Embora não tenha sido um dos mais afamados reis portugueses, o túmulo de D. Fernando no museu do Convento do Carmo em Lisboa é um dos monumentos medievais mais interessantes de arte portuguesa.
Quando, em 1367, D. Fernando ascendeu ao trono, tinha todas as condições para um reinado próspero e bem sucedido, dentro e fora das fronteiras do país. Mas este excesso de confiança cobrou o seu preço e depois de três guerras com Castela (1369-1370, 1372-1373 e 1381-1382) e de um quase-casamento com a filha do rei castelhano, o monarca acabaria por se apaixonar por Dona Leonor Teles de Menezes, que já era casada.
Após muita pressão, D. Fernando conseguiu a anulação do primeiro matrimónio de Leonor, tornando-a pouco depois na sua rainha – o que foi muito mal recebido pela população e levou a distúrbios um pouco por todo o país. A partir daí, o rei e a sua rainha tornaram-se figuras muito impopulares e assim foi até ao termo do seu reinado.
Temendo deixar para o futuro um legado negativo, D. Fernando procurou gravar em pedra no seu túmulo uma exaltação dos feitos positivos do seu reinado – daí as referências à Lei das Sesmarias e à Companhia das Naus, assim como à vida de São Francisco de Assis (de quem era muito devoto e a cujo convento em Santarém o túmulo era destinado).
Não nos debruçaremos exaustivamente sobre toda a iconografia do túmulo mas sobretudo naquela que pode ter uma leitura esotérica e na alegada presença de um “alquimista” na face lateral direita do túmulo.

Que alquimista é este?
Este túmulo chamou-me à atenção há alguns anos numa das minhas várias visitas ao Museu do Carmo. Situado quase imediatamente em frente à porta de acesso, o túmulo causa, de facto, um grande impacto visual pela sua decoração profusa, grande qualidade artística e detalhe dos baixos-relevos. O estado de conservação está longe de ser prístino, devido à natural degradação do calcário e aos vários vandalismos que sofreu nas Invasões Francesas.
Mas o que mais marcou a minha memória foi ter encontrado, numa das suas laterais aquilo que me pareceu ser a figura de um alquimista, a segurar um possível matraz no seu laboratório. Imediatamente sob este possível alquimista, encontramos um frade. A imagem ficou-me na memória para sempre.

Anos depois, já tinha aprendido que a importância da posição deste frade no túmulo, assim como a sua proximidade ao alquimista poderia indicar que se trata de alguém muito próximo ao monarca ou, talvez, o próprio ideólogo do túmulo e, consequentemente, o responsável directo pela escolha da representação de um alquimista no túmulo.
Talvez se trate assim de um franciscano, já que se sabia que esta ordem (especialmente a sua corrente espiritual) tinha entre os seus membros e simpatizantes alguns entusiastas da Arte de Hermes, sendo um dos mais conhecidos o alquimista aragonês Arnaldo de Vilanova (1238-1311), e que Ordem Franciscana fora a ordem favorita de D. Fernando.
A designação “alquimista” foi usada pela primeira vez pelo fundador do Museu do Carmo, Joaquim Possidónio Narciso da Silva (1806-1896) e descreve bem esta estranha personagem que enverga um chapéu que, na arte medieval, surge frequentemente em alquimistas e que aqui tem um especial relevo, porque se trata da única peça de vestuário que a figura ostenta.
A cadeira com espaldar onde está sentado é um conhecido símbolo de autoridade intelectual e é uma acompanhante comum na arte renascentista que retrata alquimistas nos seus laboratórios e que poderá ser uma alusão às longas horas (meses ou até três anos) que as quatro fases da Obra Alquímica demoravam até chegar à sua conclusão.
No centro deste medalhão entre dois escudos, o alquimista ergue o Vaso dos Filósofos (matraz), onde matura a Pedra Filosofal. O alquimista está – numa representação muito rara, senão mesmo única, na arte portuguesa – com uma corda amarrada ao pescoço que está presa a um pesado cepo. A figura está numa sala com dois grupos de quatro vasos em duas prateleiras, todos diferentes entre si, e que poderão ser uma referência às quatro fases da Obra Alquímica: Nigredo, Albedo, Citrinitas e Rubedo.
Estamos aqui, muito provavelmente, perante um “labor-a-torium” alquímico.
A corda ao pescoço do alquimista poderá ser uma referência aos perigos da alquimia, expondo o castigo a um alquimista que tenha colocado em risco a vida do monarca através de algum preparado medicinal para ele fabricado (o que explicaria a corda ao pescoço). Ou seja, uma própria marca do arrependimento do monarca para com a sua crença na Ars Magna e para com algum alquimista que tenha apoiado na sua corte ou no convento franciscano de Santarém.
Mas, se assim fosse, tal arrependimento surgiria num túmulo que é, todo ele, a exaltação dos feitos de um monarca e das virtudes cristãs de São Francisco?
A interpretação simbólica
A interpretação simbólica desta figura nua (como se confirma olhando para os seus pés e vendo as marcas dos músculos no torso e pernas), de barrete frísio, é assim muito mais provável.
Desde logo o gorro frísio surge na arte medieval associado aos alquimistas, conforme destaca Fulcanelli na sua interpretação de uma gárgula da catedral de Notre Dame (“O Mistério das Catedrais”).
Por outro lado, a nudez aparece associada em muitos tratados alquímicos com as núpcias químicas como alusão à pureza dos elementos e à sua fecundidade. Poderá ser também uma alusão ao despojamento forçado a que foi forçado o “falso alquimista”, quando desmascarado dessa condição pelo monarca. Isso explicaria a corda ao pescoço e presa a um toco de árvores.

Mas, novamente, porque iria a admissão de um erro de escolha do rei surgir no seu túmulo? E, sobretudo, num túmulo decorado para exaltar os feitos do monarca?
A interpretação alquímica
É possível, portanto, realizar uma leitura alquímica do túmulo de D. Fernando. Mas a simbologia permite leituras múltiplas e alguns elementos decorativos podem remeter para elementos meramente artísticos (p.ex. as figuras monstruosas) ou para uma dicotomia Bem/Mal ou Inferno/Paraíso.
Um exercício de contrastes entre as numerosas referências feitas em local nobre (a cabeceira) a S. Francisco e os “monstros” infernais das laterais do túmulo ou a alusões a fases da Obra Alquímica (o casal alquímico de grifos, as figuras semi-humanas, com asas e corpos de dragões, os “homens verdes”, etc).
O argumento mais forte desta leitura esotérica (o “alquimista”) também permite leituras múltiplas, podendo ser um “físico” (médico) particular do monarca ou um alquimista.
A favor da segunda leitura está a nudez e a corda amarrada a um cepo que remetem para um elemento simbólico que só se justifica se se tratasse de uma referência a uma arte esotérica como a Alquimia.
Dirão alguns que, ao contrário do que sucedeu por exemplo com D. Afonso V, D. Fernando nunca exprimiu nenhum tipo de interesse pela Arte de Hermes, mas não que dizer que não tivesse sido um dos muito fascinados pela Alquimia na Idade Média – quer por motivos espirituais, quer por motivos financeiros (dadas as dificuldades monetárias do seu reinado), quer até por motivos de saúde, já que um dos produtos da Pedra Filosofal (por dissolução em álcool) era precisamente o Elixir da Longa Vida.
Seja como for, se D. Fernando se interessou alguma vez por alquimia não deixou testemunhos escritos deste seu interesse.
Os “homens verdes” e outras figuras fantásticas: o que mais está gravado no túmulo
No túmulo encontramos também vários “homens verdes”: figuras que possuem um profundo sentido esotérico na arte gótica – surgindo aqui, pela primeira vez, na arte portuguesa.
Especialmente comuns neste estilo, os “homens verdes” são figuras que surgem frequentemente no continente europeu e particularmente, em Portugal, na Arte Manuelina e, nomeadamente, na Sé Catedral de Lisboa. A figura tem óbvias origens pagãs e é referida no “Mistério das Catedrais”, escrito na década de 1920 pelo conhecido alquimista Fulcanelli, como uma alusão à “Prima Materia” de onde se podiam extrair todos os elementos necessários à produção da Pedra Filosofal.

Esta poderia, aliás, ser uma explicação para a presença na misteriosa capela de Rosslyn que visitei há mais de 20 anos e onde contei nada mais, nada menos, 103 “homens verdes”. É sabido que existe um rumor que a Pedra Filosofal se encontra oculta na cripta desta capela escocesa. A sua presença num túmulo onde está figurado um alquimista é assim natural e encontra assim a sua explicação.
Encontramos ainda diversas figuras fantásticas no túmulo: todas com possíveis interpretações dentro do quadro da gramática visual do hermetismo alquímico, tais como um casal possivelmente alquímico de grifos, entrelaçados pelo longo pescoço.
O grifo, em Alquimia, era usado como alusão a uma das fases finais da Obra em que através da decantação sucessiva de impurezas (terra) se sublimava (ar) até à perfeição “fixando o volátil” – em que as asas e pernas da criatura serviam de perfeita alusão.
O casal, representando por este entrelaçamento de pescoços valeria aqui pela união entre a figura masculina (“enxofre”/Sol) e a figura feminina (“mercúrio”/Lua) de onde surgiria a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. Outras figuras ou “monstros” aparentam ser criaturas híbridas: metade homem, metade animal (alguns alados) e erguendo – algumas – escudos e espadas – o que pode simbolizar a luta de contrários e a oposição Ar/Terra dos elementos alquímicos.

Na cabeceira, parte nobre do túmulo, encontramos uma referência ao “milagre da pedra” em que o santo retira água de uma pedra: naquilo que pode ser mais uma referência à Arte de Hermes numa figura que surge como uma possível alusão ao Alcaeste: um solvente universal usado pelos alquimistas numa fase dos seus trabalhos e que teria o poder de dissolver qualquer mineral.
O verdadeiro mistério é, de facto, o suposto alquimista. Mas temos um alquimista no túmulo de D. Fernando ou não? Diria que sim. Na dúvida: visite o Museu do Carmo e forme a sua própria opinião.
Para saber mais:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_I_de_Portugal
https://ensina.rtp.pt/artigo/o-tumulo-de-d-fernando-i-tambem-e-um-documento-politico/
https://www.museuarqueologicodocarmo.pt
http://ibex-portugues.blogspot.com/2016/12/alguns-detalhes-do-tumulo-de-d-fernando.html
https://multimedia201213.files.wordpress.com/2013/01/arqueologia-projecto-e-multimedia1-final.pdf
*Rui Martins nasceu em Lisboa, numa Rua da Penha de França, num edifício com uma das portas Arte Nova mais originais de Lisboa. Um ano depois já tinha migrado (como tantos outros alfacinhas) para a periferia. Regressou há 18 anos. Trabalha como informático. Está ativo em várias associações e movimentos de cidadania local (sobretudo na rede de “Vizinhos em Lisboa”).

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição: