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Nunca estive em Portugal. Como brasileiro, as heranças portuguesas são evidentes, das quais talvez a principal seja a língua materna. Porém hoje quero contar como uma coisa relativamente distante, o 25 de abril, se tornou importante para mim.
Faz alguns anos, um amigo – Luiz Antônio Garcia, filho de portugueses e hoje com quase 80 anos – me contou a razão do nome da “revolução dos Cravos”. Um restaurante iria fazer um ano de funcionamento e o dono comprou cravos para dar aos fregueses. Contudo, o dia coincidiu com o das tropas revolucionárias tomarem Lisboa. O restaurante não abriu e o dono deu as flores a uma funcionária. Ela as distribuiu aos soldados, que enfeitaram suas espingardas colocando-as nos canos.
Minha primeira memória da revolução não poderia ser outra senão a canção “Tanto Mar”, de Chico Buarque. Bom começo, né? No entanto, a história do nome ascendeu em mim um interesse súbito e diletante. Sobram motivos.
Uma revolução que tirou Portugal de uma longa e estagnacionista ditadura e a transformou em um país próspero e moderno. O mito de que foi uma revolução sem sangue, que parece não ser de todo verdadeiro, mas que condiz com sua beleza. A coalizão de forças democráticas.
A criação da escola da Ponte, famosa no Brasil, como uma experiência pedagógica para, entre outras coisas, fazer frente à limitação pós-revolucionária de recursos físicos e financeiros, que obrigou os educadores a juntar crianças de distintas idades e a abolir ou reduzir o número de salas de aula, conduzindo o aprendizado a partir dos interesses dos estudantes para fazer as pontes com o conhecimento humano acumulado.
Em 2014, tive o desejo de visitar Portugal de maneira a coincidir com o aniversário de quarenta anos da revolução. Porém foi em cima da hora e não pude tirar férias. No dia, fui almoçar com um amigo no centro do Rio de Janeiro e sugeri trocar o restaurante árabe que costumávamos ir na rua do Rosário por um português ao lado. Era um jeito de comemorar, parcialmente frustrado ao ver no cardápio um prato (creio que eram sardinhas) “a Salazar”. Pensei em brincar, dizendo o motivo de estar lá, mas não provoquei o dono. Só não voltei mais ao seu restaurante.
Quando me dei conta que o assunto vinha me interessando com insistência, achei que fosse por 25 de abril de 1974 ter ocorrido pouco menos de um mês antes de eu nascer. Fomos gestados juntos!
Essa impressão começou a mudar em 24/4/2021, um sábado, em que amanheci com tonturas. Imaginei que pudesse ser a covid, mas logo me dei conta de que era um tipo de somatização, que me importunou por um largo período há quase vinte anos, um sintoma de ansiedade. Tentei imaginar por que isso tinha voltado.
O final de abril não é fácil para mim. Minha mãe morreu no dia 27, a dois dias de seu aniversário de 58 anos, em 2010. Mas nunca tinha acontecido de eu me sentir tonto nessa época. Reparei que em 2021 os dias da semana repetiam os de 2010, o que me remeteu à força do significante. Como sugere a psicanálise, é a “imagem acústica” que fica impressa no inconsciente. Uma imagem que pode estar associada a distintos significados, o que pode gerar confusão ou talvez arrumação.
Pensei que a repetição dos dias semana me fazia reviver aqueles dias de perda com mais força. Porém estavam fazendo onze anos que tinha perdido minha mãe. Não deveria ser a primeira vez que essa repetição ocorria. Contudo, ao correr resolvi checar mentalmente se a repetição era inédita.
Descobri, em um aprendizado típico da metodologia da escola da Ponte, que os dias (após fevereiro) de um ano par entre dois anos bissextos – isto é, os anos de copa do Mundo, como 2010 – só se repetem na mesma sequência de dias da semana onze depois. Isso ocorre porque o sexto ano, quando essa reincidência deveria ocorrer, é um ano bissexto e um mesmo dia do mês, em vez de se deslocar um dia para frente na semana, o faz por dois dias, pulando a repetição. No caso, minha mãe faleceu numa terça-feira, 27 de abril de 2010. Cinco anos depois, o dia 27/4/2015 caiu numa segunda, mas 2016 era um ano bissexto e o dia 27/4 pulou para quarta. Como no próximo ciclo houve dois anos bissextos (2016 e 2020), foram necessários mais cinco anos para o dia 27/4 cair novamente em uma terça. Assim, a repetição ocorreu onze anos depois, em 2021.
A repetição da sequência de dias da semana também me fez notar que havia outro dia relevante em abril, além do 27 e do 29. Foi no domingo, 25/4/2010, que falei pela última vez com minha mãe. Ela já estava sem falar, mas ouviu o que eu disse – uma mistura de clamor para que ela resistisse, para que pudesse conhecer os netos (foram netas, Dolores e Rosa, que ela acabou não conhecendo), com uma mensagem de alívio para que pudesse ir em paz, que ela tinha sido uma ótima mãe. Minha mãe, que era conhecida como Jô, ao final apertou os olhos e deixou escorrer uma lágrima. Saí do hospital em Juiz de Fora, Minas Gerais, para o Rio, prometendo voltar na quinta, dia de seu aniversário, mas tive que voltar na terça.
Vinte e cinco de abril de 2010 foi um dia triste, de desassossego pela perda que estava por vir. Porém não foi como o dia 27, este sim de luto em todos os anos desde então. Percebi que meu interesse pela revolução dos Cravos é um jeito de dar um significado bonito ao significante “25 de abril”, a última vez em que conversei com minha mãe. Se houve tristeza, há também beleza e recordação.
Foi na revolução de Portugal que busquei a fonte de beleza para tanto. Lembrei que nos últimos anos a saudei de diferentes formas no twitter. Coloco os vínculos para as minhas mensagens, que se repetiram, segundo a pesquisa que fiz, desde 2016, exceto em 2019. Por vezes também mencionei a “revolução dos Cravos”, porém sempre a referência principal foi o “25 de abril”. Não é para menos. É uma revolução à altura da lembrança da última vez em que falei com minha mãe.
“Manda novamente algum cheirinho de alecrim”!
Fiz-me a promessa de que comemorarei os 50 anos da revolução dos Cravos – que serão também os meus 50 – juntos dos portugueses e das portuguesas. Para lembrar tudo o que Portugal me deu, em particular o “25 de abril”!
*Marcelo Trindade Miterhof, 47 anos, economista, é brasileiro, foi colunista da Folha de São Paulo. Vive no Rio de Janeiro.