Foto: Pierre-Louis Guedon

A 27 de abril de 2016, o Diário de Notícias escrevia um título que era um argumento completo de um filme de ação: “Mustafa. O curdo que se defendeu com a faca de cortar kebab”. Este texto não é sobre esse episódio lendário da história recente de Lisboa, mas começa precisamente no Palácio do Kebab, onde está exposto – meio em jeito de museu, meio à mão de semear – o machete utilizado pelo dono do restaurante para afugentar os atacantes.

Este texto é sobre outro imigrante, Sergio Zaciu, conhecido no Instagram como @immigrantfoodie, da qual sou ávido seguidor e onde Sergio publicou já mais de 200 vídeos sobre restaurantes da área metropolitana de Lisboa. Os vídeos, com cerca de um minuto, são gravados no telemóvel e muito bem produzidos – não fosse Sergio formado em cinema.

Uma introdução rápida ao local, imagens da comida e do ambiente, a voz de Sergio a narrar a experiência em inglês, e uma nota final numa escala até 10. Simples, eficazes, altamente tentadores, os curtos vídeos de Sergio dão a conhecer uma Lisboa que é de tascas e de bistrôs, de esplanadas e bitoques, de balcões e tapas.

Uma Lisboa que contém todos os sabores do mundo – e, por trás deles, muitas histórias.

Foi a curiosidade que me levou a convidá-lo para uma conversa. Ele aceitou simpaticamente e sugeriu o Palácio do Kebab. Foi lá que nos encontrámos para, entre falafel e döner kebab, falarmos sobre este projeto que conta já com mais de 23 mil seguidores.

Sergio (de preto) e o irmão Oliver: veia cinematográfica a serviço do paladar em vídeos feitos pelo telemóvel para Instagram .Foto: Pierre-Louis Guedon

Comecei por me surpreender: ao contrário do que pensava, ele não estava ali por causa da história de Mustafa, mas sim por causa do kebab, que lhe tinha sido recomendado por um fã da página.

Filho de mãe turca, nascido na Alemanha, procurava ainda na cidade por um sítio que fizesse jus a esse prato. E foi assim, enquanto lhe contava a história, que dei por mim a ser gravado e a fazer parte de um dos seus vídeos. É esse o processo de Sergio: entrar de telefone na mão e seguir gravando, para depois mostrar ao mundo o que aconteceu. 

Mas comecemos pelo princípio.

Sergio cresceu na Roménia, de onde é natural o seu pai. Estudou cinema em Los Angeles, na Califórnia e é o cinema a sua paixão: escreve críticas, argumentos, realiza e produz. Da arte à antropologia muitas vezes não vai nem um passo e foi essa curiosidade em relação às pessoas e às comunidades que o rodeavam que o levou à comida.

Em Los Angeles, Jonathan Gold é ainda hoje, seis anos após a sua morte, uma das grandes referências da crítica gastronómica – o primeiro a receber um Pulitzer por essa arte. Gold cartografou LA através dos seus restaurantes, de Little Ethiopia a Koreatown, de Little Armenia à Thai Town, dando a conhecer à cidade as suas muitas comunidades e enclaves étnicos através da gastronomia. Foi à boleia de Gold que Sergio conheceu LA, e é hoje à boleia de Sergio que muitos dos que chegam a Lisboa sem falar a língua – e todos os que falam inglês – podem ir da Malveira à Baixa-Chiado num festim de sabores exóticos e locais.

É esse o seu propósito com este projeto: dar a conhecer Lisboa através da comida. Começou por ser apenas uma forma de sugerir restaurantes a amigos que o vinham visitar, mas rapidamente ganhou vida própria. Mudou-se para Lisboa à procura do que tinha perdido com a saída de LA: as pessoas de todo o mundo, a cultura em todo o lado, a arte em várias formas. Lisboa tinha-lhe ficado na memória como esse lugar que podia ser casa porque cheirava a mundo.

A sua segunda entrada, por exemplo, é sobre a gelataria italiana Niva, uma das minhas favoritas, com espaços no Príncipe Real e em Alcântara e uma história de sobrevivência durante o COVID-19 muito interessante e que um dia contaremos. A quarta, pouco depois, é sobre a Frangaria Zé da Mouraria. As curvas são vertiginosas: um dia um ramen, no dia seguinte umas pataniscas. 

Num mural de instagram descobrimos o mundo inteira numa cidade. Japão, China, Coreia, India, Nepal, México, Itália, Estados Unidos, Grécia, Irão, França, Alemanha, Goa, Vietname, Tailândia, Espanha, Síria, Perú, Turquia, Líbano, Indonésia, Moçambique, Brasil e claro, muito, muito Portugal.

A página cresceu e assim também o seu impacto. Após o seu vídeo sobre o maravilhoso projeto de barbeque americano de Rui Matias, o Kau Barbecue, na Malveira, que se tornou viral, recebeu uma mensagem do dono: “O vídeo mudou tudo; tivemos de fechar três horas antes do previsto porque esgotámos a carne toda. Obrigado!”

Mudar a vida de pequenos negócios

Foi aí que percebeu que o seu hobby @immigrantfoodie podia ajudar ativamente pequenos negócios a encontrar o seu público. A brincadeira ganhava contornos sérios. Apesar de também continuar a ir a restaurantes mais conhecidos – porque, na verdade, vai a todo o lado – começou a interessar-se mais pelos “buracos na parede que ninguém conhece” e devia conhecer. Pode soar estranho, mas um vídeo viral pode mudar o destino de um pequeno negócio familiar – e Sergio quis abraçar essa possibilidade como um desígnio.

Quanto lhe perguntei porque é que não faz críticas negativas, foi peremptório: “Não quero publicar críticas negativas. Quando faço crítica de cinema, consigo ser duro, exijo muito dos filmes. Um filme é uma obra de arte. Quando crias arte, não podes esperar que o seu valor não seja objeto de discussão. Se fazes arte sem essa ambição, então estás a fazer arte como um idiota. Quando abres um restaurante, não o fazes para que se escrevam críticas sobre eles. É a vida das pessoas. O @immigrantfoodie é um guia de sítios onde as pessoas devem ir comer; não é um guia de sítios onde não comer”.

Todos os que falam inglês – podem ir da Malveira à Baixa-Chiado num festim de sabores exóticos e locais. Foto: Pierre-Louis Guedon

Esta opinião, afirma, pode mudar se estiver em causa um restaurante que queira fazer da sua proposta gastronómica uma obra de arte. “Se fores um restaurante com estrelas Michelin cuja ambição é a de fazer arte a partir da cozinha, a história é diferente. Mas se venho a um pequeno restaurante comer kebabs e os kebabs não são bons, só lhes desejo a melhor sorte para o futuro e que sobrevivam.” Mas que fique registado, para que não haja dúvidas: os kebabs do Mustafa foram aprovados.

A sua missão ficou assim clara: procurar sítios onde se come bem, aproveitar o impacto da página para mudar para melhor o negócio de pessoas trabalhadoras e empenhadas em servir bem. 

A certo ponto, a comida fugiu da conversa e chegou à mesa o tema da imigração. Sergio acredita que faltam políticas de integração sérias. “O meu pai, que migrou da Roménia para a Alemanha, teve de aprender a língua mas conseguiu depois um emprego numa empresa alemã, com colegas alemãos. Se os governos Europeus quisessem a promover a imigração devido a um verdadeiro espírito caritativo, então estariam igualmente investidos em promover a integração dos imigrantes na sociedade. Infelizmente, estamos a fazê-lo para obter trabalho barato. Queremos um condutor de Uber, um empregado doméstico. Mantemo-los nas suas comunidades, a viver à parte.”

Continuou:

“O que eu tento fazer com @immigrantfoodie é pelo menos dar visibilidade a diferentes donos de negócios pequenos, quer sejam chineses, indianos, palestinianos ou de qualquer outro sítio, para relembrar o quão importante é convidar os outros para o nosso mundo. Eu simpatizo com o português que está chateado porque a sua tasca favorita está a fechar e a ser substituída por um restaurante de kebabs, mas se todos trabalhássemos mais para integrar estrangeiros na nossa sociedade, então talvez esses imigrantes passassem mais tempo nos negócios locais em vez de construirem os seus. Portugal precisa de estrangeiros para sobreviver. Quando falas com donos de restaurantes, portugueses ou internacionais, percebes que os estrangeiros são não só uma parte significativa da sua força de trabalho, mas também uma parte significativa da sua clientela.”

Perguntei-lhe se ele pondera utilizar a sua recém-encontrada influência como crítico gastronómico para falar destes temas. Sergio respondeu-me com poucas dúvidas: “Não, não é esse o propósito da página. Guardo essas intervenções para o meu trabalho como cineasta. A minha mensagem política com o @immigrantfoodie, se existir alguma, é apenas esta: apoiem os pequenos negócios”. 

Sergio, que se faz acompanhar muitas vezes do irmão, Oliver, também ele um amante de cinema e a outra metade do projeto The Zaciu Brothers foi recentemente entrevistado pelos nossos parceiros People of Lisbon. Quando falei com ele, tinha ainda uma lista extensa de restaurantes para visitar “para ter uma imagem mais completa da cidade”.

YouTube video
Vídeo de People of Lisbon.

Entretanto, e após muitos pedidos, lançou um mapa Google da cidade, com todas as suas sugestões, que pode ser subscrito na sua página de Instagram, constantemente atualizado com os últimos sítios que visitou.

Ficou a faltar-me fazer-lhe uma pergunta: para quando a versão lisboeta da @immigrantfoodie da famosa lista de Jonathan Gold com os 101 melhores restaurantes da cidade?

Essa lista, que era na verdade um mapa, transportou durante anos pela cidade de Los Angeles tanto locais como estrangeiros, numa viagem à volta do mundo. Lisboa, mais pequena, menos povoada, contém ainda assim também o mundo dentro das suas cozinhas, nas curvas dos seus bairros, nos muitos buracos na parede – um mundo que a Mensagem dá a conhecer, todos os dias, nestas páginas.

Quem sabe, um dia, os caminhos se encontrem para mais uma grande declaração de amor à Lisboa multicultural, de todos e do mundo.


João Marecos

Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.

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2 Comments

  1. Hi, what means “divulgation” for the pictures credit? Those photographies are Pierre-Louis Guedon’s work. Why is he not mentionned?

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