Pode soar a utopia, mas é bem real: das estradas que dividem as cidades, nascem parques verdes com alamedas, bosques e percursos de água natural. Já foram algumas as cidades do mundo a fazê-lo como resposta à emergência climática, com a sustentabilidade a ganhar terreno. E é isso mesmo que está prestes acontecer em São Francisco, onde se “enterrou” parte de uma estrada em túneis para que a partir deles crescessem espaços verdes.
A vivência no histórico Presidio Park, atravessado pela polémica Doyle Drive, tornara-se insustentável por causa do barulho e do tráfego. Mas, como a estrada liga a Golden Gate Bridge ao resto da cidade, a solução não podia passar por demoli-la. Surgiu então a ideia: porque não deslocá-la para debaixo de túneis e a partir deles fazer crescer parques verdes?
Em 2015, criou-se o Presidio Parkway por cima de dois conjuntos de túneis, com barreiras de som e estruturas anti-terramoto. Agora, nele vão nascer dois novos espaços. No primeiro, que se inaugura já dia 23 de abril, vão crescer 50 mil plantas nativas. No segundo, que abre em julho, vai erguer-se o Presidio Tunnel Top, um parque de 118 milhões de dólares que sobrevoa a estrada como um cobertor verde.

Ligar o Presidio à marginal
Nos últimos anos, a Doyle Drive tornara-se num espaço cada vez mais inseguro e que punha em casa o histórico Presidio Park que ligava os bairros mais afluentes da cidade, o Pacific Heights e o Presidio Terrace. A construção desta estrada em 1936 fora aliás controversa por isso mesmo: intervinha no parque que era usado desde 1776 como base militar para os exércitos espanhóis, americanos e mexicanos.

E foi controversa também porque passou a impedir a deslocação a pé do bairro do Presidio à marginal, onde na altura se localizava o aeródromo do exército americano.
Em 1994, a base militar foi transferida para o National Park Service, e o parque ganhou espaço, mas não foi o suficiente para garantir um quotidiano livre do caos e da poluição – nem uma caminhada do bairro do Presidio até ao mar.
Hoje, a solução encontrada, com a criação do Presidio Tunnel Top, vai permitir a ligação do bairro do Presidio à zona costeira, marcando-se assim a primeira vez em cem anos em que os habitantes de São Francisco poderão fazer novamente esse trajeto a pé.
Onde dantes não havia forma de o fazer, vão surgir várias hipóteses de chegar até à baía: através de um passeio pela alameda ao longo do aterro com vistas, descendo um conjunto de terraços relvados, ou então através de uma rampa ou escadaria que atravessa a água e onde será criado um recreio, com troncos de árvores, rochedos e baloiços de corda.
Parques em estradas pelo mundo
Soluções semelhantes já foram adotados pelo mundo, até mesmo em São Francisco, onde, nos anos 1980, se quis demolir a autoestrada California 480, que entretanto foi parcialmente destruída por um terramoto. Assim, só nos anos 1990 é que se avançou com o plano de um parque com uma área pedonal e ciclovias – e vista para a baía de São Francisco.
Não é uma inovação recente. Em 1974, em Portland, Oregon, começaram as obras para que a Harbor Drive se tornasse no que é hoje o Tom McCall Park. Também em Portland, Oregon, a Hawthorne Bridge tornou-se numa ponte para ciclistas e pedestres.
Em Seul, na Coreia do Sul, a autoestrada Cheonggyecheon, construída num canal com o mesmo nome, foi transformada num parque em 2005 para se combater a poluição ambiental e o ruído. E em 2000, em Madrid, surgiu um projeto de recuperação das margens do rio Manzanares, que se revelou uma tarefa difícil por causa da presença da autoestrada M-30.
Essa autoestrada foi, tal como aconteceu em São Francisco, transferida para debaixo de túneis e muitos edifícios históricos puderam ser incluídos na criação de um parque, como a Puerta del Rey que tinha sido deslocada com a construção da autoestrada. O resultado foi o parque que abriu em 2011, o Madrid Rio, que tanto tem oferta histórica como espaços livres para passeios e para a prática de desporto.


Estas mudanças são uma oportunidade para repensar o papel das estradas nas cidades. É que, tal como explicou Richard Kennedy, diretor da James Corner Field Operations, o estúdio de design de paisagem responsável pela empreitada em São Francisco, citado pela FastCompany: “Uma autoestrada não tem de ser uma barreira, pode ser um bem público, até mesmo um bem ecológico”.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
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