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Estava estacionado na berma da Calçada de Carriche, a ver se o motor do Seat arrefecia para dar nova volta à chave na ignição, quando ela entrou e sentou-se no banco traseiro. Trazia óculos de sol e o olhar pendido sobre o telemóvel. Estudei-a pelo retrovisor. O lábio inferior tremeu antes de dizer: “Então, não arranca?” Poderia ter desfeito o engano logo ali. Exaltar-me, pedir-lhe satisfações pelo atrevimento ou gracejar com o equívoco: só alguém muito desatento confundiria o meu velhinho Seat Ibiza com um Uber luzidio, munido de rebuçados peitorais nas arrumações das portas. Em vez disso, dei graças a Deus por o motor de arranque responder. O carro tinha passado na revisão à conta de uma característica quase congénita de largar dinheiro em qualquer lado. Desta vez, a distração foi pousar cinco notas de vinte sobre o tablier, que pagaram rodadas no tasco ao lado do Centro de Inspeções.
Pouco avançámos. Mal encetada a marcha, ficámos entalados entre dois para-choques, entediados pelo carrossel de cores dos semáforos. Foi das poucas vezes em que me alegrei com o trânsito à entrada de Lisboa: se não fôssemos a lado nenhum, também não iríamos a nenhum lado errado. Ela distraiu-se do telemóvel e apresentou-se. Chamava-se Clara, tratavam-na por Clarinha, malograda a inocência do diminutivo que se perdera há uns anos. Tomou a liberdade de ligar o rádio, espetando a cabeça como um relógio de cuco entre o meu assento e o do pendura. Senti-lhe o perfume e a inflexão do norte rural nos arredondados das vogais. O peito repleto de ar e juventude empinou, oferecendo a constatação de ausência de roupa interior. Ondas médias para a frente e para trás, nada lhe agradou. Protestou contra a qualidade do som e aconselhou-me a investir num novo equipamento. A crítica amoleceu-me e logo senti o constrangimento de ter de dar explicações. Já Clarinha se alongava em considerações mordazes e intelectualmente sustentadas sobre o autocolante agressivo do vidro traseiro do carro e o penduricalho baratucho de artesanato peruano no espelho retrovisor. Nada condizente com a pagela da Nossa Senhora. Reminiscências de uma juventude viril e de uma ex-namorada finalista em viagem de curso pela América Latina, como depósito da relação a lembrança, não suficientemente cara para compensar as aventuras amorosas que ela tivera por lá. Quanto à Nossa Senhora, nunca se sabe, não é verdade? E mal não faz. Tudo explicado em tom de réu aflito.
O perfil de Clarinha estava traçado. Miúda chegada da terra, pespineta, dotada de uma vacuidade atraente, já viveria na selva urbana há tempo suficiente para se fazer passar por presa, sabendo-se predadora. Num cruzamento, enquanto dava prioridade a dois ciclistas, dei por mim a pensar que gostaria de lhe tocar uma manhã à porta e, sem trocarmos palavras, fazer amor com ela numa cama ainda quente do sono. Saber-me-ia apontar o caminho do quarto só com o olhar, como agora, estranhamente, me apontava a direção da marcha.
Os meus instintos estavam certos. Clarinha veio de fora e encontrou uma Lisboa onde os talheres eram postos em escada e as companhias seletas, mas enfadonhas. Alguns meses no curso de Direito bastaram para lhe elogiarem a eloquência e as formas e choverem convites de catedráticos. Um aborrecimento. Ora porque o creme de abóbora estava insosso, ora porque tinha sal a mais. “Que maneira esta de tratar um alimento civilizacional de confeção milenar!” Ora porque a tábua de queijos não estava devidamente guarnecida. Ora porque aproximavam perigosamente o Fourme d’Ambert do espaço dos Chèvres, “contaminando de forma irremediável os sabores”. Ora porque o vinho não repousava “por certo a 15 graus” e Le chef de rang estava “mais entretido com as miúdas”. E tudo piorava depois do pedido do Carpaccio de canard à l’ananas et au gingembre, que afinal era abacaxi e que provocava azia. As sobremesas nunca superavam as do restaurante junto à Igreja de Estremoz e o café não era “definitivamente” do lote certo. Caso fosse daqueles que não se aventurava a conduzir em Lisboa à noite, porque é um aborrecimento estacionar, ainda insistiria numa conversa mais ou menos deselegante sobre percursos e atalhos devidamente cronometrados quer no que diz respeito ao tempo, quer no que diz respeito aos quilómetros. “Tudo para incutir alguma humildade na verborreia dos taxistas”. Senhoras, nestes casos, fujam! Fujam ou acabarão por perceber que “têm um perfume demasiado insípido, mas excessivamente presente” e que o vestido, “apesar de sofisticado, vos dá um ar vulgar”.
Clarinha tentou fugir e procurou o consentimento paternal vezes sem conta em conversas feitas para casa do telefone da residencial junto ao Parque Eduardo VII, onde morava. Diziam que esperasse mais um pouco, que a fase de habituação era assim mesmo, que as pessoas de Lisboa eram mais frias, que não devia ligar aos atrevimentos, que tinha de se pôr a jeito para ser alguém na vida fora daquela terra apoucada de onde viera e, mesmo antes de desligar, lembravam o esforço que estavam a fazer para a manter em Lisboa e como tiveram de renunciar às férias no estrangeiro porque o dinheiro não dava para tudo. As frases eram trocadas com a mãe, perante o consentimento silencioso do pai, que só uma vez interferiu com um “se a miúda quer vir, deixa-a vir” para logo ser posto na ordem.
A meio da Avenida da República ela anunciou, para meu espanto: “Chegámos”. “Tem a certeza?”, ainda indaguei, consciente de que não tínhamos apalavrado qualquer destino. Como resposta, apontou-me um lugar vago e instruiu-me nas políticas do estacionamento pago. Já no passeio, virou-se para um aceno. Bastou-me, como imaginei, seguir-lhe o olhar.

Filipa Martins
É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.