Paulo Dalla Nora não é apenas um restaurateur, porque os seus restaurantes são sempre mais do que simples lugares de comida. O Cícero, que recentemente se mudou de Campo de Ourique para o Chiado, tem história a começar no nome, homenagem ao pintor modernista brasileiro Cícero Dias – cujas telas cobrem as paredes. Paulo Dalla Nora partilha com o pintor a origem penambucana, o progressismo e o ativismo social.
Empresário, a partir de Portugal Paula Dalla Nora criou um canal, o Lisboa Connection, onde comenta política, história e negócios e tem como objetivo unir mais Portugal e o Brasil. Implacável contra laivos e sinais de racismo, conservadorismo e mau gosto, Paulo era, no Brasil, gestor, especialista em mercado financeiro, e assim ganhou estrutura económica para a vida em Portugal desde 2020. Lisboa é uma das suas paixões. Com ele e o seu olhar transatlântico discutimos a cidade, o seu presente e o seu futuro.
Leia aqui a entrevista:
Abriu o novo Cícero no meio do coração de Lisboa, no Chiado, depois de três anos em Campo de Ourique. Porque veio para Portugal, em primeiro lugar?
A decisão foi parte de um projeto pessoal e familiar que tinha sido travado pela pandemia. A escolha de Portugal veio por ter várias pessoas que eu conhecia que já estavam aqui. E achei que isso iria facilitar a integração.
Essa saída familiar teve a ver com a situação que se estava a viver no Brasil?
Havia um descontentamento muito grande com o governo de Bolsonaro. Durante a pandemia, o clima foi muito pesado. Eu tinha uma forte atuação política, escrevia muitos artigos e participava em debates. E vinha de uma trajetória anterior no mercado financeiro, que era todo pró-Bolsonaro. Na eleição de 2022, foi mais dividido. Mas em 2020 não estava dividido – era 80% Bolsonaro.
Eu era vice-presidente do Instituto Política Viva, que fazia debates políticos não partidários. E fizemos a tentativa de criar uma frente democrática. Não eram pessoas só ligadas à esquerda, não. Tinha pessoas do centro, pessoas que tinham sido ministro, até de Fernando Henrique Cardoso. E dois dias depois alguém divulgou isso na imprensa e saiu uma reportagem no Estadão, que todos os bolsonaristas liam.
Então foi uma chuva de mensagens, dizendo que eu estava montando uma oposição ao governo. Até teve deputado de direita que foi para o evento que depois foi para o jornal e disse “eu não fui”. Era um ecossistema em que tudo o que você falava, qualquer lugar que você ia, vinha um enxame.

Por que o seu percurso foi diferente, mesmo sendo de uma classe privilegiada?
Isso tem sempre muita influência familiar. Minha mãe é arquiteta e tem um espaço cultural no Recife, que se chamava Era Sagitário, onde fazia muitos eventos, sarau musical, poesia, tinha bebida, música ao vivo. O meu restaurante Cícero tem um pedaço disso. E, obviamente, isso atrai, normalmente, um público mais progressista.
E o meu pai era um empresário, tinha tudo para ser um cara mais duro de direita. Mas ele foi o grande amigo de Jarbas Vasconcelos, um dos fundadores do MDB, que é o Movimento Democrático Brasileiro, o grande partido de oposição. Era progressista, de uma esquerda diferente – uma esquerda académica, intelectual.
Todo o sábado tinha almoço na casa do Jarbas. Era 100% política e cultura. Eu vivi isso. E, quando eu estava perto dos 15 anos, o meu pai foi o fundador junto com o Jarbas de um centro de debate político. Recife era uma cidade extremamente politizada, muito por causa da sua tradição. A gente ia para a praça de Casa Forte, um bairro de elite intelectual, mais ou menos como o Leblon. A gente ia gritar que Marco de Melo, um dos candidatos, era o “Pinochet de Pernambuco”.
Pelo facto de ter a mesma língua e uma cultura parecida, quando veio para Portugal, já pensava ter uma intervenção cívica?
Sim, tinha essa ideia. Quando eu cheguei aqui, queria fazer um negócio inspirado na Casa do Saber de São Paulo, que é como uma escola com cursos de uma semana ou quinze dias de Literatura, Filosofia, etc… Tem também uma parte de arte, de exposição. É para alta renda, onde vai circular um pedaço dessa elite que talvez não tenha muita visibilidade em Lisboa, que é a elite brasileira que tem dinheiro, mas que não é bolsonarista. Eu esbarrei com a realidade. O brasileiro que mora em Portugal está mais interessado em outras coisas. E o turista não tem uma semana para fazer isso. Tem que ter uma coisa que dê para fazer num dia. Daí, veio a ideia do restaurante.
Quando cá chegou, percebeu que a política portuguesa também estava a mudar?
Entrei num grupo de debate com empresários portugueses e levei um pouco de choque, com a reclamação. Na altura, era o governo do PS, de António Costa. Tinha um sentimento muito negativo. E eu disse: “Vocês acham que este governo é de esquerda? Vocês estão dizendo que António Costa é um cara radical? António Costa é um mestre da política, ele não é radical de nada. Ele faz qualquer acordo, qualquer negócio.” Parecia que eu tinha tomado uma máquina do tempo e voltado para o Brasil de 2014, depois daquelas manifestações do impeachment dos Estados Unidos da América. Um sentimento que o governo é radical, uma desgraça.
Sentiu sinais de polarização?
Senti muito forte o discurso da antipolítica, que nada na política presta, que está tudo errado. Tentei falar com muita gente. Todo o mundo com quem a gente falava dizia “não, isso não vai acontecer em Portugal. Portugal é diferente”. E eu pensava “está igualzinho, estou vendo aqui.”
E na cidade, sentiu essa mudança também? Nos seus clientes, nos seus empregados…
Você nota, não dá para explicar isso direito… Senti um negócio meio inquietante de que “você não é daqui”. Na rua, na loja, no pedido de orçamento, nesse tipo de coisa, dá para sentir claramente. Senti isso comigo, mas também observando quando estão atendendo outras pessoas e até nesses grupos, nessas conversas.
Mas tem variantes. É que no Brasil, a imigração não era um problema. O problema no Brasil era o negócio comportamental, sexual, que ia virar tudo gay, lésbica… Esse era o ponto número um, do delírio desses grupos, meio que uma guerra cultural.
Você vê Lisboa como uma cidade muito diversificada e misturada? Ou é muito estratificada?
São Paulo é muito mais aberta que Lisboa, tem uma mistura muito maior entre quem é de São Paulo e quem é de fora de São Paulo, mesmo quem não é brasileiro. Aqui tem duas Lisboas: a Lisboa que é dos portugueses e a Lisboa dos expatriados. Claramente são duas Lisboas diferentes, também por conta da capacidade de renda. Em São Paulo tem muito menos.
Eu senti que Lisboa é menos misturada, pela minha experiência. E, por uma questão cultural, essa Lisboa dos portugueses é pouco penetrável. O português recebe pouquíssimo em sua casa, só recebe amigo muito próximo. No Brasil, você receber em casa jantares de negócio é normal. E, claro, teve um aumento muito grande da população dos expatriados em Lisboa. Quase não tinha expatriados em Lisboa há 20 anos. Então, isso cria um pouco de tensões.
Você sente-se no meio ou sente-se completamente do lado dos expatriados?
Eu me sinto muito mais do lado dos expatriados do que dos lisboetas.
Mas o seu ativismo político não o coloca um bocadinho mais do lado dos portugueses?
Nesse aspecto, eu estou mais próximo.
Como imagina o futuro de Lisboa?
Eu acho que Lisboa está passando por um momento de definição do que quer ser. Está num momento de busca de identidade. Existe uma discussão de que Lisboa vai perder um pouco da sua essência.
Mas deixa eu contar uma coisa pra vocês: para se desenvolver, vai perder um pouco da identidade, não tem jeito! Isso é um trade-off. Tem que ser regulado, tem que ser pensado, tem que ser estudado. Tem que ter proteção cultural. Mas não adianta querer achar que o barco não vai virar. Uma cidade para ser mais cosmopolita vai perder um pouco do nativismo. E é nesse momento que Lisboa está.

Mas acha que Lisboa tem consciência disso? Ou uma parte de Lisboa está a tentar agarrar-se ao passado e a outra está a tentar atirar-se para o futuro?
Claramente existe uma briga aí. Se fizer uma assembleia e perguntar a todo o mundo o que é que Lisboa deve ser, vão sair 10 respostas diferentes. Em jeito de caricatura, vai sair gente dizendo que todo o dia tem que comer a ginginha, tem que comer o croquete do seu Manuel da esquina que era quatro escudos.
Vai ter esse grupo aí, que acredita que tudo fora disso é uma desgraça que está estragando tudo. Aí depois tem o outro lado, dizendo que tem que acabar tudo, virar só bitcoin. Que precisa de tostas de abacate, com matcha. O lado do trabalhador virtual. Mas não existe ainda um claro entendimento de qual é a nossa vocação. O que é que Lisboa quer ser.
Por que acha que isso acontece?
É o fator da novidade, que não deu tempo de decantar ainda. Quando eu vim pela primeira vez a Lisboa, em 1990, era uma cidade muito provinciana. Aqui era tudo escuro, não tinha restaurantes bons, só tascas. E o melhor restaurante que tinha era o Tavares Rico, parecia o Chateau de Versailles. Jantei lá no meu aniversário de quinze anos e era um negócio completamente diferente. Você estava esperando que entrasse lá Dom João VI. Os taxistas todos de coletinho e as mulheres de casaco de malha. Então, é muito nova essa mudança. É diferentemente de São Paulo, que já tem essa lógica cosmopolita desde os anos cinquenta. Já tinha gerações que viveram essa transformação. Aqui é tudo muito novo e, qualquer lugar que passa uma transformação dessas, tem uma reação.
A que é que isso se deve?
E eu acho que existe em Portugal um caldo que nunca foi tratado direito, que é o legado do salazarismo, claramente contra o progresso. Estou falando de pessoas e empresários. Salazar era notoriamente contra o progresso. Quando eu vim a Portugal em 1990, fui ligar a televisão esperando encontrar vários canais e só havia um. Aquilo me impressionou muito. É importante lembrar que Portugal passou por uma ditadura muito opressora do ponto de vista dos costumes.
A ditadura brasileira foi terrível e pior do que a portuguesa do ponto de vista de opressão política, de mortes. Mas a ditadura no Brasil não se conseguiu impor no campo dos costumes. Ninguém consegue fazer ditadura num país que tem Carnaval. A cultura brasileira, apesar da ditadura, teve o tropicalismo, foi muito inovadora. E mesmo na ditadura, nos jornais havia bons textos, bem escritos.
Além disso, acho que também não existe em Portugal uma liderança política que tenha tratado essas questões atuais de forma competente. Porque a direita está numa encruzilhada, achando que vai controlar e mitigar o crescimento do Chega, virando o Chega número 2. No Brasil, isso não deu certo e acabou com a direita.
Como perceciona a tensão política na cidade de Lisboa?
A leitura que eu tenho é mais do país. O PS está diminuido. Ficou um vácuo de poder. Claramente, não tem uma liderança. O António Costa quase que foi enxotado. Mas António Costa é político de classe mundial, quer você goste dele ou não. O PSD, a nível nacional, está tentando não deixar o Chega crescer, puxando os eleitores dele.

De que liderança é que Lisboa precisa?
Uma liderança para perceber o que é que Lisboa quer ser. Não precisa ser um político, mas eu ainda não identifiquei aqui ninguém que pudesse ter esse papel. Eu acho que existe pouquíssima discussão da cidade. No Recife, em que a população é infinitamente mais pobre do que em Lisboa, existe muito mais discussão sobre a cidade do que aqui. Tem que ter um fórum permanente, tem que existir debate, independente de quem seja o presidente da Câmara. Tenho estado a viver aqui e não me lembro de ter lido um artigo ou visto uma palestra sobre “O que Lisboa quer ser daqui a 50 anos?”. Esse fórum tem de existir, com empresas, com criativos…. Não sei se não se quer discutir isso, se se tem medo, mas parece que as empresas não se envolvem.
E Portugal nunca vai estar bem se Lisboa não estiver bem. Se Lisboa não tiver um projeto do que ela quer ser, esqueça Portugal. Você não pode ter uma cidade que não fala de si mesma.
Tem que existir um líder que proponha o que quer fazer da cidade, assumindo o seu passado e enfrentando o seu futuro, culturalmente.
No mundo de hoje, tudo está integrado. O preço da gasolina do carro tem que ver com o valor da passagem do comboio. Os produtos que as pessoas da sociedade portuguesa consomem estão globalizados, não adianta fantasiar.
O que mais o preocupa no futuro do país?
Portugal vive hoje um ponto de inflexão e tem de escolher se quer ser um país mais aberto ou quer ficar um país mais fechado. Eu estou muito preocupado porque o lado dos que querem o país mais fechado tem uma narrativa e tem uma história e sabe contá-la. O outro é ruim de mensagem e de comunicação.
No Brasil existe esse mesmo desafio, só que o Lula é bom de narrativa. A narrativa do Lula é mais difícil de contar do que a do Bolsonaro, mas ele tá ganhando. Porque ele sabe contar, ele vai pra televisão, chega lá e diz: A gente tem que ser multilateral, não pode ser fechado. Aqui, eu estou muito preocupado, porque ninguém faz essa defesa.

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