A memória mais antiga que tenho do Natal vem de Tom and Jerry, um episódio que apresenta uma cena natalícia onde muita neve, paus de rebuçado, vinho quente e frango assado compõem um quadro de sonho. Infelizmente, o Natal não é amplamente celebrado na China, especialmente porque sou de uma pequena cidade no sul – o que significa que não há um grupo de pessoas interessado numa celebração estrangeira… nem na neve. Mas o ambiente geral no início dos anos 2000 era ainda muito tolerante e, tanto adultos como crianças, encaravam o Natal como uma festividade normal, apenas para nos divertirmos.

Assim, embora com condições limitadas, celebrávamos este dia especial à nossa maneira.

Todos os anos, quando o Natal se aproximava, as papelarias ao lado da nossa escola começavam a vender spray de neve, um brinquedo capaz de expelir neve falsa feita de espuma. As crianças gostavam de o esguichar na rua enquanto corriam, como se fosse neve verdadeira. Quando chegava a véspera de Natal, comprávamos maçãs embaladas de forma requintada e oferecíamos aos colegas e professores, porque em chinês “véspera de Natal” tem a mesma pronúncia que “maçã”.

As coisas mudaram lentamente, mas de forma acentuada. A partir de um ano — não me lembro qual — o spray de neve foi proibido de ser vendido às crianças, e, claro, este produto desapareceu das papelarias – porque faz mal aos olhos e é inflamável, sendo demasiado perigoso.

Esta proibição tirou-nos certamente muitas alegrias, mas foi apenas o começo e a mudança mais insignificante do que viria.

Quando entrei no ensino básico, por volta de 2012, foi publicada uma nova regra na nossa escola que proibia alunos e professores de celebrar o Natal, e, “por razões de segurança”, os alunos também estavam proibidos de ir à festa de Natal na praça da cidade depois das aulas.

Também a partir desse período começaram a espalhar-se algumas afirmações de que o Natal é uma ferramenta usada pelos países ocidentais para danificar as nossas culturas tradicionais. Portanto, na minha memória, o Natal passou de um festival apenas de alegria e felicidade para um representante cultural… aos olhos de muitos, maligno.

Embora esta transição nos tenha realmente tirado a oportunidade de celebrar o Natal, trouxe-me mais curiosidade para conhecer melhor a data — longe de ser um feriado aleatório sem motivo.

Nos anos seguintes, o debate sobre se poderíamos ou não celebrar o Natal na China foi crescendo, e o mesmo tópico torna-se viral todos os anos na internet, quando o Natal se aproxima.

Neste tipo de discussões, o Natal e o Festival da Primavera — o mais importante festival tradicional chinês — são colocados em lados opostos. Se já temos o nosso próprio Festival da Primavera, para quê celebrar um feriado estrangeiro? O Natal é apenas uma forma de lavar o cérebro dos jovens. Esta opinião dominava, e muitas pessoas com ideias diferentes não se manifestavam por não quererem confrontar a visão dominante.

Mas com o passar do tempo, especialmente nos últimos anos, o Natal não perdeu a sua popularidade na China, e algumas ideias contrárias começaram a aparecer na internet, tais como “Se ficamos felizes por ver o Festival da Primavera ganhar popularidade no estrangeiro, não devemos rejeitar o Natal, ou será um duplo padrão” e “Celebrar o Natal não significa converter-se ao Cristianismo, nem aceitar valores ocidentais. Fazemo-lo apenas por diversão, não o politizemos”.

Há decorações e algumas atividades com o tema de Natal na cidade, mas, para evitar discussões, as celebrações permanecem pessoais ou comerciais, enquanto as autoridades continuam em silêncio sobre este tema. Apenas as megacidades mais abertas, como Xangai, podem ter grandes celebrações. O mesmo vi durante o meu trabalho no Paquistão: embora muitas pessoas desfrutem da alegria do Natal, neste país islâmico os elementos relacionados com o Natal só aparecem nos grandes centros comerciais.

Assim, o primeiro Natal verdadeiro que experienciei foi em Lisboa, onde vi pela primeira vez um mercado de Natal e percebi que a celebração começa mais de um mês antes de 25 de dezembro.

Naquela altura, tinha acabado de me mudar para Lisboa há um mês, e no dia 1 de dezembro os meus colegas de casa organizaram uma atividade de grupo nessa noite, por isso, fomos todos ao mercado de Natal no Baixa Chiado e no Rossio, o que me fascinou verdadeiramente.

As cenas de ambiente natalício que eu tinha visto nos últimos 20 anos na televisão estavam ali à minha frente.

Mas, infelizmente, a maioria dos meus colegas de casa eram estudantes, por isso, ou voltaram para casa para celebrar o Natal com a família, ou marcaram viagens fora. Acabou por passar sozinho o meu primeiro Natal em Lisboa.

Foto: DR

O segundo, no ano passado, tornou-se maravilhoso. Já conhecia melhor a cidade. E, mais importante ainda, tinha alguns amigos aqui, o que significa que tive mais tempo para explorar diferentes mercados e eventos de Natal durante o mês. E não precisei de passar o dia 25 sozinho – na véspera de Natal, recebi o convite do meu melhor amigo aqui, e jantámos e celebrámos o Natal juntos.

Estou a caminho do meu terceiro Natal em Lisboa. E já estou no espírito: para mim, a companhia dos amigos ou da família toca-me profundamente. Afinal, como chinês, o Natal significa simplesmente felicidade com os amigos. Tal como em Tom e Jerry, quando passaram juntos a véspera de Natal, e como quando os meus colegas e eu corríamos uns atrás dos outros com o spray de neve.


Silong Zhao

Nascido e criado na China, sou estudante de línguas, cultura e ciências sociais. O desejo de experimentar um novo estilo de vida e de conhecer um mundo maior me trouxe a Lisboa. Após um ano de estadia, agora procuro descobrir mais coisas interessantes e incomuns sobre esta cidade – daí estar a estagiar na Mensagem de Lisboa.

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3 Comments

  1. Adoro as tua crónicas caro Silong Zhao. Espero que passes um Natal muito feliz!

  2. Gostei muito da historia de Silong Zhao.
    Feliz Natal
    para todos os colaboradores da Mensagem de Lisboa

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