Depois de apanhada, e ainda que a Teresa o negasse, já ninguém tinha dúvidas: matou a irmã gémea porque a achava mais gira do que ela. Eram as duas jeitosas, e não se pode dizer que uma fosse melhor do que a outra porque eram exactamente iguais. O cabelo loiro era o mesmo, o queixo firme também, e ambas tinham um quê de porte de estátua a pedir o lápis de carvão do DiCaprio no Titanic.

Não se tinham voltado a ver depois dos nove meses em que juntinhas tinham sido uma só no útero. Depois também a enfermeira veio a confessar tudo, nisto que foi um caso de polícia, Correio da Manhã e segredinhos em Alfama. É que a enfermeira Rosa era de lá. Levantava-se todos os dias às sete para tratar da vida e do trabalho, ia para o hospital como quem se agarra a madeira no naufrágio, e voltava de lá como chumbo atirado para um rio – caído até ao fundo.

Podíamos ter começado com “Era uma vez uma enfermeira estéril que trabalhava na Obstetrícia”, mas irmãs à bulha tem menos drama e bem mais graça. A mulher passou anos a levar injecções no lombo, sempre com a esperança de que um ovulozinho desse qualquer coisa, sempre achando que no mês seguinte é que ia ser. Passados uns anos, o marido já tinha desistido, mas não tinha como dizer-lhe que não aguentava mais ir para a cama no dia tal de cada mês, tivesse vontade ou não, estivesse gripado ou não. O corpo de um homem não é o de um robot. Ora, do ovo nunca veio pintainho, e a Rosa foi ficando cada vez mais ressabiada com a vida. Como a irritavam aquelas grávidas todas, sempre com o ai-jesus do costume, sempre julgando-se a última bolacha do pacote, sempre dizendo os costumeiros “Sabe como é”, a ela, que não sabia, mas queria saber. Volta e meia, era o desplante máximo: “Isto foi um descuido, mas já não penso noutra coisa.” Naquele dia, foi o desplante máximo a dobrar: em vez de um descuido, tinham sido mesmo dois. Ali estavam as gémeas para quem ninguém tinha sonhado um quarto.

Antes do parto, a mãe mandava vir com as dores, a barriga, o desconforto, os enjoos dos primeiros meses. Depois do parto, mandava vir com aquela superioridade de quem passou de gente a mãe: “Acabou o descanso, agora a vida é outra coisa.” A Rosa via naquela mulher suada tudo o que queria ser e não podia. As irmãs, ali juntinhas, iam ser unha e carne para sempre, a família inteira que para ela era coisa de Hollywood. Não só já passara a idade fértil como o marido morrera meses antes. Não o tinha pensado assim, mas, verdade seja dita, não o pensava sempre? Ainda por cima, daquela vez o desplante era maior. Ainda antes de que os pais notassem que as miúdas eram iguais, trocou uma delas com outra miúda qualquer. Era fazer mal só porque sim, espetar uma farpa mesmo que ninguém notasse. Iam achar que eram um postal de Natal perfeito, mas não eram. Ninguém deu pela troca, naquela idade todos os bichos pequenos eram iguais aos outros bichinhos. A Rosa foi à sua vida sem remorsos e só quando a Teresa perdeu a cabeça é que veio falar a público.

A Teresa tinha uma vida plácida. Emprego das nove às cinco, sushi à sexta-feira, praia ao sábado com uma ou outra amiga. De vez em quando, arranjava uns engates, mas nada que durasse muito – ela fartava-se de os ouvir falar de gatos, eles fartavam-se de a ouvir falar do que comiam os pássaros. Assim vivia, ainda assim.

Um belo dia, o Beira-Mar veio jogar contra o Benfica. A Virgínia, fanática da bola como eu, veio ver se a sua equipa levava pontos da Luz. Aproveitou e chegou mais cedo para dar umas voltinhas no Colombo. A Teresa, que nem sabe o que é um fora-de-jogo, estava lá a ver se a Bertrand tinha qualquer coisa de jeito. Atraída pela capa, folheou um livro chamado “Amor estragado”. Leu a primeira página, leu um ou outro parágrafo mais adiante, e devolveu o livro à estante, pensando: “Que porcaria. Agora qualquer burro escreve livros.” Saiu da livraria julgando que a vida era um desastre.

E então cruzaram-se ali mesmo na esquina da Hussel. Assim que se viram, houve um pasmo: eram a carinha da outra. A Virgínia realmente achava que algo não batia certo em ser gémea de um trambolho – aquele por quem a Teresa foi trocada. Em pleno shopping, pararam, agora transformadas em personagens de romance. A Virgínia só lia revistas de jardinagem, mas pela cabeça da Teresa passaram logo Saramago, Dostoievski, João Aguiar. Também lhe teria passado um conto que eu escrevi, se alguma vez o tivesse publicado. E, claro, se ela não achasse que eu escrevo pior do que um macaco.

Pronto, lá veio o choque, etc., saíram dali para um sundae do McDonald’s a ver que raio se passava, a ver quem raio tinha ficado com os pais certos. Não havia como enganar, aquilo era Fred e George Weasley. Assim que meteram os olhos nuns olhos iguais, perceberam que tinham vivido uma mentira, e que era possível que uma transfusão de sangue de alguém a quem chamassem “pai” ou “mãe” as atirasse para a cova.

Vá, já se sabe, obcecaram uma com a outra. E, claro, começaram a competir uma com a outra, a ver quem tinha a pele mais lisa, a ver quem tinha o loiro mais brilhante. A Teresa obcecou mais: alérgica a exercício, de repente era a campeã dos Holmes Places de Lisboa. De repente, eram as duas maníacas da maquilhagem como se tivessem qualquer coisa para esconder. Qualquer pessoa com olhos pensaria em sacar as duas, mas dizer isto a uma ou a outra era uma ofensa. Tinham bastado a vida toda, e de repente eram metade.

Quando o marido da Virgínia disse “Não é nada mal jeitosa, a tua irmã”, aquilo deu logo humilhação. Quando combinaram encontrar-se os três um dia em Salvaterra para compararem cédulas de nascimento e tipos de sangue, a Teresa deu por si a pensar: “Caraças, eu podia ter sacado uma coisa assim.” Com mais de um metro e oitenta e pernas lisas debaixo dos calções, admito que o Artur não era homem de se deitar fora.

Aos poucos, a Virgínia foi acalmando e a Teresa foi ficando cada vez mais doida com aquilo. A vida da outra era melhor. E, claro, os pais da outra é que eram os pais dela. Podia ter vivido num T4 no centro de Aveiro, mesmo ao lado da ria, em vez de num T2 mal amanhado na Damaia. Tinham nascido as duas na MAC, depois a família da Virgínia foi buscar uma vida melhor: pai médico, ficou com um lugar no hospital. A Teresa teve uma vida mais arrancada, mas depois conseguiu estudar e trabalhar ao mesmo tempo e, depois de um mestrado em Teoria da Literatura, passou logo a ter emprego garantido em qualquer coisa.

Mas, para a Teresa, foi difícil ver o que tinha perante o que podia ter. Aquilo era o Fábio Paim a olhar para o CR7: muita promessa, resultados nulos ou abaixo. E começou a achar graça aos peitorais do Artur. Ao longo de três anos, encontravam-se de vez em quando aqui e ali, e claro que a coisa também deu para o torto quando se meteram as famílias. Nisso, foi o caos, e comprar prendas de Natal foi o absoluto descalabro, mas o que interessa aqui era outra coisa. Não há como dizê-lo de outra forma: a Teresa queria levar o marido da irmã gémea para a cama.

Um dia, meio toldada por um bagaço que fez deslizar goela abaixo, confessou-me que já não aguentava a Virgínia. Tudo nela a irritava, e nem a achava assim tão gira. E contou-me o sonho mórbido: matá-la ou raptá-la, amordaçando-a numa cave, atando-lhe as pernas às pernas da cadeira, e seguir o Kamasutra página a página no andar de cima com o Artur. Eu disse-lhe “Ó Teresa, não faças isso. Se a polícia te apanha, vais de vela.” Mas o amor vale mais do que a minha sensatez, e o ciúme mais ainda. Lá houve um dia em que, drogando a Virgínia com Unisedil, numa vez em que o Artur viera a Lisboa e a trouxera e tinham as duas passeado a ver se ali nascia qualquer coisa para além da sensação bizarra que uma espoletava à outra, conseguiu pô-la no carro, e depois levou-a para casa, apoiada no seu ombro. Ali estavam as irmãs que deviam ser sozinhas contra o mundo.

Uma vez em casa, a Teresa lá prendeu a Virgínia na cadeira, não sem antes lhe tirar a roupa toda, para a vestir depois. Amordaçou-a e pôs-lhe phones para que ela estivesse o mais à nora possível. Como no fundo era boa gente, pôs-lhe uma almofada de apoio ortopédico à lombar e música da Maria Bethânia para ver se a miúda relaxava. Depois, pegou-lhe na carteira. Ali estava o telemóvel. Combinou por mensagem encontrar-se com o Artur para seguirem para Aveiro, não sem antes limpar a conta do Santander. Meteu o código à sorte e era mesmo esse: 1967, o ano em que tinham nascido as duas. Seguiu para Aveiro sem saber quando ia voltar. No carro, disse o que quis. A voz era igual e, pelos vistos, a conversa também. O marido nem deu por ela, a mulher ou uma réplica era igual.

À chegada a Aveiro, enquanto entravam em casa, o cão da vizinha pôs-se a ladrar e a ganir como um maluco. Os cães lá vêem o que escapa aos olhos destes seres superiores que somos nós. Ia tratar dele depois, agora era levar até ao fim a hipótese de fazer do Artur gato-sapato.

Assim que subiram, ela saltou-lhe para cima. Estava há quase dois anos a seco. Mesmo que ele fosse péssimo, tinha de ser óptimo, e a carga emocional à volta só dava densidade às coisas. Enquanto fazia o que tinha a fazer, perguntava-se se o MP3 da Virgínia já tinha ficado sem bateria, se ela estaria bem das costas, se não ia estar com muita sede. Não sabia se iria voltar ali, mas, se lhe roubasse a vida, talvez o vizinho do 2º esquerdo fosse dar pelo cheiro do cadáver.

Posto isto, o Artur foi muito fraquinho na cama. Dentro do péssimo, era horrível. Não valia a pena lutar por aquilo, mas já tinha lixado a vida. Ia descer de novo a A1 e logo se veria como ia safar-se daquilo. Disse-lhe “Meu amor, vou buscar um copo de água” e ele estranhou porque a Virgínia costumava chamar-lhe patanisca. Em vez de ir à água, ela vestiu a primeira roupa que lhe apareceu no armário do corredor (que era dele), pegou nas chaves do carro pousadas na credência, desceu à garagem e pirou-se antes que ele desse por alguma coisa estranha.

Desceu a A1 a toda a velocidade. Não sabia bem o que fazer, cogitou vários cenários. Talvez desse para fingir que também ela tinha sido raptada por alguém, e quem sabe violada. Podia pelo menos ser a heroína. Não que estivesse agora interessada em impressionar a outra: podia ter uma vida melhor, podia ter uma marido que sim senhor, mas ele não deixava de ser muito mau na cama.

Entrou em casa, viu-se ao espelho. Aquele trabalho todo deixara-a com olheiras do tamanho de cavalos. Entrou no quarto. A irmã estava viva, mas ela é que parecia um cadáver. Em vez de a ajudar, deixou-a sufocar com a mordaça. Bastou meter-lhe uma mola no nariz e esperar. A seguir, bebeu mais aguardente, bateu à porta do vizinho e contou tudo. Disse-lhe assim: “Ela até morta faz melhor figura.”

A moral da história será esta: nunca se metam com uma mulher ressabiada. E, se o fizerem, assegurem-se de que a enfermeira que a trocou na MAC já não anda aí à solta. É que a enfermeira Rosa, mal deu pelo zunzum, foi feliz para a ribalta dar com a língua nos dentes.

A autora escreve com o antigo Acordo Ortográfico


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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