Meninos, eu vi o futuro e trago más notícias. Assim como o Kyle Reese do Exterminador de Schwarzenegger aterrou no presente para tentar salvar o mundo, também viajei no tempo e o que tenho a falar talvez não seja bom de se ouvir. 

O Kyle Reese que chega do futuro sem uma moeda no bolso, até porque, por uma treta qualquer da tecnologia do teletransporte, todos se materializam no presente completamente nus e, consequentemente, sem roupa, sem calças e sem bolsos.

O Kyle Reese, a metáfora do refugiado que, de uma hora para outra, surge do nada atordoado, despido de roupas e de quem é, sem dinheiro, sem identidade, ilegal, com as autoridades no seu encalço, mas sempre com uma boa história para contar.

Uma história que encanta a protagonista da película, a linda e loira Sarah Connor, e do improvável affair de um refugiado com uma mulher desse tempo e espaço, conceber o herdeiro que nos salvará a todos – amém.

Isso se o bot assassino também enviado do futuro não os alcançar primeiro.

Corra, Kyle, corra, Sarah, corram!

E se você ouvisse que um ex-mister Universo de um metro e noventa, 50 centímetros de bíceps e pelado anda à sua procura, provavelmente também correria.

Mas cá estou a tergiversar.

Ilustração criada a partir de inteligência artificial

O futuro do Kyle Reese é em 2029. Sim, aquele futuro distópico do filme é logo ali, o futuro onde uma inteligência artificial, a Skynet, conclui que a humanidade é uma ameaça – o que, convenhamos, não é preciso tanta inteligência assim – e provoca uma guerra nuclear para nos dizimar.

E quem diz Skynet, diz Chat GPT

Mas não é disso que quero falar agora.

Como os guionistas do mundo real são sempre mais criativos, o futuro de onde venho não é o futuro e sim o passado, em 2013, mais precisamente no Brasil de 2013.

O Brasil, no passado ou no futuro, sempre tão distópico como nos filmes.

2013, o ano quando um aumento nas passagens do transporte público deu o start a uma série de manifestações em todo Brasil. Um aumento de vinte cêntimos de real, à época, sete cêntimos de euros.

Mas os cartazes entre os carros em chamas e as vidraças partidas das lojas saqueadas alertavam: não, não é pelos vinte cêntimos, é por algo maior, é por serviços de educação e saúde dignos, é por salários maiores.

Era também contra os escândalos que se sucediam em catadupa no governo.

E ainda movido por questões metafísicas e imponderáveis, no afã de amainar uma dor existencial inexplicável que corroía o peito das pessoas.

Uma indignação alimentada por uma CPI transmitida em rede nacional, instalada para investigar uma esquema de branqueamento num lava-jato e que foi manipulada e adulterada para atender aos interesses de quem só queria confundir, nunca explicar.

Não, meninos (e meninas e meninxs, também) qualquer semelhança entre o meu pretérito do futuro e o presente de vocês, não é mera coincidência.

No filme, Kyle Reese não consegue evitar o pior. O melhor que faz é conceber o futuro líder da resistência que, lá em 2029, o enviará de volta ao passado para que em vão tente evitar a tragédia e, claro, também conheça a sua mãe.

Vive, portanto, preso num espiral do tempo, num exaustivo vai e vem entre o futuro e o presente, uma rotina irritante e frustrante, como a de quem tenta pegar a linha verde do metro de Lisboa só com três carruagens na hora de ponta.

Mas o pior, o que mais o angustia, é que Kyle Reese já sabe como esse filme termina.

Quando em Portugal leio os jornais e assisto à televisão só falar em protestos, greves, escândalos e agora na CPI, é justamente assim que me sinto, prisioneiro de um loop temporal, com a nítida impressão de saber o fim desse filme.

O Brasil de 2013 não foi dos piores, com o crescimento do PIB em 3%, inflação de 5,91%, um milhão de empregos gerados e o dólar para gastar na Disney ou um euro num rolé pela Europa na casa dos dois reais e um pouquinho.

Os escândalos políticos eram mais do mesmo, pois, no Brasil, escândalo na política nunca foi necessariamente uma novidade, pelo contrário, é mais velho do que andar para frente. 

Mesmo assim, fomos à rua. 

Pois é, meninos, também fui às manifs, embora de forma ordeira e pacífica, mas mesmo assim engrossei a multidão de descontentes que protestavam todos os dias, todas as horas, em todo lugar.

Muitas vezes, sem saber muito bem a protestar porquê e contra o quê.

Uma overdose de desalento, alimentada pela cacofonia das redes sociais, que mais tarde culminaria numa sensação de impotência e de que não havia mais alternativa a não ser o suicídio coletivo. 

O suicídio coletivo que levou a extrema-direita ao poder no Brasil.

Assim como o Brasil de 2013 não era perfeito e muitas das pautas de reivindicação eram e ainda são justas, sei que os portugueses de 2023 que vão às ruas e até aos aeroportos para protestar também o fazem com toda a razão.

Como ser contra as reivindicações de professores, de médicos, de pacientes e da impaciente população de uma forma em geral?

Também vejo que o governo atual anda a patinar feio e que justamente merece a desaprovação dos portugueses e até do último bastião da tolerância, o Presidente Marcelo.

Acompanho em directo a CPI que também começou com o objetivo de apurar um pagamento exorbitante a uma executiva da TAP e aos poucos também vai perdendo o foco para confundir mais do que explicar.

Mas como ser contra uma investigação?

Intimamente, carrego o temor de que todo essa desesperança igualmente leve o país onde escolhi viver à tal sensação de impotência e à conclusão de que não há mais nada a fazer a não ser o suicídio coletivo.

Não é o caso de se pregar a acomodação, o derrotismo e passar o pano em tudo, mas de perceber onde termina o uso das ferramentas democráticas e começa a sabotagem.

Perceber ainda que no atual contexto geopolítico, talvez seja mais prudente preservar a democracia, mesmo com seus defeitos, até a moda da extrema-direita passar – pois vai passar – antes de derrubar o governo e abrir espaço para o bot assassino.

Pois aí, hasta la vista, democracia.

Sempre que divido essa minha angústia com um português, ouço como resposta um “ah, mas Portugal é diferente, não vai acontecer aqui”. Daí, faço um esforço monumental de otimismo para acreditar que não estou prestes a ver o mesmo filme do Brasil, agora dobrado em português de Portugal. 

O mais frustrante é que, um pouco como o Kyle Reese do Exterminador que sabia o fim do filme, não tenho uma solução para sair desse loop temporal. 

A não ser alertar a quem mais puder me ouvir, de que o fim está bem próximo.

Afinal, meninos, eu vi o futuro e trago más notícias.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *