos os estrangeiros, mas há sempre um fator que geográfico, o país e a capital estão numa condição periférica em relação ao centro da Europa. Portanto, é muito mais fácil para um alemão viver na Bélgica ou para um holandês estar em Itália, porque há um eixo e são as zonas centrais da Europa. E Lisboa tem uma condição geográfica que é impossível modificar, não é? É central se nos enquadrarmos num eixo de relação com o Atlântico, mas é periférica se olharmos para o espaço europeu. 

E é também isso que determina até hoje a vida do porto de Lisboa. 
Sim, sim, nestas duas, entre estas duas fronteiras. 


Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
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