Para hoje existir artistas como Vhils ou Bordalo II, teve de haver jovens a pintar à noite, à socapa dos pais e da polícia, nas ruas e comboios da cidade. É a semente que gerou tudo o resto.
Nos muros, nas empenas dos prédios, nos comboios ou nos painéis das autoestradas: hoje, o graffiti está um pouco por todo o lado em Lisboa. Inevitavelmente controverso, tendo em conta que os conceitos de arte e vandalismo facilmente se sobrepõem quando falamos de pintura de génese ilegal, certo é que o graffiti está vivo, influenciou a arte popular e originou muitos dos grandes artistas portugueses que são reconhecidos a nível mundial.
Até 3 de dezembro, a cultura do graffiti e da street art está a ser celebrada na Cordoaria Nacional, em Belém, com a exposição “Urban (R)Evolution”. Com produção da Underdogs Gallery e da Everything Is New, reúne obras de alguns dos maiores nomes portugueses do género e coloca-os lado a lado com ícones internacionais. As peças de Add Fuel, Wasted Rita, Tamara Alves, Nuno Viegas ou AkaCorleone, por exemplo, coexistem com as dos pioneiros Lee Quiñones, Futura, Martha Cooper ou Shepard Fairey, o mítico Obey, que a Mensagem de Lisboa entrevistou recentemente.
Só que a exposição conta com outro Obey, o lisboeta. Com 49 anos, José Rui Dias não cresceu com graffiti e tags pintados nas paredes. Foi ele um dos primeiros a fazê-lo, um dos que olharam para Lisboa como uma tela em branco e pensaram: nunca mais nada vai ser o mesmo.

Do skate ao graffiti: um rapaz “alternativo” de paixões radicais
Neto de avós portugueses e cabo-verdianas, Zé Rui — como tantas vezes é tratado — cresceu em Algés de olhos postos do outro lado do oceano.
Quando a febre do breakdance deixou Nova Iorque e se instalou na Europa, em meados dos anos 80, muito à boleia dos filmes e séries temáticas, foi um dos miúdos que se deixaram contagiar por aquele imaginário.
“Eu via aquilo e pensava que tinha muito a ver comigo. Luso-africano, eu olhava para os porto-riquenhos e mesmo para os afro-americanos e identificava-me, achava que deveríamos fazer o mesmo aqui. Porque é que somos assim tão retraídos? Não fazemos graffiti, nem breakdance”, recorda quando o entrevistamos na Fundação Calouste Gulbenkian.
“Eu não ouvia fado nem kizomba. Ouvíamos música de Cabo Verde em casa, mas não era a minha cena. Eu era um jovem e queria era aquilo, aquele movimento de Nova Iorque.”

Por outro lado, durante a adolescência, Zé Rui era um skater de vocação. “Era de dia e noite. Só ia a casa comer. Só os nossos pais sabem como é que autorizavam aquilo [risos]”, lembra. Era algo comum no sítio onde cresceu. “Na minha escola costumava dizer-se: escolhe a tua tábua. Havia muito pessoal do surf e do bodyboard, mas eu fui para o skate.”
A imagem associada à cultura do skate, com os logótipos das marcas e os gráficos das tábuas, levaram-no a desenvolver um gosto pelo desenho — tal como os símbolos das bandas de metal e punk que ouvia na altura. “Desenhava nas mesas, já era conhecido por isso lá na escola.”
Num certo mês de agosto no início dos anos 90, partiu com uma dúzia de amigos para fazer um Interrail de skate. Viajavam de comboio, conheciam a Europa e participavam em provas internacionais. Passaram por Paris, Amesterdão ou pela Alemanha. “Com o gosto que eu tinha pelo desenho, tinha sempre a cara colada ao vidro para ver os graffiti.”
Na altura, a “subway art” de Nova Iorque já tinha chegado à Europa. Os comboios eram pintados de alto a baixo, da esquerda para a direita, de forma ilegal, por coletivos em busca de espalhar os seus nomes artísticos e fomentar um movimento. Em Portugal, a prática estava prestes a chegar.
“Quando voltei a Portugal, aleijei-me num tornozelo e a minha mãe disse-me: vais ter que parar de andar de skate até isso sarar. Parei, encostei a tábua e rapidamente agarrei numa lata de spray.”
Latas, paredes e muita adrenalina
Foi em 1992 que Zé Rui começou a assinar Saint (graças a um apelido seu, Santo) na escola ou nos autocarros. Seguir-se-iam muitos outros nomes artísticos, como Kase ou Sea, até se fixar Obey SKTR. “O pessoal na escola começou a reconhecer o meu tag, aquilo começou a dar-me pica. Depois, a associação da escola disse: ‘Zé Rui, conseguimos que pintes uma parede na escola. O diretor concordou, vamos dar-te as latas’. E eu lá pintei um mural para a Lista A, fiquei famoso.”

A partir de amigos skaters, acabou por conhecer outros miúdos que também já faziam graffiti na Linha de Cascais, e que mais tarde se tornariam conhecidos como Nomen e YouthOne. “Eu não queria acreditar: o quê? Graffiti em Carcavelos?” Zé Rui acreditava ser o único em Portugal a fazer graffiti, mas na zona de Carcavelos e São Domingos de Rana havia relatos de pinturas do género desde o final dos anos 80. Rapidamente visitou a escola que estes rapazes frequentavam para ver as suas peças e conhecê-los. “E fiquei mesmo de boca aberta. Para mim, na altura ver oito, nove ou dez graffs, já era espetacular.”
Não demoraram muito a formar uma crew, os PRM, com estes e outros writers da zona.
“Começámos a pintar e, depois, decidimos ir para fora dali. Foi aí que começámos em Lisboa, pintámos o primeiro Hall of Fame nas Amoreiras. E depois fomos até Coimbra, ao Porto ou ao Algarve espalhar os nossos nomes. Até fizemos Interrails para pintar pela Europa.”
No início, houve alguma atenção dos media em relação aos PRM. Fizeram-se reportagens sobre o facto de o graffiti de Nova Iorque ter chegado a Portugal — numa altura em que os primeiros rappers portugueses também começavam a aparecer.
Obey recorda que havia uma “curiosidade” pelo lado artístico, um interesse em captar “um movimento a nascer”. Além disso, os jovens artistas sentiam-se validados por serem contratados para trabalhos legais. Na altura pintaram discotecas, ginásios ou espaços de desportos radicais. Usavam latas de bricolage, porque ainda não existiam em Portugal as marcas especializadas de tinta para graffiti. As primeiras chegariam através da Big Punch, icónica loja de streetwear de Lisboa com uma grande ligação ao circuito.

Numa altura em que os trabalhos lhes exigiam cada vez mais tempo, os PRM acabaram por se separar. “Eu queria pintar mais fora e tornar o meu tag famoso, não queria fazer tantos trabalhos encomendados. A vida também entrou em ação: uns tiveram filhos, outros foram para a tropa, outros arranjaram empregos.”
Em 1996, inspirado pelo filme “Eles Vivem”, de John Carpenter, surge o nome Obey. É a partir daí que Zé Rui se torna num dos writers mais famosos do movimento. Pinta comboios e paredes de forma ilegal, e entretanto arranja outra crew. “Nessa altura já havia muitos, foi quando houve o boom: isto estava tudo taggado. Com o pessoal do outro lado do rio e daqui de Lisboa, os transportes públicos estavam completamente devassados. E a Gulbenkian era um dos nossos pontos de encontro”, recorda.
Obey sublinha ainda a “fase de mudança” que se vivia em Lisboa, antes da Expo 98. “Destruíram vários bairros e as pessoas foram realojadas. E muitos desses jovens sentiram: temos que fazer algo. E identificavam-se com a cena de Nova Iorque e do graffiti. Começaram a pintar também. Ainda por cima, as linhas [de comboio e metro] eram novas, o que era ainda melhor.”
O reconhecimento, as normas e a família que Obey encontrou no graffiti
Embora tenha fugido algumas vezes da polícia, diz que nunca foi apanhado nem detido ou multado. “Mas também nunca arrisquei muito. Distribuía bem as coisas, entre comboios e paredes legais. Nunca fui o mais procurado porque também nunca fiz o maior estrago. Pintar os comboios é mais uma necessidade: podemos ter mil paredes lindas, mas não fazem sentido se ninguém na tua cidade pintar os comboios. Aí perde-se a autenticidade do movimento. Isto não pode ser graffiti sem a subway art portuguesa.”
Nesta prática recheada de “adrenalina”, em que a motivação vem do “reconhecimento dos pares”, Obey aponta para as “regras não escritas” que os writers “verdadeiros” cumprem: não pintam carros privados, monumentos ou igrejas, por exemplo. Dizem ser uma reação à cidade, um ato subversivo de um indivíduo que se quer expressar.

“A cena de estar tudo vandalizado e com coisas feias… Os writers também têm um problema com isso. Nós também não gostamos. Chamamos toys a essas pessoas, que são aqueles que estão a aprender, que não obedecem às regras ou que fazem aquilo por brincadeira. Estão nisto mas não percebem a cultura. Os writers querem qualidade, querem que as pessoas fiquem impressionadas. Mas, a não ser que uma pessoa tenha uma mente muito aberta, percebo que seja difícil para alguém de fora fazer esta distinção.”
Os pais de Zé Rui rapidamente “aceitaram” o modo de vida do filho, uma vez que até começou por fazer muitos trabalhos legais. “Sempre fui alternativo e a minha mãe, principalmente, gostava disso. Dizia-me para ter cuidado, mas sempre gostou que eu fosse assim rebelde. E como nunca parti nenhum osso nem eles foram chamados à esquadra para me vir buscar, pensaram: ele sabe o que está a fazer.”
Além disso, Obey construiu uma família através do graffiti. Imerso no movimento hip hop da altura, conheceu Jumping, rapper das pioneiras Djamal — as primeiras mulheres a lançar um disco de rap em Portugal, em 1997 —, que se haveria de tornar a sua namorada e, mais tarde, mulher e mãe da sua filha.
“Conhecemo-nos em festas. Nós éramos writers, elas davam concertos, nós íamos ver. E ela começou a andar tanto comigo, que começou também a pintar qualquer coisa. E eu disse: o nosso grupo vai chamar-se TR, de Tânia e Rui. Depois entrou um amigo nosso. E depois a minha crew de graff, de pessoal mais hardcore, os SK, juntaram-se.” Daí hoje usar como nome artístico Obey SKTR, o que também parece aludir ao seu passado como skater.

Há mais de 10 anos que não faz graffiti ilegal.
Aponta a idade como fator, bem como a exposição prolongada às latas de spray, que são nocivas para a saúde. Prefere pintar paredes de vez em quando, de forma a aprimorar a sua técnica e estilo, e tem um emprego “bem remunerado por rotações”, numa área técnica especializada, que lhe permite ter tempo para se dedicar à sua arte. Tem sido convidado para expor em locais como o MAAT, o Festival Iminente e agora tem uma peça distinta, com um graffiti tridimensional pintado em madeira, na Cordoaria Nacional.
“Os meus pais estão super orgulhosos de me verem em galerias e de ser reconhecido como um dos pioneiros”, diz, salientando que sempre soube que o graffiti tinha vindo para ficar e que iria ter este impacto, tal como já acontecera na Nova Iorque dos anos 80. “E estar agora nesta exposição é um sonho tornado realidade.”
Em breve, planeia lançar um livro que documente o seu percurso e, inevitavelmente, parte da história do graffiti em Portugal.
Sobre a controvérsia em torno do graffiti, garante que “não vai embora tão cedo”.
“Não há rusgas na casa de um puto de 18 anos porque fez uns graffiti no comboio… É desproporcional. A única coisa que ele fez foi pintar. Agora, se o apanhares em flagrante, é normal que haja uma consequência. Mas não vão abrir nenhuma investigação para parar com isto. Até porque a intenção é sempre boa: é arte. E o miúdo que começa agora a pintar pode ser o próximo Vhils ou o próximo Bordalo II. Aí livras-te de toda aquela carga do vândalo que foste, do estrago que causaste. Isso valida tudo.”

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