Rock in Rio Febras

Este verão prometeu-nos um drama: ia acontecer o Rock in Rio Lisboa contra o Rock in Rio Febras, o combate do século! Num canto do ringue, um festival com o peso da fama pelo mundo fora; no outro canto, um festival com o bom sabor da bifana numa pequena aldeia minhota.

Quem iria ganhar?

A notória desigualdade de forças começou por prognosticar um inevitável desfecho. Ganharia o mais forte.

Depois, instalou-se a dúvida em alguns. Vieram à memória acontecimentos passados que legitimavam a expectativa.

Já há muito o pequeno Astérix nos tinha mostrado que as guerras não são medições de pilinhas, às vezes até a grande Roma murcha. E acontecimentos recentes têm legitimado ainda mais a dúvida: todos os dias vemos Putin a aprender que tanto tanque não é necessariamente argumento.

Então, uns quantos já apostam: também em festivais de música de verão o tamanho não é documento.

Chaplin entra na história

Leitor, e se em vez de dar já a taça, a um ou a outro, fizermos o esforço de compreender melhor o assunto?

É por aí que esta crónica vai, enquadrando o famigerado Rio contra Rio nos tempos modernos. Falo de Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, filme de 1936, ainda quase todo mudo e com os gestos poéticos que foram sempre os de Charlot.

O filme abre com um cartaz, advertindo sobre o que se vai ver: “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca da felicidade.” O enredo é, pois, sobre o eterno combate entre os grandes e os pequeninos.

Primeira cena de Tempos Modernos, seis horas da manhã, um magote de carneiros que se transforma em rebanho de operários a entrar numa fábrica. Logo nos primeiros minutos aparecem as célebres imagens da linha de montagem de Charlot.

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Naquela que vai confirmar-se uma das mais conseguidas performances da história do cinema, Charlot, corpo frágil e de olhos doces, transforma-se em peça da máquina, também ele submetido às leis da biela manivela. O tapete mecânico rola cada vez mais depressa e, no mesmo ritmo, Charlot manipula a chave de parafusos. O homem gentil desaparece, comido pela engrenagem.

Breve pausa no trabalho. Já sem a sua chave de parafusos, Charlot é tomado por espasmos mecânicos, olhar alucinado. Ele já não era ele, era um robô.

Na pausa, Charlot consegue recuperar um pouco da dignidade humana, coça-se e fuma, mas logo é chamado de volta à realidade. Os patrões são omnipresentes e, em holograma (o cinema foi sempre precursor!), o diretor da fábrica aparece ao operário e ordena que regresse ao trabalho. A curta pausa acabara.

Tempos Modernos é um maravilhoso relatório filosófico sobre o eterno combate entre poderosos e desapossados. Por ironia, no ano que o filme saiu, a realidade parecia menos sombria que o cinema. Foi em 1936 que a França da Frente Popular votou as férias pagas. Pela primeira vez no mundo, os operários tiveram alguns dias para se coçar, fumar e até partir para a praia – e ganhando salário durante a preguiça.

Aliás, também o pessimismo inicial do filme de Charlie Chaplin é vencido nas cenas finais. Charlot e a namorada arranjam emprego num cabaret e Charlie Chaplin põe o seu personagem a cantar. Charlot ensaia uma canção, mas esquece-se da letra. Apavorado, com os olhos ele procura a namorada… Ela, dos bastidores, responde-lhe: “Canta, não ligues às palavras!”

Então, ele canta Nonsense Song (“Canção Sem Sentido”) e acontece o teto da Capela Sistina, a maçã de Newton, a menina “come chocolates, pequena”, de Pessoa…

Os versos são disparatados e de língua nenhuma, uma algaraviada, mas comovente: “Si bella giu satore/ Je notre so cafore/ Je notre si cavore/ Je la tu la ti twah/ Vai mazé dar banho ao cão/ La spinash o la bouchon…” Não liguem às palavras, não as há, é só um daqueles momentos em que o que somos é ser deuses.

A cena, dura menos de 5 minutos, e pode ver aqui:

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Como Charlie Chaplin explicou há quase cem anos, o mundo é feito, de um lado, por uns que querem sempre mais, e mais, e quase tudo. E, do outro lado, por poetas que põem uma pedrinha na engrenagem.

O que agora se repete é só mais uma versão desse eterno combate, o dos grandessíssimos e o dos pequeninos. Mas não é um combate entre iguais. E não, o facto do Rio 1 e do Rio 2 trabalharem no mesmo ramo de negócio, o dos festivais de música, não os equipara.

Não teremos este verão o combate do século, entretanto uma solução pacífica foi encontrada. Mas o assunto merece ser detalhado, para vermos a soberba dos grandes ou, neste caso, a de seus funcionários incompetentes. E vermos que os pequenos não merecem ser tomados por tolos. Às vezes, além de oferecer um festival, os de baixo dão baile.

Advogados montam um festival de tolice

Há dias, os advogados da empresa Rock in Rio Lisboa notificaram o Rock in Rio Febras, ordenando que este mudasse de nome. Com as palavras os advogados não brincam. É a forma de eles, sem levantar a voz, ameaçarem.

Deixem-me apresentar os dois adversários, concorrentes não se sabe bem em quê. A diferença de peso é notória. De um lado, o Rock in Rio Lisboa. É um dos maiores festivais de música do mundo. Produz-se desde 1985, é sucesso gigantesco, milhões de espectadores, vários palcos, enormes fast foods, shoppings com dezenas de lojas. Até hoje, 22 edições acontecidas no Rio de Janeiro, em Lisboa, em Madrid e Las Vegas.

Na primeira edição, no Rio de Janeiro, esteve Freddie Mercury, o vocalista dos Queen. Só para o ver passar, uma multidão de artistas famosos (Erasmo Carlos, Elba Ramalho, Rita Lee, Ney Matogrosso…) encheu de gritos o corredor que dava para o camarim da lenda. O Rock in Rio nasceu assim, célebre.

No ano passado, na edição do Rock in Rio Lisboa, de regresso a Portugal depois da covid, uma sócia do escritório de advogados Gomes da Silva & Associados contou como eles assessoram o festival: “Cerca de dois meses antes, a nossa equipa de advogados ‘vive’ no Parque da Bela Vista.”

Quem ouviu isto convenceu-se que os causídicos afinam os contratos, dão música às pautas legais e esperam o momento perfeito da assinatura no notário com cuidados idênticos aos que Maria Callas dedicava à sua entrada na ária Casta Diva, no primeiro ato da Norma, de Bellini.

Ainda segundo a doutora, a excelência jurídica é o segredo da máquina do Rock in Rio, que assim, disse ela, se tornou “mais que um simples festival de música”.

Do festival eu diria que é bom, da vez que lá fui, gostei. Da sua equipa de advogados não sei ainda se é “mais que uma simples equipa de advogados de festivais de música”. Sabê-lo-ei, espero, quando analisarmos se foi com cuidados de artista que os advogados do Rock in Rio Lisboa programaram a notificação que entregaram ao Rock in Rio Febras.

Agiram com inteligência, ou, no diálogo com o pardalito adversário, usaram bala dum-dum para matar elefantes, como a ordem de mudar de nome, que já conhecemos, indicia?

O outro lado, o do pardalito   

Apresento agora o Rock in Rio Febras, que surgiu pela primeira vez em 23 de julho de 2022. Se o grande festival tem décadas, o Rio Febras só festejará o primeiro aniversário no próximo fim-de-semana. A estreia aconteceu num palco pequenino, onde nem caberia a equipa da Gomes da Silva & Associados – Sociedade de Advogados, caso esta quisesse atuar fora da sua especialidade em marcas e patentes.

É que, por acaso, existe mesmo em Lisboa um festival de música de advogados. Chama-se o Rock’n’Law, brilhante fórmula que junta o género musical, rock, com a palavra em inglês law, lei. O que define logo o propósito do festival: juntar aquela música e advogados. Ao mesmo tempo a marca soa como a palavra com que aquele estilo musical se lançou no mundo: rock ‘n’ roll…  Rock’n’Law, rock ‘n’ roll. Bonito para os ouvidos.

E bonito na generosidade. O Rock’n’Law nasceu em Lisboa, em 2009, e todos os anos faz o seu espetáculo. Saltam bandas de advogados para o palco e angariam fundos. Números impressionantes: 880 mil € angariados e 21 apoios a projetos de solidariedade. O Rock’n’Law tem este ano 14 sociedades. Quase todos os grandes escritórios lisboetas estão lá. A Gomes da Silva & Associados – Sociedade de Advogados por acaso não está.

Em 2020, os advogados do Rock’n’Law fizeram sua a causa dos artistas de música a quem a covid tirou o trabalho.

Em 2023, o trabalho de outros advogados, a equipa do Rock in Rio, foi tentar tirar o prazer dos músicos do Rock in Rio Febras. Isto não é por causa de um ‘n’ ou de dois in, é por causa da vida ser mesmo assim.

Deixemos os poderosos Gomes da Silva & Associados, e voltemos ao festival do Rio Febras. Além de ter o palco pequenito, sabe-se também que na sua estreia, no ano passado, não houve a confusão de celebridades da estreia do Rock in Rio, em 1985. Não houve ajuntamento no corredor do camarim dos icónicos Les Dirty Two, da vila vizinha das Taipas, nem no doutros roqueiros da região que lá apareceram. Digo-o garantidamente porque no festival de Rio Febras não havia corredores, quanto mais camarins.

A eletricidade e a água foram fornecidas pelos vizinhos, que não cobraram nada. As entradas eram tão grátis que nem existia bilhete, era entrar, malta.

Como dizia o cartaz de 2022: “Começa às quatro da tarde e acaba até a GNR aparecer”. Era tudo sincero e enxuto. Beneméritos da freguesia serviam cerveja (finos, como se diz a norte do Mondego) e temperavam febras, cuja receita – não do tempero, mas o parco ganho – foi para o centro de dia da Casa do Povo.

Um peregrino inglês, que ia a caminho de Santiago e entrou por acaso na festa, perguntou a uma benemérita como se chamava a sandes de febras. Porque era noite e era sábado e ela se lembrou do Saturday Night Fever, filme que vira no São Mamede, cinema de Guimarães que já fechou há muitos anos, a moçoila traduziu as febras que tinha na mão. “Fever”, disse ela ao tresmalhado peregrino.

Essa breve alusão ao John Travolta passou a ser a única coisa envolvendo famosos que aconteceu naquela primeira edição do festival Rio Febras, 2022. Fora isso, foi uma noite em que ninguém ficou a dever nada a ninguém, exceto um dia bom.  

Com o estrondoso sucesso, os ambiciosos carolas decidiram repetir o Rock in Rio Febras já este ano, marcando-o para a noite de 22 de julho próximo. Consta que um jovem local, estudante do segundo ano de Direito em Coimbra, chegou a decretar que o Rock in Rio Febras “já era mais que um simplório festival de música”.

Mas peço ao leitor alguma prudência em divulgar esta notícia, porque quando as guerras são declaradas, já se sabe, logo chovem os boatos e as contrainformações.

Rocks e pedras rolantes, enfim, rio Febras

Dito isto, passemos ao como chegar às duas partes em conflito. Assumo que vou dar mais destaque a uma das partes que à outra.

Do festival Rock in Rio Lisboa, vocês já sabem: para lá chegar, Rio de Janeiro, Lisboa, Madrid ou Las Vegas têm aeroporto. Alguns artistas e espectadores chegam em avião particular.

Já o festival Rock in Rio Febras atrai, num raio de 15km, toda a rapaziada com motociclos de mais de 50 centímetros cúbicos até ao Parque Fluvial de Briteiros, do outro lado da rua, no passeio da Casa do Povo, do café Ponte Nova (churrasqueira) e do multibanco.

Este último poderá ser uma poderosa mais-valia, caso Marcelo apareça de surpresa e arraste os jornalistas ao lugar ideal para passar uma mensagem enigmática sobre este momentoso caso dos festivais.

Rock in Ro Febras no ano passado. Foto: DR

Para o público em geral, compete-me ainda dar informação complementar sobre a geolocalização. Como acontece em todos os conflitos, a única coisa boa que se ganha nas guerras é uma maior ciência em geografia – por exemplo, hoje sabemos onde é o Donbass e que Kiev, afinal, deve dizer-se Kyiv. Agora, com o conflito dos festivais fluviais, muita gente já ficou a saber que o Rock in Rio Febras é em Briteiros, a dois passos da Citânia.

Isto é entre os rios Cávado e o Ave, no Minho granítico, perto do mais antigo lugar onde se estuda um castro ibérico e a cultura castreja, povoamentos de há mais de dois milénios e meio. É natural, pois, que além de tantos rios à volta, um festival de rock se faça entre tanta pedra, tanto quartzo, feldspato e mica, juntinhos e duros. Não esqueçamos, o bom rock até gerou pedras rolantes (rolling stones, em estrangeiro).

Portuguediz que diz tanto em bom português

Eis o itinerário que proponho. Parte-se do Parque Fluvial de Briteiros, no centro da freguesia de São Salvador de Briteiros. O trajeto é curto, de carro leva dez minutos. Convém que o automóvel tenha bom sistema de som para compensar o tão pouco tempo para ouvir o solo de guitarra de Jimmi Hendrix a encerrar o festival de Woodstock em 1969.

Vai-se pela nacional 309, sobe-se pela Serra dos Picos, há muitas curvas, e passa-se pela saída para a Citânia de Briteiros sem nos desviarmos. Mas na placa que diz “Portuguediz”, vira-se à esquerda, encosta-se e estaciona-se. Logo que não se venha em caravana de festivaleiro, há lugar (para três carros).

Pronto, chegámos ao badalado festival. Quer dizer, não chegamos, isto é tudo simbólico, como o Jimmi Hendrix. O festival é lá em baixo, de onde acabámos de partir de automóvel, cinco minutos antes. Agora, em Portuguediz, descemos em sentido contrário. E tem de ser mesmo só a pé, pela Rua dos Moinhos, calçada empedrada, não há outra maneira. Pedra aqui, pedra ali, rock, rock… Nunca um festival de rock da pesada se fez anunciar de forma tão substantiva e literal. Ao fim de muita caminhada, desagua-se no tal Parque Fluvial de Briteiros.

Não precisávamos, talvez, de ter ido pela nacional 309 e subir a Serra dos Picos. Bastava ter ficado logo no centro de Briteiros, onde, repito, é o festival. Mas fiz de propósito em dar aquela volta por cima, para, descendo, vos apresentar ao Rio Febras, na sua importância, utilidade, pequenez e beleza, para lá do seu nome bizarro.

O outro festival litigante tem, na relação com a palavra rio, o Tejo em Lisboa, o Manzanares em Madrid, é parte do nome da cidade fundadora (Rio de Janeiro) e até a desértica Las Vegas tem um casino chamado Rio.

Mas o outro festival tem o Febraz, tem mesmo. O rio. É um fiozinho de água, não há um mapa de Portugal, ou no Google, que o pinte a azul. Boa parte dele está escondido por bouças por roçar.

O imenso Tejo mede 1100km, mas fica longe de onde se faz o Rock in Rio, em Lisboa, que é no parque da Bela Vista, sem rio. Para chegar dali à mais próxima margem do Tejo, no Cabo Ruivo, tem de se sair do festival e fazer 4,7km, e de música só levamos com as buzinadelas do trânsito.

Ora naquela descida do Febras já referida – também comprida de 4,7km (há coincidências danadas nas guerras, por isso elas dão boas histórias) – o rio entra e atravessa por onde o seu festival acontece.

Parece-me que, nisso, o Rock in Rio Febras marcou um ponto contra o adversário. É sempre “in” onde diz que acontece. Já o outro, além de causar confusão no sujeito, a marca fala de rio ou cidade, é desleal com esta. O Rock in Rio, ora está lá, ou pelo mundo fora. 

Acresce ainda que no seu percurso, o Febras canta enquanto bordeja moinhos, som adequado para quem vai para um acontecimento musical. Lembra os poemas bucólicos de Sá de Miranda, que morreu ali perto, em Amares, e escrevia versos assim: “Do tempo em tal estação que costumava ser fria/ Esta água que d’alto cai acordar-me-ia…” Seria água do Febras?

E por falar no poeta, este era irmão de Mem de Sá, que foi tio de Estácio de Sá. Fiquem a saber que este último foi o fundador do Rio de Janeiro, em 1565. Quer mesmo o outro festival ir a tribunal e invocar ser mais antigo? Além do lugar, mais exato, o festival do Rock in Febras ganha vantagem se for preciso arranjar argumentos sobre a marca mais antiga.

Enquanto alguém pensa se mete o processo, ou não, deixo um vídeo do nosso colega Notícias das Taipas com o rumorejar do Febras: 

O som é fundamental num festival de música, certo?

O som incessante que se ouve ao descer de Portuguediz é do Febras. Durante séculos ele alimentou dezenas de moinhos e outros tantos moleiros a moer a bolota e o milho e criar-se o pão. Oiçam o Febras, e lamentem por quase todos os moinhos com que nos cruzamos serem já ruínas, como se não fosse urgente termos essa memória.

O Febras alimenta-nos a vida e os jovens do festival Rock in Rio Febras têm mais que direito, têm a obrigação de no-lo lembrar.

Os jovens juntaram o nome próprio Rock in Rio ao nome antigo e familiar, Febras, uma causa magnífica (uma boa definição de família: o que une de laços afetivos as pessoas da mesma casa).

O nome inteiro “Rock in Rio Febras” (apetece chamar-lhe Rockinho) pode ser uma questão jurídica para advogados de palheta, mas é um nome com toda a legitimidade. É como Charlie Chaplin fez em Tempos Modernos, fazer de conta que canta sem sentido, quando o que ele canta diz tudo. Os Charlot desta vida são o sal da terra, a esperança.

Outro pormenor, passar por Portuguediz também diz tudo, porque esta história mete muita semântica. Semântica, conhecimento da língua, e também respeito por ela. Silabo: Por-tu-gue-diz. Uma história com um lugar com esse nome alerta-nos para a atenção ao que em português se diz.

Vamos lá então ouvir a palheta

Situados onde moram os beligerantes, passemos à guerra que alguns quiseram para este verão. Tudo começou quando a Gomes da Silva & Associados – Sociedade de Advogados comunicou ao Rock in Rio Febras (nascido em 2023) que tinha de mudar de nome. Alegou uso indevido da marca e até concorrência desleal ao Rock in Rio Lisboa, que já cá estava.

Se um festival já havia, era mais antigo, logo o outro, com nome (absurdamente, digo eu) confundível, tinha de meter a viola elétrica no saco e apagar os microfones. E a bateria também? Também, tudo.

Tese: em tudo que soe a festival quem passou primeiro pelo notário é dono disto tudo. Disseram os causídicos. 

Isto na lógica de gente comum é facilmente rebatível. O Santuário do Sameiro – também vizinho o Febras – construiu o seu pedestal em 1863. Só mais de meio século depois, em 1917, uma senhora vestida de luz resplandecente apareceu, numa azinheira, a três pastorinhos. Porque trabalham ambos no mesmo ramos dos milagres, é legítimo que se acuse de concorrência desleal o Santuário de Fátima, e se obrigue este a mudar de nome?

Esta questão já fez jurisprudência há muito e quem a ditou de forma definitiva foi Groucho, dos Marx Brothers (cinco irmãos, que faziam filmes desde 1905). Quando Groucho fez Uma Noite em Casablanca, quem primeiro invocou a tese foram os estúdios da Warner Brothers (fundada por quatro irmãos, em 1923), que quis proibir aquele título, por a Warner já ter um filme chamado Casablanca. Mas Groucho arrumou o assunto, assim: “E nós não somos Brothers (irmãos) há mais tempo que vocês?”

Ou como diria o outro, também humorista: “Si bella giu satore/ Je notre so cafore/ Je notre si cavore/ Je la tu la ti twah/ Vai mazé dar banho ao cão/ La spinash o la bouchon…” Os estúdios Warner Brother perceberam a mensagem, foram dar banho ao cão.

Mas isso, admito, é para gente comum, com inteligência real, isto é, com capacidades de lógica, comunicação e controlo emocional. Já os papagaios mecânicos com a inteligência artificial de leitores de marcas registadas têm um alfabeto de letra única, com a mania das grandezas de ser sempre em maiúscula, mas a pequenez de estar encafuado num círculo: ®.

Os advogados do Rock in Rio Lisboa não perceberam que os seus clientes, exatamente por serem imperiais, o César dos festivais de música, deviam ter o cuidado da mulher do Júlio: além de ser, tinham de parecer. E não foram grandes, pareceram mesquinhos. Falar de “concorrência desleal” do gentil e generoso Febras foi ridículo. Sugerir que o nome do mega festival e o do festival modesto confundam “o cidadão incauto” é insultuoso pra todos nós.

Rio Febras salva o Rock in Rio

A ameaça de processo por causa de confusão dos nomes dos festivais é converseta convincente só para os funcionários que carimbam o tal ®. É de tal modo absurdo o argumento de o simpático Rio Febras prejudicar o poderoso Rock in Rio, foi chacota que só pecou por ter sido só risada nacional. Devia também ter chegado, pelo menos, ao Rio de Janeiro, a Madrid e a Las Vegas

Mais grave, se a ameaça bacoca de processo chegasse a tribunal, havia o risco de irritar um juiz de bom senso (não se fiem que nunca os há).  Essa probabilidade de perder em tribunal seria tremenda para o Rock in Rio Lisboa. Vejam só se fosse ele a perder o “’in”! Talvez o festival universal fosse obrigado, é um supor plausível – juristas, não me chateiem, não fui eu que trouxe para aqui o absurdo como língua franca – talvez o “Rock in Rio Lisboa” tivesse de ser traduzido para a língua portuguesa. Transformar-se numa marca como em Portuguediz, perdão, como em português se diz. Se fala e escreve no Brasil e em Portugal.

Reparem, a cidade Rio de Janeiro, aludida na Marca, é topónimo com género no nome, mas Lisboa não tem género. Então, porque fica chato fazer erros de gramática nas marcas, tinha de ser assim: “Rock no Rio e em Lisboa”. Além de mais longo, confuso. Mas não era isso, confusão, que a Gomes da Silva & Associados – Sociedade de Advogados queria evitar?

Já o festival Rio Febras estava-se nas tintas – e está, como provou – por perder o “in” e de mudar de marca. Até lá, na terra dele, onde ele é famoso e querido, já acontece há séculos trocarem-lhe o nome. Às vezes chamam-lhe Rio da Várzea, outras, da Agrela, e ainda de Briteiros – e ele nunca mudou o seu de curso de água ou ficou enfadado. Nem, que conste, meteu processo em tribunal. Outra gente, civilizada.

Quando surgiu este escarcéu, quem percebeu que para ameaças parvas, respostas piedosas, foram os rapazes do Rio Febras. No início, quando os vi agarrados à barriga, ombros a tremer, a limpar as lágrimas de riso, a dizer frases sincopadas: “Eheheh… concorrência desleal… eh, eh, logo nós… ehheheh… Rio e Lisb… eh, eh… com med… eh,eh… do Febras…” Ainda temi que o festival 2023 em Briteiros podia cometer a asneira tremenda de manter o nome. Quer dizer, deixava cruelmente que uma instituição honesta como é o Rock in Rio Lisboa caísse no ridículo.

Felizmente, repito, aquilo é gente castreja, tesa, como as pedras, as rochas e um riozinho que nos lava a alma. E foi assim que eles fizeram: “Querem o in do Rock in Rio, é? Fiquem lá com ele.” Nem uma interjeição abaixo de Braga, o que é notável vindo de quem é dos arredores de abaixo de Braga.

Como se aquele festival precisasse de andar à cata de nome, marca ou imagem! Falta um nome novo? A uma dúzia de quilómetros fica Póvoa de Lanhoso, terra da Maria da Fonte. Imaginem só o que até podiam escolher: “Festival Maria da Fonte”. O ícone feminino, desta vez com sainete democrático e modernaço, a empunhar, em vez da gadanha, uma guitarra elétrica! Elis Regina, que morreu antes do primeiro Rock in Rio, adoraria vir ao Minho. Os cabrais borravam-se todos (ide ouvir o Vitorino a cantar o Hino da Maria da Fonte e percebem).

Mas Briteiros escolheu, e também bem, mudar o nome para Festival Rock Que Acontece Perto do Rio Febras. Extenso, mas nominho querido. Contra a sobranceria de outros, os jovens de Briteiros tiveram a humildade de se definirem assim, “acontece perto”, quando agora já todos sabemos que eles vivem, não é perto, é mesmo com o Rio Febras entranhado.

Sossegado por ver sanado um conflito em que ficava mal na fotografia, o Rock in Rio Lisboa saudou os “amigos” do Rio Febras e desejou-lhes “de coração o melhor ao vosso festival.” Uf! Em Portuguediz, mais uma vez, todos entenderam o que não foi dito mas era o que se queria dizer: “Obrigado, salvaram-nos de boa…” 

Febras e feijão fradinho

Resumindo, no ano passado, o festival era grátis para o público e gratuito continua; mas os organizadores, por segurança, têm de arcar com o trabalho de fazerem passes de entrada. A fama inesperada impede as portas abertas. De resto, beneméritos a vender cerveja e a temperar as carnes. E um orgulho ao peito, uma t-shirt a dizer “Eu Ajudei”, com receita, como de costume, para o centro de dia da Casa do Povo.  

No sábado, 22, atuam os Ledher Blue, os smartini, Segundo Minuto, os GASPEA, as Crocky Girls (as da Missa do Galo), Pedro Conde, Juanito Caminante (a mais longa das viagens começa no Rio Febras…), Gordilho, Berto e Quarta às Nove, tudo gente da terra e arredores próximos. Nos intervalos oiçam o fiozinho de água.

Tudo acaba bem, mas fica uma sensação de faltar qualquer coisa… Esta é uma história como a de Charlot e Groucho Marx, em que o pequenino levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Mas não pode o grande, habitualmente abusador, mostrar-se generoso? Nem um bocadinho?

No ano passado, um dos cabeças de cartaz do Rock in Rio Lisboa foram os The Black Eyed Peas. Grupo americano famosíssimo em Portugal desde o mega êxito I Gotta Feeling, que foi o hino da seleção portuguesa de futebol, no Mundial de 2010, na África do Sul. Ora, aqui está como a Gomes da Silva & Associados se pode redimir da confusão dos festivais 2023. 

Bastaria ir ao contrato passado com os The Black Eyed Peas e convencer o segundo contraente (os músicos) que, além da exibição deles em 2022, em Lisboa, também teriam de participar, no verão de 2023, num festival fora de Lisboa, em local a indicar pelo primeiro contraente (Rock in Rio Lisboa).

Encontrar, numa alínea dúbia, a obrigação de cumprir o que quer que seja, seria fácil para uma mais que uma simples equipa de advogados de festivais de música. Então, no próximo sábado, depois de todas vedetas das freguesias à volta já terem abrilhantado, e meia hora antes de chegar a GNR, acontecia juntar o nosso festival preferido aos Black Eyed Peas, isto é, Febrase Feijões Fradinhos.

Claro que isto não vai acontecer. No eterno combate grandes contra pequeninos ter humor não é cena que assista a uma das partes.


Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.


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1 Comentário

  1. Ferreira Fernandes, sobre o Festival de Rock que acontece perto do Rio Febras, mostra que a ironia é uma arma de destruição maciça. E o Português é um excelente bacamarte a disparar tão grossa munição… Bem haja, FF!

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