Alheia ao estridente choro do bebé, ao comércio da artesã e aos brincos e colares que expôs e que reluzem ao sol, indiferente aos turistas que procuram o melhor enquadramento para a foto, está a artista brasileira Carolina Zingler. Ela que dedilha as cordas da guitarra e canta, tranquila, emoldurada pelo verde das parreiras e os azulejos do miradouro de Santa Luzia, em Alfama.
A música, um antídoto ao ruído pertinente de um ponto turístico, que é também uma forma de estar da artista:
“Tenho respeito pelo lugar onde canto. Antes de começar, presto atenção, ouço o que o lugar tem a dizer e devolvo com um repertório específico para aquele sítio e momento. Todo o relacionamento para dar certo é assim, exige um respeito e, principalmente, uma escuta.”
O que muitos dos seus vizinhos e admiradores neste dia não sabiam é que Carolina é a mais famosa entre os músicos de rua do Brasil.

A criadora da “Esquina do Jazz“
Carolina foi uma pioneira a tocar nas ruas da megalópole São Paulo, georreferenciando o encontro da rua Peixoto Gomide com a avenida Paulista como a famosa “Esquina do Jazz” – onde embalava com groove, folk e, claro, jazz, paulistanos e turistas transeuntes ao pé do Museu de Arte de São Paulo (MASP).
“Olha, pode parecer pretensioso dizer isso, mas antes de mim, não conhecia ninguém que tocava nas ruas de São Paulo, considerado um espaço menor. Depois do Esquina, o que falta agora é espaço. Vejo agora músicos a estacionar uma carrinha para descer um equipamento profissional”, conta Carolina.
As performances na “Esquina do Jazz” logo catapultaram o nome de Carolina Zingler nos media brasileiros. Entrevistas em jornais e talk shows, apresentações em programas de televisão e até um episódio dedicado especialmente à cantora na série documental “Buscando Buskers”, realizada por Edu Felistoque para os canais Canal Brasil, Music Box Brasil e Sony.
Foi apenas aí que a busker mais famosa do Brasil soube que era uma… busker. “Nunca tinha ouvido falar no termo antes, só quando o Edu me perguntou: ‘E aí, como é ser uma busker?‘. Dei conta que o que fazia tinha um nome.”
Um nome e uma alma.
A experiência que se traduz numa arte internacionalmente conhecida como “buskers” vem de uma expressão em inglês que, desde meados do século XIX, qualifica os artistas itinerantes que se apresentam em tabernas e ao ar livre. O termo deriva de “busk“, a atividade de cruzar os mares como um pirata.
Em 2019, Carolina concretizou a sua sina de busker e cruzou os mares para tocar nas ruas de Lisboa, Porto, Luxemburgo, Berlim, Praga, Amesterdão, Paris e Marraquexe, uma peregrinação musical e sociológica registada no YouTube na websérie “Take my soul do fly“.
Vendeu o carro, juntou uma “grana“, e, ao lado de uma percussionista e de dois outros amigos que ajudaram a produzir e registar a turné, colocaram o pé na estrada.
A viagem começou por Lisboa, a cidade após o périplo musical, eleita por ela como a melhor entre todas as visitadas para o trabalho de um busker.
O regresso a Lisboa, a melhor terra para os buskers?
Para além da experiência e da websérie, o giro serviu para Carolina Zingler chegar a conclusão que cada cidade tem o seu charme, altos e baixos, mas para um busker, não há sítio como Lisboa. E não só pela proximidade cultural com o Brasil. “Talvez as pessoas aqui não tenham essa ideia, mas passa gente do mundo todo por Lisboa. Isto é muito rico!”
Tanto que Lisboa tornou-se um porto seguro para a pirata de guitarra ao tiracolo.
A cidade entrou no radar de Carolina Zingler em 2018, graças ao sócio na gravadora que, após uma visita a Lisboa, sugeriu um “rolé” da cantora pela capital portuguesa. A ideia era passar os regulamentares vinte dias de férias, mas a brasileira gostou, foi ficando, ficando, até que as férias se estenderam para quatro meses de estadia.
E, para Carolina, o clima desta cidade é um outro fator importantíssimo no seu trabalho.
“Tocar na rua tem seus detalhes. Quantas vezes, em São Paulo, estava a tocar numa esquina e caía uma ‘baita‘ tempestade ?. Aqui, até no inverno faz dias lindos, com um céu maravilhoso. É um sonho”, atesta.

Já na primeira escala em Lisboa, uma coincidência surgiu como um sinal de que a cidade guardava boas surpresas. “Estava à procura de um quarto e vi o anúncio de um violoncelista que tinha um AirBnb. E não só isso, além de ser músico e do alojamento, o Hugo tinha um bar que funcionava numa antiga farmácia. Uma farmácia! Era coincidência demais”, recorda-se a antiga farmacêutica. O violoncelista em questão é Hugo Fernandes, que até abril de 2023 ano geria o Pharmácia Musical, no bairro da Graça.
A verdade é que a atmosfera de Lisboa, tanto a climatérica quanto a emocional, tem funcionado com um potente ímã que vem atraído Carolina todos os anos, para períodos cada vez mais longos. Desde fins de maio de 2023 na cidade, pela primeira vez, a brasileira vai passar mais tempo a tocar nas ruas lisboetas do que nas de São Paulo.
“Em vez de um quarto, procurei por um T1 para uma temporada até o fim deste ano ou início do próximo”, revela Carolina, que pode ser vista e ouvida nos miradouros de Santa Luzia e da Senhora do Monte, ambos na Graça, ou no Quiosque da Praça da Alegria.
Da alquimia da farmácia para a música
Apesar de fazer de São Paulo a sua – até agora – primeira morada, Carolina Zingler é de Santa Cruz do Sul, a pequena cidade no coração do Rio Grande do Sul conhecida pela vida pacata e as nevascas de inverno. Foi lá que a cantora cresceu e estudou para trilhar uma profissão em que nada sugeria o viés musical de agora: a licenciatura em Farmácia.
A vida por entre tubos de ensaios, bicos de Bunsen, pipetas e, muito menos, a bata branca como farda, porém, não estava nas linhas do mapa astral dessa sagitariana de 44 anos.

“Já tocava o violão (guitarra) assim por brincadeira, até que um dia uma prima, a prima Wari, que gostava de cantar, insistiu para que formássemos uma dupla”, lembra Carolina. Aceitou o convite e dividiu o período de estágio numa rede de farmácias com as apresentações em duo com a prima Wari em bares da cidade natal e arredores, ao som de folk e rock and roll.
Graduada, no mesmo dia em que recebeu o convite para gerir a rede farmacêutica onde estagiava, Carolina soube que a fita cassete enviada sem muitas pretensões para a proposta de trabalho como música no hotel Othon Palace, no Rio de Janeiro, tinha sido aprovada. Entre as quatro paredes de um laboratório e a liberdade da ribalta, não houve dúvidas.
E foi assim que a alquimia entre a farmácia e a música se deu.
Quanto à prima Wari, aquela mesma que incentivou a futura farmacêutica a trilhar o caminho da música e dividiu os palcos de Santa Cruz do Sul e arredores? “Formou-se em biologia e hoje é uma super bióloga, com PhD e tudo. É agora a doutora Wariluska!”, diverte-se Carolina. “Mas ainda tem uma voz que não tens ideia”, sublinha.
A artista da contemplação
Parte da empatia entre Carolina e as pessoas que dedicam um instante do dia para ouvi-la vem do ar descontraído, daquela ciência blasé dos artistas em lembrar aos apressados na rua de que a vida pede um instante de contemplação.
Um lifestyle traduzido no título dos álbuns, que sugerem um desprendimento do solo para um pacífico voo de (auto)reconhecimento, como Butterfly e Birds Flying High, ou ainda o reencontro com a natureza interior, como em Mantras da Mata.
Uma transcendência Yin que Carolina Zingler ajuda a patrocinar com o seu lado Yang de empreendedora do ramo musical, na pele de produtora fonográfica e sócia do estúdio Gerência Records, dedicado a produzir álbuns e bandas sonoras para filmes.

Foi justamente o investimento nesse lado mais “formiga” que protagonizou a mudança de código postal da “cigarra” Carolina do Rio de Janeiro para São Paulo. “Senti a necessidade de aprender sobre esta área. Tinha estudado produção fonográfica no Rio e, depois, fui para Sampa fazer uma especialização em produção musical, bandas sonoras e engenharia de áudio”, conta.
Em Sampa, nasceria Butterfly, o primeiro álbum da cantora, lançado em 2011. Com o trabalho, Carolina Zingler cumpriu o circuito indie paulista de concertos.
O timbre da voz, o jeito de bater nas cordas da guitarra e o repertório do primeiro trabalho sugeriam um outro, salto que e veio o segundo disco, em 2015, dedicado a standards do jazz, como Billie Holiday, Joni Mitchell, Nina Simone, Cole Porter e Duke Ellington. “Todos diziam que deviam gravar um disco com os clássicos do jazz e assim o fiz.”
A receção, porém, não foi a esperada e para divulgar o seu trabalho e Carolina resolveu ir para onde o público estava. “Um trabalho que não é autoral enfrenta sempre dificuldade para encontrar um palco. Aí, pensei: quem sabe, a rua?”, conta. Carolina então estirou o tapete no passeio da Peixoto Gomide com a Paulista e fez dele o seu palco, a sua esquina.
A “Esquina do Jazz“.
Além da música, a cigarra brasileira traz para Lisboa o seu lado formiga e produz o álbum de um outro artista brasileiro que também costuma tocar nas ruas lisboetas, o músico João Prioli.
“Tocar na rua é uma opção, não uma falta de opção como muitos pensam. Às vezes, é difícil para as pessoas perceberem esse lifestyle. No meu caso, ser busker é uma escolha e o meu desafio é trazer para aquele sítio, para aquele tempo e espaço, uma música que esteja em sintonia com aquele lugar”, completa.
Uma vez em Lisboa, portanto, pare, escute e sintonize com a mais famosa busker brasileira que escolheu Lisboa como palco.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

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