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Durante anos, passei pela Rua dos Anjos, não muito longe da Praça do Chile, e admirei – com espanto – um navio em alto relevo encastrado num bloco de calcário ao nível do primeiro andar, na fachada de um prédio com aspeto de ser anterior ao século XIX (talvez do século XVIII). Era uma caravela, muito rara nesta zona de Lisboa, mas que despertou o meu interesse para com estes elementos decorativos de alguns prédios da cidade.

A conversa com moradores dos prédios onde se encontram estas “naus” ou “caravelas” não trouxe grandes luzes a este mistério. O povo chama-lhes “caravelas de pedra” ou, mais frequentemente, apenas “caravelas”. Muito raramente, também “naus”.

Vejo-as por toda a cidade de Lisboa, nas freguesias históricas (com algumas projeções até Arroios) e vi um único exemplo num modesto edifício do século XVIII em Alcácer do Sal: no Largo dos Açougues, num azulejo que deve ter sido feito para Lisboa por causa dos dois corvos (São Vicente) e, posteriormente, ali colocado.

Pois chamam-se Caravelas Foreiras – passarei a chamar-lhes assim daqui em diante. Podem ser encontradas em Lisboa nas fachadas de casas antigas cuja construção parece recuar até meados do século XVIII, não sendo, contudo, de excluir que algumas se encontravam em edifícios ainda mais antigos que foram demolidos e reconstruídos sendo as caravelas deslocadas para a nova fachada.

Também já as vi em chafarizes, embora aqui pareçam ter um caráter diverso em que se assumem mais diretamente como um testemunho da construção da obra pública pela autarquia lisboeta. Esse testemunho não é tão claro nas caravelas encastradas em fachadas, ainda que seja essa – como veremos mais adiante – a minha interpretação preferida.

De onde vem o nome Caravelas Foreiras?

O termo “foreira” causa, desde logo, alguma estranheza.

De facto, este adjetivo, representa, segundo o dicionário Priberam:

“1. Que paga foro,
2. Obrigado, sujeito;
3. Diz-se do rego ou caminho comum de proprietários consortes;
4. Aquele que tem o domínio útil de um prédio por contrato de enfiteuse”.

O que poderia indicar que seria propriedade de alguém que usava o símbolo a terceiros, numa busca mais profunda, consultando, por exemplo, informação sobre o edificado devoluto na cidade, percebe-se que uma parte significativa destas caravelas se encontravam em prédios particulares – por exemplo: a do Largo de Santa Bárbara e do 152 da Calçada de Pampulha.

Ou seja, isso parece desmentir a tese de que as Caravelas Foreiras marcariam edifícios de propriedade do município de Lisboa em que a “caravela” seria, de facto, uma representação da “barca de São Vicente” que simboliza a cidade.

É certo que poderiam ser casas municipais, vendidas a particulares, ao longo dos séculos, mas a verdade é que há Caravelas Foreiras de aparência novecentista em prédios de arrendamento privado logo na sua origem. Por outro lado, e embora existam chafarizes municipais com Caravelas, neste contexto elas estão geralmente acompanhadas dos corvos (com exceções do século XIX). As Caravelas Foreiras não têm, nunca, este acompanhamento.

Uma destas “caravelas municipais” pode ser encontrada numa lápide na parede do passadiço que permite o acesso direto da rua da Boavista ao logradouro fronteiro e tem a legenda:

Caravela foreira na Madragoa. Foto: Rui Martins

“Este edeficio tem de frente para o Norte 220 palmos / para o sul 230, ao Nascente 570, e ao Poente 54928. / Foi mandado construir e em parte reedificar o que / [sic] Camara Municipal de Lisboa havia comprado/ á / Junta Liquidataria das Companhias do Gram Para e Maranhão, / Pernambuco e Parahiba, / por escriptura de 15 de
Novembro de 1841, / e esta obra foi toda feita á custa da Fazenda da Cidade / e se concluio no anno / de / 1848”
– citada neste site com a indicação de que esta seria uma caravela de tipo foreiro, assinalando uma propriedade municipal.

Em baixo, uma inscrição reforça e explicita a marca de propriedade:

“Da Camara Municipal de Lisboa Anno de 1844”.

A marca das propriedades dos homens do mar?

A maioria das Caravelas Foreiras assume representações fantasiosas, muito distantes daquilo que seriam os navios da época coeva à manufatura destes blocos de calcário. O que também não convida à adesão da outra tese popular de explicação destes elementos decorativos: de que seriam os navios em que o pessoal do mar (marinheiros, armadores ou oficiais) embarcava quando estava ao serviço ou no mar. Estes “homenageados” tolerariam tamanhas divergências dos navios reais e onde tinham investido tanto do seu tempo e energia?

Ainda assim, e sabendo que se tratariam de encomendas a pedreiros, esta continua a ser uma tese plausível: a de que os prédios ou casas onde encontramos estas Caravelas Foreiras seriam de propriedade de homens do mar, reformados ou ainda em atividades, e que as teriam construído ou reconstruído usando precisamente o produto desse seu trabalho, sendo assim testemunhos da sua vida e produto dos tempos de mareantes.

Outra possibilidade – mais remota – seria a de serem, de facto, símbolos da cidade de Lisboa, mas colocados como os marcos romanos e de épocas posteriores, nos limites da cidade, e indicando ao passante que estaria prestes a entrar nestes limites. Mas o facto de muitas (por exemplo, o grupo da Presidente Arriaga) estarem bem dentro da cidade vem também negar esta tese.

Até ao século XIX, a forma das “caravelas foreiras” aparenta ser a de naus dos Descobrimentos, a partir de então ganha a forma de fragatas.

E, com efeito, as Caravelas Foreiras parecem ser mais símbolos ou “selos de propriedade” do que representações gráficas, mais ou menos precisas, de navios ou embarcações concretas.

Segundo esta tese significariam tão somente: “Aqui vive um Homem do Mar”.

Alguns dos locais de Lisboa onde se pode encontrar Caravelas Foreiras:

Chafariz do Andaluz (Campo de Ourique)
Chafariz da Fonte Santa (Campo de Ourique)
Chafariz (Bica dos Olhos) da Rua da Boavista (Misericórdia)
Chafariz de Arroios agora no Museu de Lisboa (Alvalade)
Chafariz D’El Rei em Alfama do século XIII: remodelado várias vezes até ao século XIX (Santa Maria Maior)
Travessa de São João da Praça (Santa Maria Maior)
Nicho da imagem outrora no gaveto da R. de Arroios com a Marques da Silva (Penha de França)
Largo de Santa Bárbara (com “1747”) (Arroios)
Rua dos Anjos: “Todos os prédios do Largo de Santa Bárbara, do lado nascente, e cujas traseiras caem sobre o Regueirão, assim como os da Rua dos Anjos, são muito anteriores à urbanização moderna, e datam em grande parte de reedificações logo a seguir ao Terramoto. Alguns têm na fachada as típicas caravelas lisboetas, que falam como uma data, outros notam-se ainda sobrepostos ao nível actual da rua, mais alto cêrca de noventa centímetros do que era em 1840. Há mesmo um dêles, n.º 62 do Largo, datado de 1747” (Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa, vol. IV, p. 77)
(Arroios)


 *Rui Martins nasceu em Lisboa, numa Rua da Penha de França, num edifício com uma das portas Arte Nova mais originais de Lisboa. Um ano depois já tinha migrado (como tantos outros alfacinhas) para a periferia. Regressou há 18 anos. Trabalha como informático. Está ativo em várias associações e movimentos de cidadania local (sobretudo na rede de “Vizinhos em Lisboa”).


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3 Comentários

  1. Na zona de Alcântara conheço muitas dessas Caravelas. Todas diferentes. Assim como as explicações para a sua existência!

  2. Sao edificios marcados por terem resistido ao terramoto de 1755.

  3. Há uma dessas caravelas no Caruncho, a parte velha de Queluz de Baixo, próximo do rio Jamor, bem longe de Lisboa, o que pode indiciar que haverá tantas muitas nos concelhos de Oeiras, Cascais e quem sabe quantos mais.

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