Quando se fizer a história real, não a institucional, das relações entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa, no pós-25 de Abril de 74, o B.Leza terá nela um lugar destacado.
Muitas vezes não é nos salões do poder que se decide o rumo dessas ligações, é nos corredores informais de espaços como o B.Leza, de copo na mão, ouvindo música que envolve, ginga e rodopia. É aí que a língua se molda, para lá de acordos ortográficos, e novos sentidos se articulam. Em Portugal nem sempre se valoriza lugares assim. Não estão na Torre do Tombo.
Mas estão naquilo que as pessoas são, nas suas experiências, nas articulações orgânicas, na sociabilização e na projeção cultural. Transformam-se em lugares icónicos, refletindo, e ao mesmo tempo, transformando, o seu tempo. O B.Leza nasceu a 21 de Dezembro de 1995. Ou seja, na noite de sábado para domingo, completará 30 anos e vai haver parabéns-a-você.
“O que sempre definiu a casa foram os músicos e daí que tenhamos convidado muitos deles, de Nancy Vieira a Eliana Rosa, para virem cá nessa noite.” Quem o diz é Madalena Saudade e Silva, que há 30 anos, na companhia da irmã Sofia, está à frente de um espaço que já teve várias existências e moradas. A primeira delas, talvez a mais icónica, durante 12 anos, em Santos.
1.Conde Barão
É ali, ao Largo do Conde Barão, que fica situado o Palácio de Almada Carvalhais, a primeira morada do B.Leza.
Edificado na primeira metade do século XVI pelo banqueiro e feitor da Flandres Rui Fernandes de Almada, com elementos decorativos de várias épocas, com destaque para a escadaria monumental do século XVIII, os estuques nos tetos, silhares de azulejos e um claustro da Renascença, um magnífico pátio interior rodeado de arcadas e colunas.


Em 1854, após o falecimento do Conde de Carvalhais, último representante da família dos Almadas, provedores da Casa da Índia, o palácio passou a albergar o Colégio Europeu, tendo sido fragmentado ao longo do século XX e utilizado por diversas entidades, da biblioteca museu Luz-Soriano ao Atlético Clube da Casa Pia, que o alugou ao B.Leza, que ali permaneceu até 2007.
Consta que terá recebido outro ilustre visitante: o Marquês de Pombal em noite de núpcias.
2.Noites Longas
Mas antes, nos anos 1980, no mesmo local, já tinham havido ali outras experiências marcantes, nomeadamente as Noites Longas, entre 1985 e 1989, uma ideia singular dinamizada por Zé da Guiné, Mário Pilar e Hernâni Miguel, os dois primeiros já falecidos. O espaço abria às 2 da manhã, prolongando-se a noite até de manhã, funcionando o lugar como confluência de várias proveniências.
Ali convergiam artistas, intelectuais e boémios, depois do encerrar do Bairro Alto, o mesmo acontecendo com quem provinha do chamado circuito das “discotecas africanas” com epicentro na rua de São Bento, ou dos restaurantes de cozinha africana do Poço dos Negros.
Já de madrugada, era comum ver, no pátio, figuras populares que dai a pouco iriam abrir o Mercado da Ribeira. As Noites Longas funcionavam tanto como lugar de dança, no salão interior, como de encontro, no exterior, ou de eventos culturais, de lançamento de livros, a passagens de moda, ou concertos. A música era como o público, mesclada, com Talking Heads ao lado de hip-hop dos primórdios, ou Fela Kuti, funk e jazz.

O chefe de cerimónias era Zé da Guiné, figura tão imponente, como esteticamente ousada. Um corpo político negro quando tal era incomum.
3.Baile
Essa experiência das Noites Longas acabou por funcionar, de forma não declarada, como embrião para o surgimento de O Baile e, depois, do B.Leza. José Manuel de Faria Saudade e Silva era o advogado do Atlético Clube da Casa Pia, estava a ajudar o cantor Dany Silva a implementar um projeto no espaço, este acaba por desistir, e Silva acaba por assumir O Baile, que abriu em 1988, com músicos como Manecas Costa, Costa Neto ou Paulino Vieira. Era uma espécie de chá dançante por onde era normal ver, entre os visitantes, Celina Pereira ou Cesária Évora, vinda do restaurante Monte Cara, onde cantava, gerido pelo cantor Bana.

O salão nobre do palácio era o coração da casa, enquanto no andar de cima funcionava o restaurante O Patrôlho, que foi explorado por figuras da música como Ana Firmino ou Maria Alice. O pai de Madalena e Sofia, ambas então com pouco mais de vinte anos, morreu no final de 1994, e a forma de manter viva a sua memória, foi continuar o legado, apesar da inexperiência.
“Percebíamos pouco daquilo”, assume Madalena, “e fomos procurar ajuda junto do Alcides Nascimento, filho do Bana, para a direção musical. Ele era porteiro do bar Os Três Pastorinhos, ao Bairro Alto, onde eu adorava ir e acabou por aceitar. Fechámos durante três semanas, levantámos o chão, pintámos paredes, e reabríamos.”
A reabertura é já como B.Leza, pseudónimo do poeta e músico cabo-verdiano Francisco Xavier da Cruz, e com Tito Paris e Xico Morgado, ao lado das irmãs Madalena e Sofia.
4.Dezembro
Foi a 21 de Dezembro de 1995 a inauguração. Durante cerca de três meses não fecharam um único dia. A banda da casa tocava diariamente, ao longo de três sessões, a partir da uma da manhã, sendo comum encerrarem já com o dia a nascer. Músicos conhecidos como Paulino Vieira, Costa Neto, Manuel Paris, Manecas Cosa ou Tomás Pimentel, todos eles passaram pela banda residente da casa, enquanto Sap, Biús ou Calú, se foram revezando na voz.
Rapidamente o espaço tornou-se conhecido como templo da música africana, principalmente da cabo-verdiana ou angolana, mas não só, tendo passado ao longo dos anos pelo clube nomes tão diversos como Mário Lúcio, Teté Alhinho, Sara Tavares, Os Tubarões, Ildo Lobo, Princezito, Jon Luz, Simentera, Filipe Mukenga, Justino Delgado, Tabanka Djaz, Kussundulola ou Kimi Djabaté.
“Tudo isto só funcionou pelo lado colaborativo”, resume Madalena. “Não tínhamos noção do que implicava e sem ajuda teria sido difícil. Nesses primeiros anos, o pátio era o sítio onde apetecia estar, descalça, à conversa, depois chegava alguém com o violão, tocava-se e cantava-se. Era um ambiente familiar, descontraído. Estava-se entre amigos. Era como estar em Cabo Verde. Era algo orgânico. O B.Leza é de muita gente. Continua a ser assim.”
5.Tito Paris
O B.Leza é sinónimo, também, de Tito Paris. Ainda hoje existe quem pense que o espaço é seu, pela participação direta que teve no mesmo desde o inicio. “O Tito esteve sempre connosco, ele deu vida ao espaço, e este amplificou a sua música”, reflete Madalena. “O B.Leza tem criado isso: amizades longas que ainda perduram.” São incontáveis as noites em que Tito ali tocou e rapidamente o lugar se tornou conhecido, principalmente entre a comunidade cabo-verdiana, mas não só, com coladeiras, mornas ou funaná a fazer vibrar as paredes do salão principal do charmoso espaço. Tito foi um desses exemplos de alguém que ajudou a manter viva a tradição, ao mesmo tempo que abriu lugar para fusões e novas sonoridades, como se constata ouvindo o álbum “Tito Paris ao Vivo no B.Leza”, lançado em 1998, que celebra e fixa a ligação intima com aquele emblemático lugar e o consolidou como um dos embaixadores da música de Cabo Verde.
6.Cabo Verde
Foi no B.Leza que a maior parte dos músicos cabo-verdianos foi sendo revelada, numa altura em que a música dos países africanos de língua portuguesa ainda estava por descobrir, ao nível do grande público, em Portugal.
Não foi por acaso que a carreira de Cesária Évora, bem como das sucessivas gerações de cantores que se seguiram (Lura, Nancy Vieira, Tcheka, Mayra Andrade), teve que ser credibilizada, numa fase inicial, no resto da Europa. Mas, antes, quase todos passaram pelo B.Leza. O espaço deixou de ser apenas um salão de festas, para se tornar num local vibrante, onde todos queriam ir. Muito antes da celebração de Lisboa como lugar intercultural ou da música afro-portuguesa, que tanto conquista hoje os visitantes internacionais, ou figuras que por aqui permaneceram temporariamente como Madonna, o B.Leza, já era esse local de forma orgânica.
Respirava-se essa cultura.
No pátio, negros e brancos, sociabilizavam, e no corredor, e nas várias salas, podia-se jantar, aprender a dançar, ver exposições ou filmes. Todo o palácio se agitava. Mas a 30 de Junho de 2007 acabou por encerrar. Desde então está para ali prevista uma unidade hoteleira de luxo que ainda se encontra em construção.
7.Itinerância
Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa, declarou o B.Leza como espaço de relevância cultural e social, iniciando-se a procura de uma nova morada para darcontinuidade à sua atividade. Apesar dos esforços, tornou-se itinerante durante cincoanos, tendo passado pelo MusicBox, São Luiz, Teatro da Luz, CabaretMaxime e Teatro do Bairro Alto.
Alguém lançou uma petição que recolheu 20 mil assinaturas. Existiram artigos na imprensa. Sentiu-se que havia o suporte de uma comunidade, uma família, que ali crescera.
Que o diga Joaquim Paulo Nogueira, jornalista, cuja vida diz confundir-se com o B.Leza. “Mudou a minha vida. Deu-me uma identidade (tornei-me no ‘bailarino do B.Leza’), através da dança, que é algo que nos mascara, para nos ajudar a revelar, dando-me a conhecer e a conhecer outros. Deu-me uma família, da qual sinto fazer parte, dando-me a conhecer o Princezito, o Tcheka, a Nancy Vieira, a Lura, a Ana Firmino ou o Jon Luz. São pessoas que já são da minha vida emocional e coletiva. E permitiu-me a mim, que nunca fui a África, tomar contacto todos os fins-de-semana com Cabo Verde, Angola, Guiné, São Tomé ou Moçambique, cada qual com a sua personalidade e comunidades. Nesta fase do mundo, de medo do ‘outro’, tem também esse significado político. O meu quotidiano é mais festivo, porque sei que todas as semanas vou ter um espaço para ser eu próprio, estar com outros.”
8.Cais do Gaz
A 2 de Março de 2012, fruto de um protocolo com a Câmara, durante o mandato de António Costa, nova moradia é encontrada no Cais do Gaz, junto ao rio Tejo, onde permanece até hoje.
A residência é outra, algumas mudanças foram introduzidas, mas o espírito mantêm-se, com a música africana de expressão lusófona a predominar, e a banda B.Leza a reassumir o protagonismo ao fim-de-semana, enquanto a semana se foi abrindo a outros universos sonoros. A formação da banda da casa tem estado sempre em reavaliação. Calú Moreira regressou como voz principal, acompanhado por Toy Vieira (teclas), Kau Paris (bateria), Costa Neto (baixo) e Vaiss (guitarra). Integraram ainda esta formação nomes como Kalú Ferreira, Paló Figueiredo ou Djodje Almeida, ou sucessivas vozes convidadas como Zeca di nha Reinalda, Mirri Lobo, Ceuzany, Jenifer Solidade ou David Pessoa.
Os fins de semana dividem-se entre a música tradicional e a kizomba. Aos domingos, realizam-se workshops de dança. Pontualmente, passam pelo palco veteranos como Bonga, Bulimundo ou Ferro Gaita, mas têm sido alguns dos seus descendentes, de Paulo Flores a Dino D’ Santiago ou Selma Uamusse, dos Fogo Fogo a Acácia Maior, Pretú ou Fidju Kitxora, que têm alargado o espectro musical para novas filiações.

9.Novas gerações
Há novas gerações, mas o sentimento de “casa, corpo e memória”, como lhe chama Dino D’ Santiago, mantém-se. Lembra-se de todas as datas importantes ali. “Desde o 24 de Outubro de 2013, quando ali apresentei o álbum “Eva”, passando pelo Dezembro de 2014, noite de aniversário, ou o 5 de Julho de 2016, com “O crioulo crooner”, cada data ficou gravada nas paredes como uma extensão da minha pele.”
Mas a sua ligação vai além das noites em que integrou o cartaz.
“As noites ‘Na Surra’ ou as presenças silenciosas para ouvir ou apoiar novos artistas dos PALOP e do Brasil. Estar ali sempre foi um ato de pertença e escuta”, diz.
Na última década o espaço foi-se abrindo a novos projetos e linguagens, sintoma das transformações da cidade e de novos públicos, do hip-hop ao afro-house, do samba a linguagens independentes, contando com a colaboração de Sérgio Hydalgo nessa parte da programação, tendo ali evoluído gente tão diversa como Shabazz Palaces, Irreversible Entanglements, Sun Ra Arkestra, Rodrigo Amarante,Jessica Pratt ouLucrecia Dalt. E depois, existe ainda a nova música portuguesa,protagonizada por Pongo, A Garota Não ou Luca Argel, entre muitos outros.
10.Símbolo de Lisboa
Aquilo que lavrou, agora o B.Leza colhe. Lisboa, hoje, é oportuguês, o crioulo, o calão angolano, misturado com o inglês ou o francês. No B.Leza sempre foi assim, com pessoas de raízes e experiências muito diversas, criando novos imaginários, por entre fases de consenso, de tensão ou até deretrocesso, sempre com os corpos arodopiar na procura do prazer de existir.
Claro, não vale a pena idealizar.
O B.Leza é um microcosmos artístico e sociocultural. Não se subsistiu a politicas públicas de justiça social. Mas ali têm sido ensaiadas formas de existir na diversidade. “Há 20 ou mais anos, eu, vindo da ilha de Santiago, estive em Lisboa a estudar durante quatro anos, e quando sentia aqui a agressividade da exclusão, era no B.Leza que me refugiava e mantinha a esperança acesa”, lembra João Braz Tavarez, na altura em trânsito, para estudar, a caminho de Londres, onde hoje é advogado.
“O B.Leza é uma história de muita gente, sendo o reflexo do amor e visão das irmãs Madalena e Sofia Saudade Silva, guardiãs daquela casa”, reflete Dino. “De Bana a Lucibela, de Bulimundo a Fogo Fogo, de Os Tubarões até Scúru Fitchádu, mantém aberta a travessia. Enquanto o B.Leza existir a nossa música continuará a ter casa.”
Por estes dias o B.Leza está em festa. Esta quinta-feira haverá concerto com Scúrú Fitchádu e Máquina. Sexta, será a vez dos Fogo Fogo com Carlão, e no sábado, muitos convidados para soprar as velas do 30º aniversário. Mas, no domingo, tudo volta ao normal, com um workshop de dança e uma sessão DJ de kizomba. Não dá para estar parado.

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