Quando parece que já toda a cidade está pronta para adormecer, é quando eles se encontram, como se aquele fosse, afinal, o início de um dia. Em círculo, no meio de uma praça, num parque de estacionamento ou numa estação de comboios.
“Rimas em 3, 2, 1. Não rimem, se matem.”
Ligam-se as colunas, ouve-se as batidas e dá-se início a uma nova ronda. No centro estão dois MCs, que trocam versos à vez, sem palco nem microfone, sem censura nem filtros – só rimas, respeito… e aquilo que reclamam como direito primário: dizer. Estão rodeados de pessoas que passam e param para ouvir, alguns deles já frequentes na plateia. Cada um deles contribui para uma paisagem que nos parece estranha, à partida: transformar espaços públicos em pequenos palcos – ruas, praças, parques de estacionamento e estações de comboio.
O que se faz aqui chama-se “rodas culturais” e esta é, na verdade, uma tradição bem antiga em Lisboa e arredores – mas sobre a qual poucos parecem saber.
Leia a reportagem completa e veja o documentário:
Dos novos aos “kotas”: uma história que começou em 1996
A história das rodas parece confundir-se com a do Kota Phill, ele que as conhece como poucos. Está no movimento desde 1996, quando tudo ainda era novidade. “Era uma altura diferente. Foi muito complicado no início, porque era uma novidade e ainda não havia em lado nenhum.” Nasceram inspiradas pelas batalhas de freestyle dos subúrbios de Nova Iorque, nos EUA (1970), e no Brasil (1980). Cá, chegaria mais tarde. Com os mesmos princípios – respeito, igualdade e improviso – e até temas – desigualdade, racismo, identidade e as vivências daqueles que rimam ou que os rodeiam.

Muitos dos participantes vêm de bairros periféricos — mas não só — e veem na roda uma oportunidade para serem ouvidos. O hip hop é manifesto. A rima torna-se uma forma de catarse e de liberdade de expressão daqueles que querem “desmarginalizar” o hip hop.
“Se tu amas a cultura como odeio a ditadura, grita hip hop!”
Nas rodas cabem gerações inteiras — dos jovens de 18 anos que dão os primeiros passos no freestyle aos veteranos que carregam décadas de história, mostrando que o movimento não tem idade para começar nem para acabar.
Como o “Kota”.

“Vizzy” conheceu o hip hop com 10 anos. E as rodas proporcionam-lhe uma forma de se mostrar neste mundo: “No fundo foi poder ter um bocado de currículo, um acréscimo para a minha carreira”. “Vizzy” é Miguel, tem 19 anos. Combate com Tiago, de 18, conhecido por aqui como “Flays”. Rima desde 2019, por “destino”. “Parecia que tinha sido destino. Apareceu-me no feed do Instagram uma batalha, até que um dia descobri o nome da batalha e fui lá rimar.”
A primeira batalha foi em Setúbal, no jardim do Bonfim. Ganhou o primeiro round. “Só não sei como, porque na altura era muito fraco.” As rimas giraram em torno do Vitória de Setúbal, clube da cidade, e foi isso que lhe garantiu o apoio do público e a vitória inicial. “Depois foi perder até conseguir voltar a ganhar.”





Apesar de parecer um evento informal, existe sim uma organização por detrás do que se vê. As rodas são geralmente anunciadas nas redes sociais, não contam com patrocínio — normalmente — nem grandes estruturas, mas sim com muito improviso e compromisso com o movimento.
Não há bilhetes. E qualquer um pode aparecer.
O grito das periferias e da imigração
Todas as batalhas ou rondas começam com um grito. Alguns já criados, outros feitos na hora. É como um tiro de partida. Ou com nas batalhas dos velhos coliseus. Mas, muito diferente dos gladiadores, os MCs atacam com palavras… muitas delas gritos de guerra.
“Meskwál” já trazia esses gritos com ele, quando se juntou às rodas culturais por cá. Ele que descobriu este movimento ainda em São Tomé, onde o jovem de 25 anos nasceu. “Acompanhava algumas batalhas de rima brasileiras e despertou-me uma curiosidade de querer fazer parte de uma e aprender.”
Mais do que competir, os MCs criam uma comunidade que muitas vezes ultrapassa o espaço da roda. Depois de cada batalha, trocam-se cumprimentos, falam sobre as melhores e piores rimas, elogiam-se.

Normalmente não existem premiações. No lugar do prémio, pode haver uma espécie de diploma. No final, o vencedor de cada edição termina com um freestyle.
Gigantes à Margem
Existem várias rodas que marcam o movimento, cada uma com um nome e uma identidade. Em Almada, nasceu a Gigantes à Margem, fundada por Caio e Benny, dois amigos que se conheceram no Poesia Bar — um espaço lisboeta onde o freestyle sempre teve lugar. “Vimos que aqui, em Almada, havia sempre pessoas a fazer freestyle, mas que nunca iam para Lisboa, então decidimos trazer o movimento para este lado”, recorda Caio.
Como organização, a Gigantes à Margem enfrenta desafios constantes. “Dois dos nossos maiores desafios são pessoas, mão de obra, para crescermos. O outro é apoio, tanto financeiro como de espaço. Nós lutamos com unhas e dentes para fazer isto continuar”, admite. Sem qualquer patrocínio ou apoio institucional, muito depende do esforço da direção da roda — e também do dinheiro que vêm do bolso dos mesmos: para as colunas e para toda a estrutura de pessoas que organizam e, depois, divulgam.

A criatividade entrou em jogo: “Começamos a vender aperitivos e bebidas durante as batalhas, para tentar angariar dinheiro e comprar equipamento melhor”.
O movimento, no entanto, nunca foi apenas sobre batalhas de rima. Desde o início, a preocupação da Gigantes à Margem foi criar um espaço diferente, com consciência social, inclusão e respeito. “Inicialmente a ideia, para além de trazer as batalhas de freestyle para Almada, era criar um ambiente que tivesse uma consciência social diferente, para não chegarem aqui e começar a insultar como antigamente. Queríamos criar um espaço mais respeitoso para todos”, sublinha Caio.

Hip hop… no Terreiro do Paço
Se em Almada existe a Gigantes à Margem, no coração de Lisboa, precisamente no Terreiro do Paço, nasceu recentemente a roda Batalha da Rua é Noiz. Fundada por Gash e Chess — que antes de criarem a sua roda já eram MCs ativos nas demais que existem por Lisboa.
Esta nova roda surge como resposta a um vazio que sentiam no movimento. “Vimos que as batalhas de rima deixaram de ter consistência no sentido de toda a semana trazer algo novo, então pensamos em criar algo com as nossas regras, com beats diferentes e uma energia diferente”, explica Gash.



Chess “tinha saudades das batalhas brasileiras raiz”. O objetivo não era apenas continuar o que já existia, mas sim procurar juntar a cultura de freestyle brasileira com a portuguesa, criando uma identidade própria.

Apesar de tudo, as rodas vão para além de um espaço de improviso, são uma oportunidade de transformação.

A Rua é Noiz procura também unir gerações, aproximando MCs mais novos de nomes já conhecidos no movimento. “A finalidade sobre a batalha ser criada é como todas as outras, atrair mais pessoas para o movimento. Mas a minha percepção para criar a Rua é Noiz, foi juntar esta nova geração de MCs brasileiros e portugueses que está a aparecer, com nomes já conhecidos. Às vezes o ego cega, às vezes chegam a falar muito e a ouvir pouco e isso não é bom, e é aprendendo com as melhores pessoas que ganhamos voz e moral”, reforça Gash.
Ainda assim, os dois reconhecem que o preconceito continua a acompanhar o rap desde a sua origem. “Desde que o rap foi criado que é marginalizado, porque querendo ou não, o rap é um movimento periférico e como todos sabemos, existe um preconceito enorme por aí no mundo”, diz Chess.“Infelizmente, tem essa questão que o movimento hip hop veio do Bronx, e as pessoas veem o movimento como sendo ofensivo e não é pelo que está sendo feito ou dito, é pelas pessoas que estão lá”, remata Gash.



A Rua é Noiz é mais do que uma roda no coração da cidade, é a prova de que a cultura hip hop continua a reinventar-se e a conquistar novos espaços, mesmo onde menos se espera. Gash e Chess trazem para a Praça do Comércio uma energia própria. Talvez nunca vista num lugar como este. Mas que lugar melhor para se juntarem do que o coração da capital do país que acolhe hoje tantos brasileiros?
Até isso é um manifesto.
Reportagem: Bruno Reis
Gravação e edição de vídeo: Mateus Santa Rita
Fotografias: Mateus Santa Rita

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