Para Zenildo Tavares Guilherme, o skate foi uma luta. Os pais tinham medo que se magoasse. A mãe chegou a partir-lhe um skate quando, um dia, o apanhou a praticar às escondidas. Mas para ele não havia alternativa: as tábuas e as rampas eram uma paixão e queria fazer delas vida.
Hoje, é skater profissional, atleta de alta competição e está em boa posição para se qualificar para os Jogos Olímpicos de 2024, que vão realizar-se em Paris.
O angolano, criado em Belas, na Linha de Sintra, é o primeiro atleta a representar a Seleção de Angola em provas deste calibre. A 9 de setembro, ruma a Lausanne, na Suíça, para mais uma etapa de qualificação para as olimpíadas. Está em segundo lugar no ranking africano, sendo que o continente deverá conseguir apurar três atletas para a competição mundial.
“É o meu grande objetivo”, diz o skater de 26 anos. “Ir aos Jogos Olímpicos é fazer história e só isso já seria… Posso cair, posso falhar, posso nem ficar, mas estou aqui.”
A pressão do futebol e o amor proibido pelo skate
Nascido em Angola, Zenildo — que também responde por Zé — chegou a Portugal com três anos. O pai era eletricista, a mãe cozinheira. Vieram com Zé e o irmão dois anos mais velho, Álvaro. Cá haveria ainda de nascer a irmã mais nova.
O pai, amante de futebol, não tardou a inscrever os dois rapazes na modalidade. Álvaro até gostava, mas Zé sentia a pressão de ser obrigado a andar ali. Afinal, aquela era a paixão do pai, não a dele. “O meu pai comprava-me grandes equipamentos, era muito viciado no Real Madrid, e quando saíram as [chuteiras] Total 90 — aquelas vermelhas — ofereceu-me, mais o equipamento branco do Real. E eu fiquei: OK, mas não é isto que eu quero.”
Com nove ou dez anos, descobre o skate: tinha vizinhos e colegas de escola que andavam de tábua debaixo da mão. Foi quando decidiu experimentar. “Não senti logo que tinha jeito, mas senti que era a minha cena. Sempre fui muito de arriscar, de adrenalina para a frente e ‘bora lá. Então comecei a andar.”



Fotos: Rita Ansone.
O irmão lá lhe arranjou um skate para Zé ir explorando a sua nova paixão.
“Eu andava às escondidas, fugi várias vezes dos treinos de futebol para andar de skate. Uma vez a minha mãe apanhou-me e partiu-me o skate. Éramos miúdos, ninguém pensava que aquilo era uma profissão, os meus pais não conheciam aquele mundo. A minha mãe tinha algum medo que eu me magoasse a sério. O meu pai era mais: vai jogar à bola e deixa o skate.”
Contudo, a falta de apoio inicial dos pais não o demoveu nem por um segundo.
“Foi giro porque comecei a ir a campeonatos às escondidas.”

Participou numa primeira prova em Massamá, quando tinha apenas 11 anos. Era uma pequena competição organizada por uma loja local ligada ao skate.
“Fui e ganhei umas coisas. Mas também ganhei porrada. Era miúdo, era meia-noite e tal e a minha mãe sem saber de mim… Tinha ido a pé de Belas até Massamá e não atendia o telefone. A minha mãe ficou muito chateada, mas viu que eu trouxe algo e ficou: ganhaste um prémio?”
Prova atrás de prova, Zenildo Tavares Guilherme foi conquistando mais troféus, acumulando experiência e conhecimentos na área.
“A minha mãe começou a acreditar mais na coisa: ‘se tu gostas de fazer isso, faz, mas tens que tirar boas notas na escola’. E nunca reprovei, foquei-me na escola e consegui conciliar as duas coisas.”
Por volta dos 14 ou 15 anos, participa numa prova na Ericeira que mudaria a sua vida.
“Nesse campeonato fiz imensas manobras, estava sempre a conquistar os best tricks, ganhei dinheiro e prémios, e eu não sabia mas estava lá a equipa da Insight, que na altura era uma das grandes marcas mundiais de skate. Vendiam em todo o lado, eram gigantes. E estavam à procura de alguém para entrar na equipa. No final perguntaram-me: ‘és patrocinado por alguma marca de roupa?’ Eu disse que não. E eles: ‘OK, a partir de hoje, se quiseres, estás connosco’.”
O amadurecimento no skate e a chegada a Angola
O interesse de marcas patrocinadoras só o “motivou” ainda mais para andar de skate. “Nessa altura adorava fazer skate na rua, em corrimões e escadas altas. Comecei a mostrar mais essa minha vertente. Depois comecei a trabalhar com a Vox e a Afends, entre outras marcas.”
Foi participando em mais provas — e provas cada vez mais importantes. Ficou amigo de outros nomes relevantes do meio, começou a tornar-se um atleta mediático dentro do circuito.

Algum tempo depois, já adulto, foi convidado para fazer demonstrações de skate de norte a sul de Angola. Nessa altura, o pai tinha voltado para o seu país de origem, onde tinha aberto uma empresa no setor da construção civil.
“Aí ficou a certeza de que um dia iria representar Angola nos campeonatos. Eu sou tão português quanto angolano, vivo as duas culturas e elas são muito próximas. Mas tive o sonho de ser o primeiro a representar a seleção angolana como skater. Acima de tudo queria dar força às crianças angolanas, ser uma influência boa, mostrar que o skate também é uma profissão — não é só o futebol ou o basquetebol.”
Os pais, naturalmente, sentiram orgulho. “Infelizmente, perdi o meu pai há dois anos, mas acho que ele estava muito orgulhoso. Estava com ele em Angola quando fui assinar o contrato e foi muito gratificante. Desde que começaram a ver-me receber caixas de ténis e roupa perceberam: este rapaz não está a brincar, isto é algo sério. Viram que fazia todo o sentido eu continuar a fazer isto.”
Hoje, Zenildo sente uma “pressão e uma responsabilidade enormes” por representar Angola nas competições de qualificação para os Jogos Olímpicos — o skate só é modalidade olímpica desde 2021 —, onde compete contra os melhores skaters do mundo. “A partir do momento em que tive familiares meus em Angola a ligarem à minha mãe porque eu tinha passado na televisão e na rádio…”
Estreou-se este ano em prova no Dubai e depois esteve em Roma.
“Estava nos treinos e aparece a equipa toda da embaixada angolana para me conhecer, mais o cônsul, a dizer: tu és o nosso pioneiro. Quando ele me disse isso, fiquei ‘meu Deus do céu’, liguei para a minha mãe e ela começa a chorar.”
Além dos Jogos Olímpicos, o grande objetivo de Zenildo é construir escolas em Angola para “desenvolver lá o skate com as crianças”.
Um empreendedor e criativo nato
Mas a vida de Zenildo Tavares Guilherme não se resume às competições — nem sequer ao skate. Num desporto tão ligado às marcas e a um estilo de vida com uma forte subcultura artística associada, também ele tem a sua própria marca, fundada há vários anos como um projeto de amigos ligados ao skate.
A Ementa começou com peças vendidas de mão em mão, passou para o digital e neste momento já tem duas lojas em Lisboa: uma perto do Cais do Sodré e outra na Lx Factory, em Alcântara. Planeiam abrir mais espaços em breve e exportam para todo o mundo, além de terem artigos à venda em diversos países. Só em França, vendem em mais de dez lojas. E, claro, também eles patrocinam skaters.
“A Ementa é família, para mim é casa. Com o tempo passou de um projeto de amigos para algo mais estruturado. Cresci com eles e estamos todos a lutar por isto”
diz Zé.
“Os meus amigos fazem isto da vida: é andarmos de skate e trabalharmos todos na marca. Temos um armazém gigante com um sítio para andar de skate, onde guardamos os produtos e fazemos desenvolvimento de marca. É o nosso escritório e showroom.”


Zenildo Guilherme frisa que nunca teve vontade de “trabalhar para outros” e que sempre preferiu “arriscar”. Daí que explore tantos interesses em simultâneo. Fez vários trabalhos enquanto modelo e aprecia a área do design de moda — aliás, é o único skater que conhece que só usa ténis quando está em cima das tábuas. De resto, prefere botas ou sapatos.
Na faculdade, estudou design industrial, enquanto trabalhava num restaurante. Era empregado de mesa do Rabo d’Pêxe, aclamado restaurante de sushi no Saldanha, e foi rapidamente promovido a responsável de sala e dos vinhos. Zenildo fez um curso de sommelier de quatro anos e planeia também, um dia, abrir “um espaço onde possa vender tapas, enchidos e vinhos”.
“Porque é que não posso ir ao meu limite? Porque é que não posso explorar mais de mim? Sempre tive essa perspetiva de querer aprender e fazer mais.”
E por isso é que também se envolveu na música, inspirado por um tio angolano artista de semba, pelos amigos com quem cresceu, como o célebre rapper e produtor T-Rex, mas também pelo irmão artista, que tinha em casa vários softwares de criação de música e que hoje é pintor a tempo inteiro em Berlim.

Zé, cuja primeira banda, na adolescência, se chamava The Storytellers e se dedicava ao indie rock, tocava guitarra e continuou sempre a compor e a cantar nos tempos livres. Agora lançou-se na música como ZIIGY, com uma sonoridade afrobeat, inspirado pelos grandes artistas pop da Nigéria, como Burna Boy, Wizkid ou Rema.
No início de agosto, apresentou o primeiro single, “My K’ueen”, declaradamente inspirado por uma antiga paixão. Fará parte de um EP, “LIL” (“Lust in Love”), a editar em setembro.
“Misturo o português, o inglês e os dialetos angolanos na minha música. Tenho tido um ótimo feedback com o meu primeiro single, até já está a tocar numa rádio nigeriana”.
Se a música correr bem e for para fazer a sério e conciliar com o skate, é isso que fará.
“A vida é só uma, por vezes perdemos muitas oportunidades e eu só quero aproveitá-la. Treino de manhã, vou para a loja ou para o escritório, ando de skate e depois vou para o estúdio. Em 24 horas dá para fazer muita coisa. O que não faz sentido é estar parado.”